Como fica o Brasil

Como fica o Brasil

O Reino Unido começa 2021 fora do bloco europeu. Essa separação também pode afetar países que não fazem parte do acordo, entre eles o Brasil

Por
Christian Bueller

Depois de completar o longo processo do Brexit, o Reino Unido deixou a União Europeia no dia 31 de dezembro e começou 2021 como país independente, com novas regras fronteiriças. Sua saída do bloco, no qual havia entrado em 1973, dominou a política britânica durante vários anos, desde o referendo de 2016.

O país é o 16º principal parceiro comercial brasileiro e o terceiro mais importante nas transações de serviços, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Pelo último levantamento da entidade, realizado em 2019, o Reino Unido foi o maior investidor direto no Brasil nos setores de eletricidade e gás, entre outros, respondendo por 2 bilhões de dólares ou 40% do total investido nesses segmentos naquele ano. Já no terreno das exportações, o Brasil tem o Reino Unido como principal destino de suas vendas de alta intensidade tecnológica para o continente europeu, em setores como aeronáutico e aeroespacial, veículos automotores e de aparelhos eletrônicos e de comunicações. Devido a essas relações, surgem dúvidas sobre como o Brexit poderia afetar o Brasil daqui para o futuro. Porém, especialistas dizem que, de início, não há com que os brasileiros se preocuparem.

De modo geral, o acordo recentemente assinado e suas consequências afetam apenas indiretamente o Brasil, conforme o doutor em Ciência Política e mestre em História pela Ufrgs Eduardo Svartman. “Por ora, há mais especulações e projeções do que dados concretos sobre seus impactos por aqui. O Brasil tem relações bilaterais com o Reino Unido e com os países da União Europeia, tem relações bilaterais com a UE e relações interblocos via Mercosul. São, portanto, vários canais que poderão ser afetados conforme novas regras e políticas forem sendo implementadas”, pontua. Como o acordo regula apenas as relações entre o Reino Unido e a UE, ainda é cedo para saber como estes atores se comportarão em relação ao Brasil, diz Svartman.

Em termos positivos, o professor da Ufrgs destaca a especulação de que os britânicos possam buscar acordos comerciais bilaterais com países como Brasil e se tornem mais receptivos aos produtos agropecuários brasileiros, uma vez que não estão mais atrelados à política agrícola comum europeia. “Contudo, não há garantias de que se avance nessa direção, há a possibilidade de o Reino Unido priorizar os Estados Unidos, também exportadores de soja e proteína animal e os países da Commonwealth (conjunto de territórios que eram administrados pelo Reino Unido), também concorrentes do Brasil no setor primário”, alerta Svartman. A assinatura do acordo, em princípio, diminui as indefinições e incertezas, especialmente para o setor privado, mas existem ponderações a serem feitas. “Há temores de que novas regras, tarifas e procedimentos criem dificuldades e custos adicionais ao comércio existente entre o Brasil e o Reino Unido”, lembra.

Como fator negativo, há o receio de, tanto o Reino Unido quanto a União Europeia, sofrerem retrações econômicas “para além do impacto econômico da crise sanitária causada pela Covid-19, diminuindo o comércio com o Brasil e acentuando a retração de investimentos externos aqui”, salienta Svartman. “A UE, por sua vez, vem reforçando a vinculação de sua agenda comercial com a normativa, de modo que direitos humanos, democracia, meio ambiente e respeito às diferenças são temas que também afirmam as suas relações com outros países”, conclui. Considerando o recente desempenho do Brasil nessa área, o professor acredita que estas relações com a UE devem ser mais difíceis.

O vice-presidente e coordenador da divisão de economia da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), Fernando Marchet, pensa parecido. “É possível fazer um acordo bilateral com a Inglaterra. Acredito muito mais do que o acordo do Mercosul com a União Europeia, pois acho que vai levar um tempo por conta da questão ambiental. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro estiver aqui, principalmente, França e a Europa em geral vão criar focos de resistência.” Para ele, o Brexit não tende a trazer maiores impactos para as exportações brasileiras. Mas os que virão, nessa primeira leitura, logo após o fechamento desse acordo, devem ser positivos. “As exportações brasileiras com a Inglaterra se concentram em café, frango, algum minério de ferro. Principalmente pelas características do Reino Unido, menos protecionista no que se refere à nossa principal pauta, que é o agronegócio. Hoje, vejo mais vantagens ao Brasil do que desvantagens”, opina Marchet.

Outro aspecto levantado pelo administrador é a moeda. “Podemos ver vantagem competitiva para o Real em relação à Libra. Mas muito pontual, pois, fazendo parte da União Europeia, a moeda, muito mais forte neste caso, perde um pouco de tração”, lembra Marchet. Ele é otimista quanto ao futuro pós acordo. “Não consigo ver algo que possa ser negativo. Algumas dúvidas ainda pairam, acho que temos que aguardar um pouco para ver a praticidade dele. A Inglaterra não aumenta automaticamente demanda por produtos do mundo porque vai ser tributada, mas poderá ser positivo para o Brasil porque vai fugir do protecionismo.”

Doutora pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), a professora de Relações Internacionais da Ufrgs Luiza Peruffo lembra que durante 2020, no período entre o anúncio do Brexit e o acordo entre Reino Unido e União Europeia, os britânicos firmaram mais de 60 acordos comerciais com diversos países, entre eles Estados Unidos, Japão e Turquia. “O Brasil ficou de fora deste grupo prioritário.” Em novembro do ano passado, autoridades do Brasil e do Reino Unido discutiram a possibilidade de negociar um futuro acordo comercial entre os dois países, além de uma decisão que eventualmente evitasse uma dupla tributação entre as duas economias.
Em nota, a Embaixada Britânica no Brasil afirma que a “parceria vai seguir forte”. O órgão diz ainda que o Reino Unido continuará a preparação para futuras negociações de um

Acordo de Livre Comércio com o Mercosul e que espera que mais brasileiros visitem o Reino Unido “quando as condições permitirem”. De acordo com a Embaixada Britânica, uma área-chave da cooperação entre o Brasil e o Reino Unido é a de ciência e inovação. “Aqui, temos progressos relevantes para compartilhar e continuar colaborando, como os acordos para desenvolvimento e distribuição das vacinas contra a Covid-19. Sabemos que só estaremos protegidos quando todos estiverem protegidos. Vacinados, estaremos prontos para reconstruir nossas economias em boas bases”, conclui a nota.

O professor de Relações Internacionais da ESPM Demétrius Pereira projeta uma possibilidade de acordo liberal do Reino Unido com o Mercosul. “O Brasil já tem um acordo com a União Europeia, negociado via Mercosul, pois estamos em uma união aduaneira. O Brasil não pode negociar sozinho, assim como os britânicos não podiam. Esse acordo deve ser mais liberal do que com a UE”, pondera.

Para quem pretende viajar pela Europa e passar pela terra da rainha, não haverá mudança, segundo Pereira. “As pessoas podem entrar no continente europeu pela França, Espanha ou outro país sem controle de fronteira. Mas o turista já precisava apresentar passaporte de novo ao entrar no Reino Unido. Isso não será alterado porque os britânicos já não faziam parte do acordo de Schengen, uma convenção entre países europeus sobre uma política de abertura das fronteiras e livre circulação de pessoas entre as nações”, explica. O professor da ESPM alerta que os britânicos, daqui para frente, podem estipular suas próprias regras neste quesito.

Fronteiras

Com a separação da UE, terminou a livre circulação de pessoas entre as duas margens do Canal da Mancha. A partir de agora, cidadãos dos 27 países do bloco europeu precisarão de visto para trabalhar e estudar no Reino Unido. Aqueles que residiam lá antes da separação manterão seus direitos. Também voltam a ser realizados controles aduaneiros esquecidos durante décadas, apesar da assinatura de acordo comercial com Bruxelas que evitou o caos nas trocas. Com escasso tráfego nas festas de fim de ano, não houve sinais dos temidos transtornos em portos, onde os funcionários começaram a implementar novos procedimentos. Nos dias seguintes, a situação também não mudou, apesar da travessia de mais caminhões, carregados com produtos de grande consumo que o país importa majoritariamente pelo porto de Dover. O acordo comercial assinado entre Londres e a UE, evitou tarifas e cotas em seu comércio bilateral, que ameaçavam ter graves consequências para a economia britânica, já muito afetada pela pandemia.

Fonte: AFP

Oportunidade para a União Europeia

A retirada do Reino Unido da União Europeia (UE) é uma perda inegável para o bloco europeu, mas a ruptura com um sócio desconfiado e difícil pode ser uma oportunidade única para a UE, avaliam especialistas. “Foi um longo caminho. É hora de deixar o Brexit para trás. Nosso futuro está construído na Europa”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, sobre o Brexit.

A saída britânica das instituições da UE e da união aduaneira representa, para os europeus, a exclusão de sua segunda maior economia e de uma potência nuclear, embora também retire do palco um ator cético quanto a uma integração mais profunda. “O Reino Unido nunca foi favorável ao surgimento de uma segurança europeia autônoma. Sempre defendeu o papel central da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte)”, disse Pierre Vimont, pesquisador associado da Carnegie Europe. “Foi, porém, após o referendo sobre o Brexit, precisamente o momento em que começou a surgir a ideia de uma defesa europeia”, disse. Embora agora esteja totalmente fora da UE, o Reino Unido ainda faz parte da Otan.

Na política externa, analistas duvidam que Londres esteja se distanciando das posições europeias em questões internacionais importantes, como o programa nuclear iraniano ou as relações com a Rússia e o Oriente Médio. “Há muitas convergências em uma série de questões, em que britânicos e europeus estão na mesma frequência de onda”, comentou o historiador Robert Frank. A retomada das sanções ao Irã anunciadas unilateralmente por Washington é um bom exemplo, já que os Estados Unidos enfrentaram um bloco unido de França e Alemanha, mas que também incluiu o Reino Unido do primeiro-ministro Boris Johnson.

Vimont disse que Londres vai querer continuar tendo uma “relação especial com França e Alemanha, e esse casal franco-alemão não quer romper essa relação”. Aparentemente, a esperança do Reino Unido é “voltar a entrar pela janela nas discussões diplomáticas europeias”, brincou.

Os diplomatas britânicos também precisarão do apoio da UE para suas relações bilaterais ou para tentar estabelecer laços com grupos de países, como o de Visegrado (Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia), acrescentou o pesquisador.

A chegada do novo presidente dos Estados Unidos também é um fator a ser levado em consideração, já que Joe Biden sempre se opôs ao Brexit. “Acho que ele estará menos inclinado do que (Donald) Trump a dividir os europeus”, disse Eric Maurice, da Fundação Schuman.

Economicamente, a aprovação do enorme acordo europeu sobre o plano de recuperação pós-pandemia, que cria uma dívida comum, teria sido, sem dúvida, muito mais difícil com o Reino Unido. “Com os britânicos, não poderíamos nem mesmo ter discutido” o bilionário plano de reativação, estimou Frank, autor de um livro dedicado às relações anglo-europeias.

Além disso, o Reino Unido sempre ocupou um lugar à margem da UE. Ficou de fora de muitas políticas de integração (como os acordos de Schengen sobre livre circulação e a moeda única) e se opôs, ferozmente, a qualquer protecionismo em questões comerciais, em particular em relação à China e aos Estados Unidos.
Sua contribuição para a construção europeia terá sido, sobretudo, a de uma Europa liberal. “No entanto, com a pandemia, percebemos que o Estado era, em última análise, necessário, e estamos nos afastando dessa visão ultraliberal que muitos eurocéticos denunciam”, explicou Frank.

Embora o Brexit seja um novo capítulo na tumultuada história entre a ilha e o continente, pode não ser o último. “Durante séculos, eles estiveram às vezes próximos e às vezes distantes. Essa oscilação vai continuar, a menos que a Europa fracasse. Mas, se, graças ao Brexit, a UE puder se reformar e funcionar melhor, podemos contar com o pragmatismo para que os britânicos digam 'voltamos!'", concluiu Frank.

Fonte: AFP

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895