A falta de regulamentação do mercado de criptomoedas no Brasil acende um alerta para possíveis crimes envolvendo este tipo de investimento. Um dos pontos críticos está relacionado à moeda virtual Bitcoin, uma das mais conhecidas e procuradas. Como, até o momento, as legislações sobre o tema seguem estacionadas no Congresso Nacional, a brecha para golpes está aberta. Polícia Federal, Ministério Público Federal e Polícia Civil, em todos os estados brasileiros, atuam em diversas investigações vinculadas às criptomoedas. Os casos mais frequentes são de empresas de fachada que se aproveitam da popularidade das moedas virtuais para realizar crimes como lavagem de dinheiro, extorsão e sequestro de bens.
Não são poucos os casos em que pessoas interessadas em investir em Bitcoins acabam lesadas e com prejuízos astronômicos. Além da ausência de regulação, as informações escassas e desencontradas acabam complicando o acesso a formas seguras de investimento, como compra e venda das criptomoedas. Especialistas da área e integrantes dos órgãos da Segurança Pública reforçam que o problema não é o Bitcoin ou as outras moedas virtuais, mas os criminosos que se aproveitam da movimentação crescente em torno desses investimentos.
De acordo com o delegado e coordenador do Laboratório de Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil do Estado de Goiás, Vytautas Fabiano Silva Zumas, os criptoativos (como também são chamadas as criptomoedas) podem estar envolvidos com crimes cibernéticos ou não. “Se estiverem, são oportunidades em que o criminoso visa o criptoativo da vítima. São crimes que funcionam da mesma maneira quando a pessoa perde a senha de acesso do e-mail ou quando outra pessoa consegue entrar em uma rede social, todas aquelas falhas de segurança, configuram a falta de precaução da vítima e a vulnerabilidade explorada pelos criminosos”, explica Zumas.
Segundo ele, isso também pode ocasionar a perda dos criptoativos mediante a invasão da conta da pessoa em uma casa de câmbio (exchange) ou do aplicativo de carteira digital utilizado para armazenar os criptoativos. Por conta disso, Zumas reforça a importância de utilização de senhas fortes e também do segundo fator de autenticação, além de prestar atenção nos sites acessados. As precauções que visam evitar os crimes cibernéticos relacionados às criptomoedas, conforme Zumas, são as mesmas quanto a crimes cibernéticos de modo geral.
O que tem acontecido muito no Brasil, segundo ele, e que já contabiliza um número significativo de vítimas, são as falsas promessas de lucros exorbitantes mediante investimento em criptoativos. “Hoje o Bitcoin está batendo R$ 240 mil; em duas semanas subiu mais de 30%, pois no final de janeiro estava em R$ 169 mil. Então, isso faz com que os desavisados caiam em promessas falsas de investimentos que gerariam retornos exorbitantes, como 300% por mês”, revela.
De acordo com Zumas, os criminosos criam plataformas falsas. “A plataforma existe, porém não há investimento algum em criptoativo. O criminoso informa que está tendo lucro, mas a vítima nunca consegue sacar, são os chamados esquemas Ponzi”, diz. Trata-se de uma operação criminosa do tipo pirâmide, que envolve a promessa de pagamento de rendimentos anormalmente altos à custa do dinheiro pago pelos investidores. “O que acontece é que uma pessoa pede o dinheiro de terceiros, como se fosse investimento em um projeto voltado às criptomoedas, por exemplo, e ela informa que dará parte do lucro. Porém, o que acontece é que as pessoas colocam dinheiro e não há nenhum investimento, o criminoso começa a pegar o dinheiro para ele.” Além disso, o esquema prevê atualização da plataforma, como se ela informasse que as vítimas estão recebendo parte dos lucros. “Os investidores ficam contentes e acabam injetando ainda mais dinheiro”, afirma, complementando que, na verdade, é tudo uma falsa expectativa.
Há casos em que algumas pessoas conseguem sacar parte dos valores, pois o criminoso precisa agir dessa forma para que o esquema se sustente. “Isso acontece demais no Brasil e, a depender do crime, pode ser tipificado como crime contra o Sistema Financeiro Nacional, com base no nível de organização desse esquema e aí são ilícitos de competência da Justiça Federal e de atribuição para investigar da Polícia Federal”, detalha.
Conforme Eduardo Dalmolin Bollis, titular da Delegacia de Combate à Corrupção e Crimes Financeiros da Polícia Federal, algumas pessoas captam recursos de outros realmente para fazer investimento em Bitcoins e outras unicamente para golpe. Nesses casos, as pessoas que foram lesadas podem reaver o dinheiro a partir daquilo que for encontrado com o estelionatário. “É uma discussão mais ampla, que envolve muitos debates jurídicos, principalmente se a pessoa entregou dinheiro a quem fez os investimentos e às vezes até recebeu algum retorno financeiro daquilo em determinada época. O ideal é que, uma vez feita a investigação, apurados os culpados e coisas do tipo, se possa arrecadar o dinheiro dessas pessoas e fazer a devolução para aqueles que foram prejudicados, mas são temas um tanto quanto recentes ainda. Até a própria Justiça tem debates a respeito disso”, define.
Operações da polícia federal
A Polícia Federal realizou recentemente pelo menos duas grandes operações com foco em crimes relacionados às criptomoedas. A primeira delas foi a Operação Egypto, que investigou uma instituição financeira ilegal que atuava com investimentos em criptomoeda. Ela foi deflagrada em maio de 2019. Conforme a Polícia Federal, somente uma das contas da empresa teria recebido créditos de mais de R$ 700 milhões entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019.
A ação contou com o apoio da Receita Federal e da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e foram cumpridos dez mandados de prisão preventiva e 25 de busca e apreensão nas cidades gaúchas de Porto Alegre (3), Novo Hamburgo (13), Esteio (1), Estância Velha (2) e Campo Bom (1), além de Laguna (1) e Florianópolis (1), em Santa Catarina, e em São Paulo (3), capital paulista. Além dos mandados, foram expedidas ordens judiciais de bloqueio de ativos financeiros em nome de pessoas físicas e jurídicas, de dezenas de imóveis e a apreensão de veículos de luxo.
O inquérito policial foi instaurado em janeiro de 2019 para apurar a atuação de uma empresa com sede em Novo Hamburgo que estaria captando recursos de terceiros, sem a autorização dos órgãos competentes, para investimento no mercado de criptomoedas. A empresa assumia o compromisso de retorno de 15%, ao menos, no primeiro mês de aplicação.
Conforme a Receita Federal, uma das contas da empresa teria recebido créditos de mais de R$ 700 milhões entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019. Os sócios apresentaram evolução patrimonial de grande vulto, que, em alguns casos, passou de menos de 100 mil para dezenas de milhões de reais em cerca de um ano.
Além dos crimes de operação de instituição financeira sem autorização legal, gestão fraudulenta, apropriação indébita financeira, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o inquérito apura o envolvimento de pessoas na tentativa de obter informações sigilosas da investigação. De acordo com Bollis, alguns pontos da Operação Egypto ainda estão em andamento.
Já em outubro de 2019, a Polícia Federal deflagrou a Operação Lamanai e cumpriu 75 mandados em quatro estados e no Distrito Federal contra instituição financeira ilegal. De acordo com a PF, a organização chegou a ter 1 milhão de clientes e captar mais de R$ 40 milhões por dia.
A investigação contou com o apoio da Receita Federal. Os valores dos investidores eram aplicados no mercado de Foreign Exchange (Forex), compra e venda de moedas, operações somente autorizadas às instituições financeiras oficiais. Os 65 mandados de busca e apreensão e os dez de prisão foram cumpridos em Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo, Caxias do Sul (RS), Curitiba (PR), Bragança Paulista (SP), Palmas (TO) e Brasília (DF). Também foram executadas medidas judiciais cautelares para apreensão de veículos, sequestro de bens e bloqueio de valores em contas correntes. A captação de recursos estava estruturada em formato de pirâmide financeira, em que novos investidores subsidiam os pagamentos de remuneração dos que haviam aplicado recursos há mais tempo. A organização já havia sido notificada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para que se abstivesse de tais práticas, mas seguiu atuando. Ao longo da investigação se evidenciaram outros crimes, como a aquisição de moedas virtuais para remeter ao exterior, em supostos atos de evasão de divisas, assim como lavagem de dinheiro, entre outros.
Crimes e criptomoedas
As transações com Bitcoins se assemelham às tradicionais e não são um problema em si, o risco ocorre por elas virem servindo para golpes. “O Bitcoin seria o equivalente ao dólar, fazer algo na clandestinidade vai ser errado, com o dólar isso também acontece. Quem quer comprar dólar e esperar valorizar não está cometendo um crime e a mesma regra se aplica à criptomoeda”, diz Bollis
“Muitas pessoas acreditaram na extrema valorização desses ativos, e eles podem ter, mas também podem ter extrema desvalorização. A grande questão é que a desvalorização não é explorada pela pessoa que quer levar vantagem.” Pessoas acabam se valendo do desconhecimento do público em geral, que acredita ser um investimento com grande retorno, mas “não mencionam o fato de que é um mercado que fica mais no âmbito especulativo do que qualquer outra coisa”, frisa Bollis.
Nos últimos tempos, a Polícia Federal tem identificado lavagem de dinheiro com Bitcoins. “Muitas pessoas que entram nesse tipo de negócio veem no Bitcoin possibilidade de ocultar patrimônio proveniente de atividades ilícitas. Às vezes a pessoa adquire Bitcoins no Brasil, guarda e vai liquidar essa operação no exterior, trocar por outras moedas. Existe uma facilidade maior de essa pessoa circular com esse dinheiro proveniente de atividades ilícitas. Essa é a nossa a maior preocupação.”
Outros casos são os vinculados aos estelionatos. “O estelionatário comete uma fraude para receber em Bitcoins. Também há os crimes de extorsão, em que uma pessoa eventualmente recebe um e-mail com ameaça e quem está praticando a extorsão diz para fazer o depósito em Bitcoins em determinada conta. A dificuldade para rastrear depois é muito maior”, comenta.
Bollis ainda destaca que existem várias investigações em andamento na Polícia Federal. Quando a PF identifica que os casos não se enquadram em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, mas são ilícitos, como pirâmide financeira ou estelionato, as investigações são repassadas à Polícia Civil. “Desde o final de 2018, não param de chegar coisas desse tipo”, detalha.
No entendimento de Bollis, as pessoas devem estar atentas principalmente com as ofertas de rentabilidade muito alta. Bollis ainda complementa que no site da CVM é possível encontrar informações sobre investimentos. Em caso de suspeita, é preciso procurar os órgãos que possam analisar a situação, como a própria CVM, a Polícia Federal ou a Polícia Civil.