Com as rédeas da agropecuária nas mãos

Com as rédeas da agropecuária nas mãos

Mulheres ocupam a liderança em propriedades rurais do Rio Grande do Sul e ganham protagonismo em atividades antes marcadas pela presença masculina

Por
Patrícia Feiten

Desde de sua criação, em 1963, a Associação Brasileira de Angus (ABA) sempre foi liderada por nomes do sexo masculino de peso no cenário agropecuário do país, mas essa tradição está prestes a ser quebrada. Nesta quarta-feira (24), uma assembleia geral confirmará a eleição da empresária Mariana Tellechea para um mandato de dois anos no comando da entidade. Proprietária da Cabanha Basca, estabelecimento tradicional de Uruguaiana, ela concorre à presidência em chapa única e assumirá o posto em janeiro, em um ano emblemático para a instituição. Além de completar seis décadas de atividade, a ABA comemorará, em 2023, os 20 anos de lançamento do seu programa de carne certificada, desenvolvido em parceria com a indústria frigorífica – a iniciativa prevê bonificações para produtores que atendem a rígidos padrões de qualidade e acabamento de carcaças.

Graduada em medicina veterinária, Mariana diz que terá enormes desafios. Para encará-los, buscará inspiração em duas referências caras – o pai, Flávio Bastos Tellechea, e o irmão, Flávio Antônio Franco Tellechea, já ocuparam o mesmo cargo na entidade. “Me sinto bastante em casa. Já participei de duas diretorias também, tenho um relacionamento com a associação, então estou bastante entusiasmada”, afirma. 

Com um currículo repleto de sucessos, a produtora ilustra o protagonismo cada vez maior das mulheres em negócios rurais ligados à genética de ponta. A carreira ganhou força em 1990. Após o falecimento do patriarca da família, Mariana esteve por 19 anos à frente da gestão do condomínio Bastos Tellechea, empreendimento que se tornou uma espécie de grife do cavalo crioulo. No período, os equinos oriundos do criatório conquistaram 36 títulos, entre Ouro, Prata e Bronze, no prestigiado torneio Freio de Ouro, além de prêmios em competições morfológicas. 

Na Cabanha Basca, fundada em 2008, a pecuarista atua na venda de reprodutores da raça crioula e das raças bovinas Angus e Brangus. A participação feminina nesses setores não a surpreende. “Temos muitas mulheres que comandam seus negócios, muitas agrônomas, veterinárias. Na parte de remates, conheço várias cabanhas que têm mulheres na liderança da organização e da seleção dos animais. Então, já existe um universo feminino muito forte e atuante”, afirma.

"Temos muitas mulheres que comandam seus negócios, muitas agrônomas, veterinárias. Na parte de remates, conheço várias cabanhas que têm mulheres na liderança da organização e da seleção dos animais."

Mariana Tellechea, Produtora rural.

Uma mostra da pujança feminina no agro foi vista no início deste mês, na primeira edição do leilão MulherAgro, em Lavras do Sul. Organizada pela Comissão Feminina do Sindicato Rural do município, dentro da programação do Universo Pecuária – Futuro, Negócio e Sustentabilidade, o remate colocou em pista 1.363 mil animais apresentados por 47 produtoras rurais da região da Campanha Gaúcha, gerando uma receita de R$ 3,56 milhões. Antes do início das vendas, a distribuição de rosas vermelhas à plateia enfatizou a importância da iniciativa histórica. 

“Foi emocionante, fizemos uma abertura diferenciada. E as produtoras trouxeram um gado de excelente qualidade”, diz a presidente da comissão, Rossana Boemo Ferreira. Segundo a dirigente, a ideia do leilão surgiu da necessidade de dar visibilidade às pecuaristas e, com os resultados positivos, uma nova edição já está sendo prospectada para o próximo ano. “Tivemos uma boa parceria com os escritórios de remates da cidade, e eles abraçaram a ideia”, destaca. 

A exemplo do que se constata em outros recortes da economia brasileira – e apesar da alta capacidade demonstrada pelas profissionais do sexo feminino em diferentes fronts do agronegócio –, o setor ainda tem muito a avançar na questão da igualdade de oportunidades para ambos os gêneros. Para a leiloeira rural gaúcha Patrícia Cáceres Gonçalves, a comercialização de animais é uma das áreas que precisam se abrir mais à liderança delas. “Como a gente vai falar em sustentabilidade na pecuária se não temos o mínimo de equilíbrio?”, questiona.

Primeira mulher a conduzir leilões rurais no país, Patrícia estreou na atividade aos 18 anos. Ela aprendeu a arte do martelo com o pai, Pedro Paulo Gonçalves, fundador da Guará Remates, mas acabou interrompendo a carreira por 20 anos para se dedicar ao trabalho de fonoaudióloga no Rio de Janeiro. Com a morte do pai em 2020, Patrícia decidiu voltar ao mundo dos eventos. Neste ano, fez história na Expointer ao narrar um remate de búfalos no Parque de Exposições Assis Brasil – o primeiro pregão comandado por uma mulher em 45 edições da mostra gaúcha. 

Agora, a profissional luta para derrubar as barreiras que identifica nesse mercado e desbravar caminhos para outras mulheres. “Não quero mais ser a única”, afirma. “Já temos (leiloeiras) credenciadas no Brasil, precisamos ter uma articulação. (É preciso) que as mulheres se habilitem, que os homens nos apoiem.”

Criação de gado com toque feminino

Ao assumir a direção de empreendimentos rurais iniciados pelos pais e avós, além de papéis de liderança em entidades representativas do setor, mulheres contribuem para colocar a pecuária gaúcha em lugar de destaque no cenário nacional

Fernanda Costabeber, Fazenda Pulquéria

Fernanda acredita que as mulheres já representem hoje 50% dos espaços na administração das propriedades rurais do Rio Grande do Sul | Foto: Arquivo pessoal / CP.

Na pecuária gaúcha, não são raros os casos em que a segunda ou terceira geração, após estudar as melhores práticas de manejo e gestão, acaba introduzindo nas propriedades rurais uma visão mais moderna, decisiva para um salto de eficiência ou mesmo para a sobrevivência do negócio familiar. Na Fazenda Pulquéria, localizada no município de São Sepé, na região central do Rio Grande do Sul, quem trouxe a nova perspectiva foi a veterinária Fernanda Costabeber. Atualmente focada na terminação de bovinos de corte da raça Angus, a propriedade foi adquirida pelos avós de Fernanda, que eram empresários em Santa Maria e viram no investimento uma alternativa de diversificar atividades. 

“Meu pai assumiu a fazenda em 1998 e, a partir dali, ela virou uma chave na nossa família. Ou aquilo dava certo ou a gente ia acabar arrendando (a terra) e fazendo alguma outra coisa. Acabei criando mais do que uma paixão, mas um senso de responsabilidade”, conta Fernanda. Após a graduação em veterinária na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ela morou nos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul por um ano e meio, retornando à fazenda para auxiliar os pais.

A parceria entre as duas gerações resultou em mudanças que se refletiram nos números de desempenho. Graças a investimentos em sanidade animal, a fazenda conseguiu diminuir os índices de mortalidade e melhorou os indicadores de ganho médio diário de peso, passando de um estoque de 3,5 mil cabeças em 2016 para 7 mil exemplares em 2020. No período, a Pulquéria também se tornou uma referência de qualidade no segmento de carnes – é a única propriedade gaúcha a fornecer animais para a produção de cortes carimbados com o Selo Angus Gold, chancela da Associação Brasileira de Angus (ABA) que atesta carcaças superiores em critérios como pH, cor e grau de marmoreio.

No ano passado, a fazenda reduziu o rebanho para 5,6 mil animais e redirecionou o foco da engorda dos animais para o sistema de suplementação a pasto, considerado uma estratégia mais competitiva. Mas a meta para os próximos anos, após esse período de adaptação ao cenário econômico, é ampliar novamente o rebanho. “Este ano, a gente já está vendo um equilíbrio maior. Queremos colocar o pé no acelerador de novo e voltar a produzir carne de qualidade em volume para o Brasil todo e para o mundo”, afirma Fernanda.

Para a veterinária, o agronegócio vem assistindo à ascensão de uma “geração forte” de mulheres na gestão das fazendas de gado. “A gente vem em um meio que era tradicionalmente dominado pelos homens, e eles estão abrindo essa oportunidade. Acho que, hoje, na minha geração (a proporção entre os gêneros) já é 50-50. Grande parte delas está tocando os negócios com as famílias. Acredito na sinergia”, diz.

Ângela Linhares da Silva, Gap Genética

Mais focadas e detalhistas, as mulheres conquistam mais da metade das vagas de estágio oferecidas pela GAP anualmente, afirma Ângela | Foto: Arquivo pessoal / CP.

Responsável pela estratégia de seleção do plantel de bovinos da GAP Genética, de Uruguaiana, a veterinária Ângela Linhares da Silva é não apenas um exemplo do protagonismo das pecuaristas no Rio Grande do Sul, como também uma testemunha do avanço das mulheres nas áreas ligadas ao campo. No dia a dia da venda de reprodutores, ela atende um número crescente de clientes mulheres, principalmente das gerações mais jovens. A propriedade, que desenvolve programas de estágio em parceria com faculdades de veterinária e zootecnia, também vem atraindo cada vez mais estudantes do sexo feminino interessadas em trilhar carreiras no setor. “Recebemos em média 10 estagiários por ano e, desses, mais da metade são mulheres”, afirma Ângela.

Para a veterinária, homens e mulheres hoje encontram igualdade de condições de trabalho na pecuária, o que contribuiu para que elas conquistassem mais espaços nessa área do agronegócio. Mudanças como a modernização das estruturas de currais e a valorização do bem-estar animal, por exemplo, tornaram o manejo mais humanizado e menos exigente em termos de força física, diz a pecuarista. Mas as mulheres vêm brilhando também na gestão das propriedades. “Acho que elas, muitas vezes, são muito mais focadas. A mulher é mais detalhista, em geral, então entrou bem neste setor”, avalia a produtora.

Ângela recorda que, após se formar pela UFRGS, teve um grande incentivo profissional na convivência com o geneticista Luis Alberto Fries, então sócio da GenSys Consultores Associados. O especialista, falecido em 2007, foi contratado pela GAP no início da década de 1990. “Me deu esta gana de saber mais e mais sobre genética”, conta Ângela. Entre as experiências marcantes que impulsionaram sua carreira na GAP, ela cita estágios feitos em propriedades rurais argentinas e a liderança do Conselho Técnico da Associação Brasileira de Brangus (ABB) durante oito anos – na época, ela era a única mulher a fazer parte do grupo. “Agora vejo que minha função é mais ensinar para essa nova geração que vai entrando”, afirma.

Nos últimos cinco anos, a cabanha de Uruguaiana comercializou em média de 750 touros das raças Angus, Brangus, Hereford e Braford por ano. Segundo Ângela, consolidar-se entre os plantéis mais reconhecidos do país envolve uma série de desafios, sendo o maior deles a coordenação de uma grande equipe de técnicos. “(A fazenda) é uma fábrica a céu aberto, precisamos lidar com a imprevisibilidade do clima, conseguir trabalhar dentro de um orçamento”, diz a pecuarista.

As mulheres no agro

<SC110><EN>Veja alguns dados da pesquisa Mulheres no Agronegócio*, da Deloitte, 
apresentada em outubro de 2022 no 7º Congresso Nacional de Mulheres
do Agronegócio (CNMA), em São Paulo:<EM><QA0>
O número de mulheres trabalhando em empresas 
do agronegócio no Brasil aumentou 13,3% entre o terceiro trimestre de 2020 e o terceiro
trimestre de 2021. Ainda assim, elas representam 
apenas 16,2% do total empregado pelo setor. A pecuária ocupa a 19ª posição em 
participação feminina entre 21 setores.
As mulheres representam 27% dos 
profissionais em cargos de liderança nas 
propriedades rurais, enquanto a média 
entre os setores do Brasil é 34%.
A oportunidade de carreira é o principal motivo
(citados por 39% de mulheres) para atuação no agronegócio entre as mulheres que atuam em empresas familiares. 
No caso das que atuam em empreendimentos 
não familiares, as razões mais apontadas são
oportunidades de carreira (43%) e influência 
da família ou amigos (43%).
Para 76% das mulheres, a mudança 
cultural nas organizações agrícolas é 
fundamental para vencer os desafios de
paridade de gênero, Das mulheres que
já atuam no setor, 41% dizem enfrentar 
questionamentos sobre sua
capacidade no trabalho. 
<EM><QA0>
*Levantamento feito entre 17 de agosto e 26 setembro de 2022 
com 63 participantes de diferentes organizações, entre as 
quais 21% são multinacionais e 10% estão listadas na bolsa 
de valores brasileira. Inclui dados do Centro de Estudos
Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq/USP 
e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados 
(Caged) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Susana Macedo Salvador, CIA. Azul Agropecuária

Determinada a trabalhar com pecuária desde que saiu da universidade, Susana diz que não enfrentou entraves por ser mulher, mas investiu fortemente em qualificação | Foto: Douglas Salgueiro/ Divulgação/ CP.

Quando conquistou seu diploma da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há 36 anos, a veterinária Susana Macedo Salvador era uma das poucas mulheres que saíam da graduação determinadas a se aventurar na pecuária. A maioria das colegas optava por atuar no segmento de pequenos animais. O fato de ter nascido no meio rural, avalia a produtora, abriu oportunidades, mas também trouxe uma carga extra de responsabilidade, já que Susana dedicou seu talento à prosperidade do empreendimento centenário iniciado pela família na Fronteira Oeste do Estado, a Cabanha Azul, umas das principais referências brasileiras em seleção genética de animais de raças britânicas.

A escolha profissional acabou fortalecendo o amor pela terra e pelos animais que herdou das gerações anteriores. “Até o quarto ano primário (atual quinto ano do Ensino Fundamental), estudei na estância, com uma professora particular. Isso formou um vínculo muito forte com a atividade rural”, conta Susana. Após a graduação, ela passou a auxiliar o pai, o agropecuarista João Vieira de Macedo Neto, no controle dos plantéis puros das raças Angus e Devon da propriedade. Desde então, nunca mais saiu do campo.

Com a divisão do patrimônio familiar no final da década de 1990, Susana e o marido, Reynaldo Titoff Salvador, assumiram a liderança da Cia. Azul Agropecuária, em Uruguaiana. Focado no melhoramento genético de bovinos Angus, Braford e Ultraback, o criatório vende de 360 a 380 touros por ano e tem mais de 30 reprodutores em centrais de inseminação artificial, números que traduzem sua relevância no mercado de cruzamentos. “O que fizemos foi nada mais do que dar continuidade a todo aquele trabalho que vinha sendo realizado na empresa do pai”, diz Susana.

A pecuarista afirma que nunca enfrentou entraves por ser mulher. “Sempre estudei muito, procurei estar atualizada, me cercar de pessoas que fossem contribuir para a minha formação”, observa. Da atuação no Conselho Técnico da Associação Brasileira de Angus, ela extraiu muitos aprendizados. “Sempre me considerei uma excelente catalisadora de boas ideias, então, escuto as pessoas. As portas se abriam e, sempre que entrei em algum projeto, entrei de cabeça, acho que isso que me ajudou a conquistar esse espaço”, destaca.

Clarissa Lopes peixoto, Cabanha Pitangueira

Clarissa reconhece que não é fácil a posição da mulher na liderança das propriedades, mas avalia que não se sentiu discriminada desde que assumiu os negócios do pai | Foto: Mariana peixoto / Divulgação / CP.

“Sempre tive vocação para o agro, mas não tive competição em casa”, brinca a pecuarista Clarissa Lopes Peixoto, ao recordar sua trajetória à frente da Cabanha Pitangueira, marca associada ao pioneirismo no desenvolvimento da raça Braford. Há dois anos, ela passou a dirigir o criatório localizado em Itaqui após o falecimento do pai, Pedro Monteiro Lopes, que não teve filhos homens. Sob a liderança do conhecido agropecuarista, o grupo Pitangueira investiu inicialmente na produção de gado Nelore Mocho e chegou a manter uma propriedade em Rondonópolis, em Mato Grosso. Nos anos 1990, a família decidiu apostar no cruzamento com animais Hereford. “Usamos zebu por muitos anos. Na época, o Braford começava a ser registrado. A gente foi criando o modelo ideal e testando na própria fazenda”, conta Clarissa.

Com um rebanho de 12 mil animais, a estância produz hoje em torno de 500 touros Braford por ano, e a pecuária se impôs como o negócio principal do empreendimento. “Reduzimos a lavoura de arroz, plantando em áreas mais produtivas, com mais rotação (com a soja)”, explica Clarissa. Antes de se fixar definitivamente em Itaqui, ela trabalhou em Rondonópolis em dois períodos, de 1995 a 1998 e de 2003 a 2019. Apesar de perceber um maior conservadorismo no ramo pecuário gaúcho do que no estado do centro-oeste, Clarissa avalia que, ao demonstrar domínio da atividade, as mulheres conseguiram superar barreiras no setor. “(No Rio Grande do Sul), tu chegas numa roda, e a maioria são homens, nem sempre é tão fácil. Mas nunca me vi rotulada como mulher, acho que já passamos dessa fase de gênero”, diz.

Além de dirigir a Cabanha Pitangueira, Clarissa é vice-presidente da conexão Delta G, associação de agroempresas que fomenta o uso de tecnologia de ponta para aumentar a rentabilidade da pecuária de corte. Para a criadora, a troca de experiências e a busca de atualização são a base do sucesso nesse ramo do agronegócio, fortemente pautado pelo avanço científico. “É uma das maneiras de a mulher fazer a diferença, procurar o que tem de novo. Acho que ela é mais aberta neste sentido do que um pecuarista mais tradicional”, afirma.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895