Eles são considerados anjos da guarda por muitas pessoas, mas são tão vulneráveis quanto qualquer ser humano. E é justamente isso que torna a figura do bombeiro tão especial para a sociedade. Quando realizam operações de salvamento ou de combate a incêndio, estes profissionais, apesar de treinados, colocam a própria vida em perigo para proteger outras vidas. Um exemplo dramático dessa entrega está ainda muito presente na memória da população gaúcha, com a morte do 1º tenente Deroci de Almeida Costa, 46 anos, e do 2º sargento Lucio Ubirajara de Freitas Munhós, 51, durante o combate ao incêndio na sede da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, na noite de 14 de julho. Ambos foram atingidos por um desabamento no momento em que trabalhavam na evacuação do edifício. Perderam a vida e deixaram esposas e filhos.
O inicial desaparecimento dos dois soldados deixou visível outra característica especial dos bombeiros: o forte sentimento de irmandade e de solidariedade na corporação. O sargento Munhós estava de folga e decidiu ajudar os companheiros naquela noite. Já o tenente Almeida era responsável por despachar as viaturas para o combate ao fogo. Porém, também tomou a mesma decisão de Munhós. Após o desabamento, durante uma semana, equipes de bombeiros trabalharam incessantemente por 24 horas até conseguir resgatar os dois corpos. Este espírito de unidade faz parte da filosofia dos bombeiros, explica o tenente-coronel Isandre Antunes, chefe da Assessoria de Operações e Defesa Civil do Corpo de Bombeiros Militar do Estado (CBMRS). “A força nossa é do coletivo, o bombeiro não atua sozinho. O nosso padrão é, no mínimo, uma dupla, porque um bombeiro é a garantia de segurança do outro.”
Em relação ao episódio, o comandante-geral do CBMRS, coronel César Eduardo Bonfanti, reconhece que a tragédia causou muita comoção entre os colegas do sargento Munhós e do tenente Almeida. Por outro lado, observa que o empenho mostrado pelas equipes de resgate foi o mesmo que seria aplicado no resgate de desconhecidos. “Claro que não foi uma ocorrência muito fácil. Então a gente teve que trabalhar tudo isso, trabalhar a necessidade dos cuidados técnicos, da segurança das pessoas que estavam ali, porque o prédio continuava instável”, lembra.
Coronel Bonfanti observa que episódios como este deixam claro que a atividade de bombeiro exige um profissional diferenciado. “É fundamental estar disposto e querer se colocar em situações de risco pelo próximo. Se o bombeiro não tiver isso, certamente está na profissão errada.” Essa área exige elevada dose de abnegação. “Todos os que estão aqui renunciaram a muitas coisas e continuam renunciando, porque na grande maioria das vezes, estamos preparados para não ter sucesso”, acrescenta o tenente-coronel Antunes. Segundo ele, é preciso renunciar à vaidade de acreditar que sempre se terá êxito em uma operação, porque o bombeiro precisa lidar com o imprevisto e o imponderável. Em qualquer circunstância, o trabalho deste profissional será importante para evitar o pior. “O prédio que está queimando muitas vezes vai queimar, mas vamos evitar que os demais se incendeiem. Muitas vezes não vamos conseguir tirar com vida a pessoa que está soterrada, mas vamos resgatá-la e entregá-la para a família.”
Estar sempre preparado para o pior não é simples e exige muita disciplina, inclusive para prestar as últimas homenagens a colegas mortos. E essa foi uma das razões para que o cortejo dos dois soldados, ocorrido na tarde de 22 de julho, fosse uma cerimônia tão comovente. Os aplausos e a emoção de pessoas que acompanhavam também demonstraram o reconhecimento da população a esses heróis.
O cortejo fúnebre dos dois soldados mortos no combate ao incêndio na Secretaria de Segurança foi marcado por aplausos e emoção de pessoas que acompanhavam. Foto: Mauro Schaefer
Treinamento
“A minha atuação no Corpo de Bombeiros está diretamente relacionada com a questão da preparação das respostas”, esclarece o tenente-coronel Antunes. É preciso resposta rápida para cada situação: atendimento pré-hospitalar, entrada em espaços confinados como tubos e galerias, combate ao fogo, salvamento na água, entre outras situações. O bombeiro precisa estar pronto para fazer o salvamento com técnica, rapidez e consciência dos riscos. Isso se aplica também a salvar animais, como cães que ficam presos em dutos e gatos que não conseguem descer de árvores, para ficar em alguns exemplos comuns. “Toda vida é preciosa”, salienta.
“Nós trabalhamos em tudo aquilo que mete medo quando éramos crianças: escuro, lugar confinado, frio, calor, água, altura. Tudo assusta e continua assustando, porque isso nos machuca e vai machucar qualquer pessoa”, observa o tenente-coronel Antunes. O objetivo, portanto, é treinar e adaptar os bombeiros nestes cenários adversos. No pátio da sede do CBMRS, há, por exemplo, uma torre onde os futuros bombeiros, além de praticarem técnicas de salvamento, aprenderão a dominar o medo e a insegurança em lugares altos. Existe também um local confinado, onde vivenciará situações de incêndio. Um túnel estreito e escuro deverá ser atravessado pelos alunos. Além disso, um tanque de água com três metros de profundidade será usado para treinar salvamento aquático. Neste caso, engana-se quem pensa que encontrará uma piscina convencional, de água límpida ou com aquecedor. O objetivo é recriar situações críticas. Muitos exercícios são feitos em temperatura ambiente e com água turva para reduzir propositalmente a visibilidade e a luminosidade.
Segundo o tenente-coronel, estes exercícios também vão revelar qual a aptidão de cada soldado, há os que se saem melhor nas alturas, os que atuam em locais confinados e os que são mais aptos na água. Apesar disso, todos deverão estar prontos para enfrentar qualquer uma das situações de risco. Quem não consegue lidar com qualquer uma delas, não poderá tornar-se bombeiro. Mesmo os soldados formados vivem uma rotina de treinos constante.
É preciso, segundo o tenente-coronel, ter todos os elementos para realizar um salvamento com técnica e qualidade. Para seguir e progredir na carreira, salienta, o bombeiro deve compreender muito bem o significado da palavra “renúncia”. “A renúncia faz com que a gente acabe superando as adversidades, atuando de forma abnegada. Eu vou comer coisas melhores, vou evitar de sair à noite, porque amanhã alguém pode precisar que eu esteja em condições mesmo na hora de folga”, explica.
Esta filosofia citada pelo tenente-coronel é compartilhada pelo hoje aluno oficial Thiago Bona de Souza, 30 anos. Ele acrescenta que é fundamental que exista a afinidade com o trabalho. Bona lembra que foi atuando como guarda-vidas civil temporário, em 2010, que decidiu tornar-se bombeiro. “Sempre gostei de atividade física, sou surfista, já tinha essa vivência com o mar, então acabei me apaixonando pela atividade”, revela. A partir dessa primeira experiência, seguiu atuando como guarda-vidas por cinco anos, até surgir a oportunidade de fazer concurso. Uma vez na academia, aprendeu a lidar, além do salvamento aquático, com o combate a incêndios, resgate, enfim, tudo o que diz respeito ao papel de um bombeiro. Nenhum dos sacrifícios pessoais que foi obrigado a fazer teve peso maior do que a vontade de seguir e se aperfeiçoar na área. Pensando em progredir dentro da corporação, cursou Direito, a fim de prestar concurso para capitão. Foi aprovado e, atualmente, se especializa para no futuro assumir o novo posto. Também se aperfeiçoou na área de prevenção.
Aluno oficial Thiago José Bona (E) e tenente-coronel Isandre Antunes, que fala sobre o treinamento para salvamento aquático. Foto: Alina Souza
Vivência de guarda-vidas
Um dos ambientes no qual o tenente-coronel Isandre Antunes, hoje com 51 anos, aprendeu a agir com desenvoltura foi o aquático. Por vários anos, atuou na Operação Verão como guarda-vidas. Trata-se, segundo ele, de um dos ambientes mais complexos para se realizar salvamento. Isso porque o guarda-vidas pode enfrentar momentos em que será obrigado a tomar decisões difíceis e até angustiantes. É preciso ter estrutura emocional. Há alguns anos, em Capão da Canoa, ele esteve diante de um grande dilema. Após o encerramento do seu expediente, quando o dia já terminava e começava a escurecer, Antunes, ainda na orla, percebeu que uma pessoa estava se afogando. Entrou na água e conseguiu chegar até a pessoa, que já estava perdendo a consciência. Mesmo com auxílio de um equipamento de flutuação, era difícil mantê-la na superfície, pois o peso dela era maior. Neste momento viu outra pessoa se afogando. “Era uma criança, uma menina com seus 10, 11 anos”, lembra. A técnica de salvamento define que é preciso garantir em primeiro lugar quem já está sendo salvo, para que não se corra o risco de que duas vidas se percam. Tendo consciência disso, ele ficou angustiado em perceber que não haveria condições de levar a pessoa adulta à orla e voltar para resgatar a criança. Ele ainda fazia esforço para, quem sabe, se aproximar da menina, quando outro guarda-vidas se aproximou dele e da pessoa que tentava levar à margem. Para sua sorte, seu colega, mesmo na escuridão, conseguiu perceber à distância o flutuador e entrou na água. “Solicitei que ele segurasse a pessoa com quem eu estava e pude ir salvar a menina.” Quando conseguiu retornar à orla estava exausto, pois a operação levou no mínimo 15 minutos. “Essa me marcou pelos últimos tempos”, reconhece.
Como Antunes, o aluno oficial Thiago Bona de Souza tem forte ligação com o mar. Toda sua trajetória, lembra, começou na orla de Tramandaí, onde também coleciona histórias de salvamento. O episódio mais dramático vivido por Bona ocorreu em 2012. Na época, seu posto de guarda-vidas era na barra de Tramandaí, local perigoso para quem se aventura a nadar. “Tem um canal profundo onde deságua o Rio Tramandaí dentro do mar. E na região próxima desse canal é muito raso”, explica. Por causa dessa característica traiçoeira, Bona realizou muitos salvamentos no local. Mas, naquele ano, viveu uma situação inusitada. Uma família decidiu atravessar o canal a pé para chegar até a praia de Imbé e foi tragada pela correnteza do rio. Eram cinco pessoas, um homem, uma mulher e seus filhos adolescentes. Para realizar o salvamento, foi preciso ajuda de quatro colegas, incluindo os que estavam do outro lado da barra, em Imbé. “Se eu estivesse sozinho, seria muito complicado”, lembra. Felizmente o trabalho em equipe deu certo e toda a família foi salva.
Uma noite trágica
Um dos episódios mais dramáticos ocorridos no Rio Grande do Sul foi o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria. Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, a casa de espetáculos estava superlotada. Durante o show musical, a fagulha de um sinalizador usado por um dos músicos incendiou o teto da boate, que continha material de fácil combustão. As poucas saídas disponíveis e o excesso de pessoas no interior do prédio contribuíram para a marca trágica: 242 mortes e 680 feridos. O episódio, entretanto, poderia ter sido ainda pior sem a ação dos bombeiros. Aquela noite segue viva na lembrança do tenente-coronel José Carlos Sallet de Almeida e Silva, 45 anos, hoje comandante do 4º Batalhão de Bombeiros Militar de Santa Maria.
“Episódio de dor, perda e tragédia inenarráveis”, define, antes de começar o relato. “Em janeiro de 2013 eu ocupava o posto de capitão e chefiava uma seção de Estado Maior”, lembra. As festas de final de ano já haviam passado e boa parte do efetivo do Estado estava no litoral gaúcho. Foi quando soou o alarme para incêndio. O comandante conta que, quando as guarnições depararam-se com a magnitude da emergência, imediatamente foram chamados reforços. “Com o soar das sirenes e a inquietude provocada por tais alertas, todos os bombeiros disponíveis na cidade, apresentaram-se para auxiliar, inclusive bombeiros da reserva.” O trabalho envolvia socorro às vítimas, extinção do incêndio e manobras de aeração do local. O incêndio em si, observa o comandante, era de pequenas proporções e de fácil controle. O problema maior era o material combustível, que, ao queimar, liberava os gases que causaram as mortes e as sequelas físicas nos sobreviventes – isso inclui os frequentadores da boate, os funcionários e os próprios bombeiros.
Além disso, o número excessivo de pessoas dificultou o atendimento médico imediato. Pela dimensão da tragédia, não havia ambulâncias e capacidade da rede hospitalar no município para suprir a demanda. Envolvido nas ações de combate ao fogo e resgate das pessoas no interior da boate, o então capitão Sallet experimentou múltiplas emoções. “O sentimento de perda. A certeza de que por mais que fizéssemos naquele momento, não recuperaríamos aquelas vidas.”
Ele, entretanto, também procura se lembrar do “sentimento gratificante” de tudo o que foi feito para salvar muitas pessoas e impedir que a tragédia fosse maior ainda. “Nossa recompensa reside em salvar uma vida, entregar uma pessoa desaparecida à família, preservar bens e riquezas das pessoas.”
Uma odisseia na Serra
Em Bento Gonçalves, uma operação de resgate de um casal de idosos e sua cuidadora de uma casa de madeira cercada de água levou cerca de 12 horas. Foto: Mauro Martins Carvalho / Divulgação / CP
Uma verdadeira odisseia para salvar um casal de idosos e uma mulher de uma casa de madeira cercada de água. Uma tarefa complexa e cheia de imprevistos empreendida pela equipe de resgate do Corpo de Bombeiros de Bento Gonçalves. O episódio aconteceu há um ano, em 8 de julho, e envolveu quatro bombeiros. Major Márcio Batista, comandante da corporação, lembra que, naqueles dias, um ciclone provocou fortes chuvas na região. O Rio Taquari transbordou e as águas invadiram o município de Santa Teresa. “Estávamos monitorando desde o dia anterior, pois havia previsão de grande chuva e a localidade fica abaixo de uma represa”, explica. “Por volta das 5h fomos acionados e seguimos para lá. Quando chegamos, parte da cidade estava alagada e começamos a fazer buscas e a retirar as pessoas das áreas afetadas.” A água subia rapidamente. Aproximadamente às 7h, o grupo recebeu a ligação de uma mulher. Era a filha do casal de idosos. Ela avisava que seus pais, moradores do distrito de Campinhos, a alguns quilômetros dali, estavam ilhados em casa junto com a cuidadora. Não havia mais saída e a água já estava invadindo a residência. Embora a situação fosse grave, os bombeiros precisaram terminar de retirar as pessoas das áreas alagadas em Santa Tereza antes de partirem para a operação de resgate dos idosos e da cuidadora.
Foi destacada uma equipe de quatro bombeiros, entre os quais o sargento Mauro Martins Carvalho e o soldado Tiago Chocho Barreto. O primeiro desafio era chegar ao distrito. Como todos os acessos estavam inviabilizados pela enchente, o único trajeto possível era o Rio Taquari. “Não havia outra possibilidade, mesmo com o risco de usar bote naquela correnteza”, observa o major Batista. Apesar dos perigos, a força da água acabou contribuindo para que o grupo chegasse mais rápido. Porém, chegando lá, começava a tarefa mais complexa, retirar as três pessoas da casa e levá-las a um lugar seguro. Não havia possibilidade de voltar pela mesma rota, pois a força da água não permitiria o avanço do bote. Foi preciso achar outro caminho, muito mais longo. E havia uma agravante, a condição de saúde do idoso. “Aquele senhor dependia de oxigênio”, lembra o sargento Carvalho. E o funcionamento do aparelho de oxigênio dependia de eletricidade, o que naquela situação era impossível devido aos danos na rede elétrica. A reserva disponível não seria suficiente para todo o trajeto. Foi preciso tirar os três da casa, colocá-los em um lugar mais alto e retornar até Santa Tereza para conseguir oxigênio suplementar. Porém, a volta de bote não foi mais possível a partir de certo trecho. Foi necessário deixar a embarcação no caminho. “Então percorremos em torno de quatro quilômetros, seguindo pelos trilhos da linha de trem, a pé.” Quando conseguiram o cilindro de oxigênio, voltaram pelo mesmo caminho, pegaram o bote e resgataram os três para finalmente deixar a área alagada.
O plano era retornar à linha de trem a fim de utilizar um carro de manutenção disponível para percorrer os trilhos levando os três. Mas o percurso era complexo. Parte do transporte dos resgatados foi feita de bote. Depois, foi usado um trator. Mas havia trechos de terreno acidentado e mata fechada nos quais não era mais possível usar o veículo. Por isso, o grupo ainda caminhou por mais um quilômetro até encontrar a linha do trem. Na maior parte do trajeto, o casal foi carregado no colo e toda a operação levou em torno de 12 horas. Soldado Barreto observa que, além do transporte dos idosos em terreno difícil, a equipe precisava carregar o cilindro de oxigênio. “Era um passo a passo que precisava ser feito com todo o cuidado”, conta. “Quando a gente finalmente conseguiu entregá-los a um suporte médico, ficou um sentimento de dever cumprido.” Quando conseguiram retornar à casa, os idosos mandaram um vídeo de agradecimento aos bombeiros. Ao final de tudo, não houve feridos ou desaparecidos na enchente. Os bombeiros ainda permaneceram na cidade de Santa Tereza para auxiliar na limpeza do lodo.
Ato de bravura
Há cerca de quatro anos, Natanael Ferrão Moreira dava seus primeiros passos na profissão de bombeiro. Sua formatura havia ocorrido apenas dois meses antes. Na época, aos 24 anos, atuava no Pelotão de Bombeiros de Santana do Livramento, embora residisse em Alegrete. Na fria manhã de 26 agosto de 2017, ele retornava de carro para casa e viu uma pessoa na Ponte Borges de Medeiros jogando-se do Rio Ibirapuitã. Tratava-se de um homem e, na água, dava claros sinais de que pedia por socorro. “Parei o carro e desci pela lateral da ponte, onde tem uma trilha e fui averiguar a situação. Não havendo outra maneira de salvá-lo, entrei no rio.” A correnteza estava muito forte e o nível da água mais elevado do que o normal, porque havia chovido bastante. “Na época, eu não tinha treinamento mais técnico para salvamento aquático, não era guarda-vidas militar.” Não havia como retornar à margem. “Só pude nadar um pouco contra a corrente junto com ele, mas consegui levá-lo até uma posição de segurança no meio do rio com uns galhos a cerca de 10 metros da ponte.” Ferrão permaneceu naquele lugar segurando-se e protegendo o resgatado como podia até ser retirado pelos colegas. “Apesar da ação rápida do pelotão de Alegrete, são situações que envolvem muita cautela. Demandou certo tempo, 10 ou 15 minutos dentro d’água, água fria, a vítima saiu em estado de hipotermia.”
Após o resgate, o homem salvo se mostrava confuso, não conseguia informar o próprio nome. Ferrão recorda que mais tarde foi visitá-lo no hospital. O homem se salvou. Em 20 de agosto de 2020, já lotado na unidade do Alegrete, Ferrão foi promovido a sargento por ato de bravura.
Uma vida frágil nas mãos
Trabalhando em Alegrete, um colega de farda do sargento Ferrão também ganhou notoriedade salvando uma vida em 20 de novembro passado. Neste caso, a vida de um bebê de cinco dias. O bombeiro militar temporário Josué Martins Oribes, soldado Martins, então com 25 anos e pouco mais de dois anos na corporação, estava de serviço. Como seus colegas foram atender uma ocorrência, ele se encontrava sozinho no quartel. Ouviu alguns gritos na rua e decidiu ver o que ocorria. Naquele momento, um carro entrou no pátio do quartel. “Uma senhora com a cabeça fora da janela do veículo gritava ‘socorro, socorro, tenho um bebê engasgado’.” Assim que o veículo parou, um homem pegou a menina e a colocou nos braços do soldado Martins. Explicou desesperado que a bebê havia se engasgando com o leite materno. Casado e pai de uma menina de 7 anos, Martins compreendeu bem o drama do casal. Sabia que precisava agir rápido. A criança estava inconsciente e não conseguia respirar. “Comecei a manobra de Heimlich, que é para a desobstrução das vias aéreas. Coloquei ela de bruços no meu antebraço e comecei a realizar a manobra”, descreveu. “No primeiro tapinha nas costas, ela já deu uma reagida e, no segundo, realizando a manobra, virei ela para mim e pude ver que abriu os olhinhos e conseguia respirar novamente.” Posteriormente foi feito o contato com o Samu para levar a menina a uma UPA e avaliar seu estado de saúde. Martins conta que mais tarde soube pela imprensa que a menina estava bem e tinha voltado para casa.
O comandante do Corpo de Bombeiros de Alegrete, 1º tenente Delzevan Silva de Ávila, destacou a importância do trabalho de pessoas como o soldado Martins e o sargento Ferrão. “O bombeiro já tem no sangue a determinação de salvar vidas. Muitas vezes arriscando a própria vida para salvar a dos outros.”
"É um dom"
Salvar a vida de uma criança sempre é uma experiência inesquecível. O bombeiro comunitário Luiz Carlos Schmidt tem 60 anos de idade e 37 de corporação, em Canela. Porém, em toda a sua trajetória, apenas recentemente viveu essa situação, só que duas vezes no espaço de poucos dias. O primeiro caso foi em dezembro do ano passado. A pequena Cecília, de 3 meses, foi salva por Schmidt após se engasgar com o leite materno. A ocorrência foi à noite, no momento em que ele estava em horário de descanso. “Escutei um carro no portão buzinando, quando saí, avistei o carro, desceu um senhor que gritou que sua filhinha estava engasgada”, conta. “Abri o portão, ele entrou com o carro no pátio e me alcançou a criança, ela estava desfalecida, nem respirava.” Schmidt pegou a criança, colocou de bruços no antebraço e deu cinco tapinhas nas costas. “Ela não voltou, virei ela de frente, botei a minha boca na boquinha dela e puxei o leite de volta”, explica. “Neste momento ela voltou a si.” A criança foi encaminhada ao hospital e se recuperou. Além de salvar uma vida, o bombeiro ganhou uma afilhada. Os pais da criança o convidaram para ser o padrinho de batismo. “Tenho uma afilhada e me considero um pouco pai também”, diz, emocionado, acrescentando que a satisfação de salvar uma criança é impossível de ser explicada.
A emoção se repetiria semanas depois. “Dessa vez foi um menino com 1 mês, ele também tinha se engasgado com leite materno.” Schmidt repetiu os procedimentos. A criança se recuperou e foi levada ao hospital. Apesar das quase quatro décadas de serviços à comunidade, ele assegura que não pensa em parar, pois entende que nasceu para ser bombeiro. E observa que já se passaram cinco anos da idade e do tempo de trabalho para se aposentar. “Acho que tenho muita coisa ainda para fazer pela comunidade”, argumenta. “O bombeiro não é o querer ser. Já tem que nascer com amor pela profissão. Não se constrói o bombeiro, é um dom.”
A experiência do SCAB
O bombeiro civil Christofer Rosa Pereira, 31 anos, é comandante do SCAB de Serafina Corrêa. Sua equipe prestou auxílio em ocorrência de vulto em 24 de janeiro. Um incêndio consumiu o andar superior de um prédio comercial em Guaporé, município vizinho de Serafina Corrêa. O SCAB auxiliou o Corpo de Bombeiros local fornecendo dois caminhões e soldados. “Atuamos em todas as partes em que o bombeiro militar atua”, diz, salientando que o SCAB só não realiza vistorias de incêndios e PPCIs, atribuições exclusivas do Corpo de Bombeiros Militar.
Outro episódio dramático, em 21 de maio, foi o caso de um jovem mecânico de Serafina Corrêa que foi vítima de uma explosão enquanto cortava um tonel de combustível vazio. “Quando chegamos ao local, o rapaz tinha tido grande perda de massa craniana, lesões bem extensas na face, no braço direito e no tórax”, descreve. Após os procedimentos de resgate, o levaram para o hospital. “Ele teve uma parada cardíaca, conseguimos reanimá-lo e o médico conseguiu intubar. O removemos para Passo Fundo, que é a nossa referência, lá foram feitas as cirurgias. A gente teve a boa notícia há 20 dias, ele retornou para o hospital de Serafina, está começando a andar e falar novamente.”
O comandante conta que seu fascínio pela vida de bombeiro vem da infância em sua terra natal, Rio Grande. Ele morava perto do quartel e adorava ver as viaturas, ouvir a sirene. Mas o fator decisivo veio na adolescência. Aos 16 anos, estava frequentemente no hospital ajudando a cuidar de sua já falecida avó, que sofria de esclerose lateral amiotrófica. Certo dia, a casa de saúde recebeu um grande número de vítimas de um acidentes de ônibus. Como já ajudava o pessoal da enfermagem, aceitou apoiá-los com o transporte de macas e outras tarefas que estavam ao seu alcance. “Comecei a fazer cursos na área de atendimento pré-hospitalar, percebi que era o que queria e aí, como bombeiro, realizei tudo”, concluiu. “A gente é um pouco louco para correr para um lugar de onde todo mundo foge”, brinca.
A corporação no RS
O Corpo de Bombeiros Militar do RS (CBMRS) conta hoje com aproximadamente 3,1 mil soldados em 93 cidades gaúchas. De acordo com o comandante-geral, coronel César Bonfanti, cidades-sede são sempre as com maior número de habitantes. “O que não quer dizer que a gente não atenda o restante. Cada cidade é responsável por municípios próximos. O deslocamento aumenta um pouquinho em termos de tempo de resposta, mas damos atendimento a todo o Estado.” Segundo ele, até o final do ano será inaugurada uma unidade na única cidade com mais de 50 mil habitantes que não tinha Corpo de Bombeiros ainda, que é Canguçu.
Apenas neste ano, segundo os indicadores do CBMRS, foram atendidas mais de 36,5 mil ocorrências. O incêndio está entre os atendimentos emergenciais mais comuns, com 9.114 casos até junho. Mas a maioria das ocorrências são de atendimento pré-hospitalar em acidentes, até junho eram 10.543. O coronel Bonfanti explica que gradativamente as corporações estão sendo equipadas com viaturas de resgate em padrão próximo ao do serviço do SAMU. “Mas voltado à emergência, ao acidente de trânsito, a todas aquelas ocorrências que são emergenciais.” O serviço pré-hospitalar dos Bombeiros já está em 65 municípios.
O comandante explica que a disciplina está inserida na formação do soldado no Estado. “Das 1,7 mil horas de curso, os alunos recebem 60 horas específicas sobre atendimento pré-hospitalar. E depois temos um curso de especialização nesta área para quem atua.”
Manter essa estrutura não é nada simples, admite o coronel Bonfanti. Para citar um exemplo, adquirir itens fundamentais, como capacete e botas, requer investimento de R$ 10 mil por servidor. Uma viatura de combate a incêndio representa R$ 800 mil. “Com uma viatura do Corpo de Bombeiros nós compramos três, talvez quatro, viaturas para a Brigada e a Polícia Civil. E blindadas.”
No caso de Porto Alegre, o comandante avalia que as viaturas estão bem distribuídas. “Nosso único problema, e já estamos resolvendo através de licitação, é a estação do Partenon, que está desativada. Vamos ter que fazer uma reforma. Acredito que no início do ano que vem ela já esteja em operação”, anuncia, salientando que o Partenon é atendido de forma satisfatória pela estação Teresópolis.
SCAB
Dentro da área do voluntariado, foi criado no Rio Grande do Sul o primeiro SCAB (Serviço Civil e Auxiliar de Bombeiro) em Serafina Corrêa, um modelo voluntário que mantém a vinculação com o CBMRS. A assinatura do termo para sua criação foi em 1º de julho de 2020. “É uma nova modalidade do CBMRS na prestação de serviço de bombeiro no Estado”, explica o bombeiro civil Christofer Rosa Pereira, 31 anos, e comandante da corporação no município. Ao SCAB de Serafina Corrêa juntam-se mais 10 cadastrados e regularizados no Estado. Atualmente, mais 25 estão em processo de regularização.
Pereira é um exemplo dessa interação entre Estado e voluntariado. Anteriormente, atuou como bombeiro temporário (período de dois anos e mais um ano de renovação) no 3º Comando Regional de Bombeiros, em Rio Grande. Após sua saída do CRB, foi convidado a retornar ao trabalho, só que dentro do modelo SCAB. Concursado na Prefeitura de Serafina Corrêa, ele é bombeiro civil classe III, com 576 horas de treinamento, e qualificado para o comando da unidade. “Existem quatro padrões de bombeiro hoje no SCAB, o bombeiro municipal, o bombeiro misto, o comunitário e o totalmente voluntário”, detalha. “Aqui na cidade hoje nós temos o padrão misto.” Assim, trabalham no SCAB funcionários da prefeitura e voluntários. Pereira e mais um colega são lotados e remunerados pela prefeitura, embora cedidos para o SCAB. E ainda há mais 18 voluntários que atuam sem pagamento. Apesar disso, todos os cursos de qualificação na área são bancados pelo município.
Os SCAB atuam em ações pedagógicas, de combate, buscas e salvamentos em incêndios e de defesa civil. As quatro formas de organização do SCAB (municipal, voluntário, privado ou misto) são regulamentadas, credenciadas e fiscalizadas pelo do CBM.
Voluntários
A sociedade gaúcha não conta apenas com o Corpo de Bombeiros Militar e os SCABs. Diversas cidades também são atendidas pelos bombeiros voluntários, organizações de sociedade civil (OSCs) que, mais do que oferecer suporte aos bombeiros militares, em muitos casos cumprem o papel de bombeiros da comunidade. No Estado são cerca de 54 corporações em diferentes regiões. Deste total, 46 estão associadas à Voluntersul, a Associação dos Bombeiros Voluntários do Rio Grande do Sul. O presidente da entidade é o comandante da corporação de São Sebastião do Caí, Anderson Jociel da Rosa. “Se a gente for resumir o serviço de bombeiros voluntários, a gente pode dizer que é a comunidade trabalhando para a comunidade.” Atualmente, ele também preside a Confederação Nacional de Bombeiros Voluntários. Segundo ele, só os voluntários da Voluntersul atendem a pelo menos 90 municípios. “A corporação mais antiga, e que também é nossa afiliada, é a de Nova Prata, existe desde 24 de junho de 1967”, explica. Ou seja, há mais de 50 anos o voluntariado atua no combate ao incêndio e em diferentes tipos de salvamento.
A Voluntersul reuniu informações da atuação voluntária em 2020, ouvindo corporações associadas e não associadas. O documento aponta que as unidades foram responsáveis por 28.414 atendimentos no ano passado, incluindo combate a incêndios, resgate e serviço de ambulância. Outro dado importante é que a grande maioria dos voluntários não recebe remuneração de nenhuma espécie. “Temos 1,3 mil voluntários em nossas corporações filiadas e só cerca de 8% a 10% recebem remuneração, que geralmente são chefes de plantões, comandantes locais ou alguém que tem cargo mais específico dentro da corporação”, explica Anderson da Rosa.