De Cabul a Porto Alegre

De Cabul a Porto Alegre

O Afeganistão enfrenta guerras há muitas décadas, diante desse cenário, muitos buscaram deixar sua terra natal

Por
André Malinoski

O Afeganistão fica muito longe do Brasil. Um voo daqui até lá pode durar até 30 horas, dependendo de onde aconteceu o embarque. Pois é deste país da Ásia Central, com uma população de quase 39 milhões de habitantes e um território de 652 mil km², pouco maior do que o estado de Minas Gerais, que vem Omar Atbai, 30 anos. O berço onde o afegão nasceu estampou as manchetes dos principais jornais e sites de notícias do mundo nos últimos dias. O motivo é o grupo extremista Talibã, que ocupou praticamente todo o país, obrigando milhares de pessoas a fugirem e a buscarem refúgios em lugares mais pacíficos. Imagens exibiram os afegãos fugindo desesperados, inclusive mostrando o jogador Zaki Anwari, que atuou na seleção de base nacional, caindo de um avião Boeing C-17 da Força Aérea dos Estados Unidos. Na tentativa de deixar o país, o atleta havia se pendurado na parte externa da aeronave.

O Afeganistão é um dos tantos barris de pólvora daquela região. Mas vamos voltar a Omar, nascido no bairro de Karte Naw, na capital Cabul, e que vive desde 2002 no Brasil, onde recebeu dupla cidadania uma década depois. “Fiquei muito abalado com essa retomada do poder pelo Talibã, especialmente porque o meu pai está lá. Mas conversei com ele sobre a situação e meu pai disse que os extremistas estão mais moderados, ou seja, é diferente do passado. Prometem o direito ao trabalho e ao estudo para as mulheres”, conta Omar, com domínio total em relação ao idioma português. “Eu fico muito triste com a ausência da democracia no Afeganistão. É um país pequeno, que não precisava ser tão religioso. O Irã e o Paquistão, que também são países islâmicos, são mais modernos neste sentido”, acrescentou.

No ano em que nasceu, 1991, a situação era de guerra civil no Afeganistão, com diversos grupos lutando pelo espaço vazio deixado dois anos antes pelos soviéticos, que haviam invadido o país. Os pais de Abdul, militar das forças armadas, e Rogia, professora do ensino fundamental, temiam pelo futuro dele e da irmã Farha. A decisão da família foi extrema, apesar de ter sido tomada por milhares de compatriotas, fugir do país. De preferência, o mais rapidamente possível. “Cresci aqui e quase não tenho lembranças da vida no Afeganistão. Sou bem brasileiro. Tenho saudade do meu primo. Estávamos sempre brincando juntos durante a minha infância”, comentou.

Omar, que é torcedor gremista, mora em Porto Alegre desde abril de 2002. Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / CP

Com apenas 2 anos de idade, Omar, carregado no colo pela mãe e pelo pai, e na companhia da irmã apenas quatro anos mais velha, cruzou as fronteiras. Primeiro a família ficou em Islamabade, capital do Paquistão. O sustento dos quatro foi possível graças ao apoio financeiro do irmão do pai dele, que enviava dinheiro do Canadá, onde vivia. Mas as coisas não eram fáceis e, assim, três anos depois, decidiram partir para Nova Déli, na Índia. As crianças não tinham passaporte, então todos precisaram voltar para o Afeganistão até os pais ajeitarem a documentação. Ficaram até maio de 1996 em Cabul, para então rumarem para o solo indiano. Em Nova Déli, foram para a casa de um tio-avô e depois alugaram um apartamento. Lá, os pais tiveram novos empregos, e recebiam ajuda ainda do tio que vivia no Canadá e também da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi na Índia que nasceu sua outra irmã, Malika.

Então o Brasil apareceu na vida de Omar e de sua família. Após seis anos na Índia, a ONU avisou que eles e outras famílias na mesma situação receberiam refúgio em solo verde-amarelo. No mês de abril de 2002, os afegãos pisaram em Porto Alegre. Só que o pai enfrentou dificuldades com a língua portuguesa e não conseguia emprego formal. A ONU auxiliava com apenas R$ 300,00 por mês. Para se ter uma ideia do valor, o salário-mínimo era de R$ 200,00 na época. Desgostoso, o pai voltou para Cabul em 2005. Casou-se outra vez e tem agora um filho de 11 anos. Faz 16 anos que Omar não dá um abraço no pai. “Fomos muito bem recebidos no Brasil. O pessoal é maravilhoso. Aqui o que eu mais gosto é futebol. Sou fanático pelo Grêmio e não perco nenhuma partida. O meu jogador favorito é o Ronaldo Fenômeno (atualmente aposentado dos gramados)”, diz, vestido com a camisa gremista. “E adoro churrasco, mas não tenho o hábito de tomar chimarrão”, completa.

Omar no Canadá, onde vive uma de suas irmãs. Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / CP

Omar aprendeu português na escola e com a ajuda de uma organização não governamental (ONG). A família prospera por aqui. A mãe trabalha em um salão de beleza da Capital, enquanto a irmã mais velha desenvolve carreira na área de Tecnologia da Informação (TI) em uma multinacional sediada em São Leopoldo. A menor foi para o Canadá estudar e viver com os parentes. Omar encerrou o ensino médio. Também fez um curso técnico de informática e pretende ingressar na universidade para atuar com TI. O refugiado inclusive já trabalha com informática. “O Brasil é completamente diferente do Afeganistão. São culturas muito diferentes”, observa. Questionado se o plano é permanecer para sempre no Rio Grande do Sul, o afegão não confirma. “Acho que vou para o Canadá futuramente, mas não agora. A minha irmã mais nova mora lá, e tem também a família de meu pai.” Com a situação tensa no Afeganistão, não há como Omar visitar o país neste momento. “Um dia espero visitar o país, estou rezando muito para que o Talibã melhore a situação. O grupo quer paz também, não quer mais a guerra. Se for um governo moderado, voltarei para visitar o meu pai”, projeta.

História

Rodeado por montanhas em um espaço estratégico da Ásia Central, o Afeganistão conta com vizinhos de peso sempre atentos ao território afegão. A influência da religião islâmica é muito forte no país. No passado mais distante, Alexandre, o Grande, e Genghis Khan, lideraram campanhas militares pela região. O Império Britânico ocupou o país no século 19. As tropas britânicas seriam expulsas, mas retornariam entre 1878 e 1880. Apenas em 1919 os afegãos se tornariam livres da influência britânica. Por proximidade com a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o governo instalado no Afeganistão solicitou a ajuda russa, sendo apoiado em termos militares e econômicos pelo bloco comunista. Em 1979, o exército vermelho decidiu invadir o Afeganistão, onde permaneceu por quase uma década. Soviéticos e afegãos combatiam extremistas – os mujahidin, apoiados durante o período da Guerra Fria pelos Estados Unidos, além de Paquistão, Arábia Saudita e outros países muçulmanos. Ocupar o território afegão era algo bastante estratégico para a URSS. Mas os extremistas rebeldes venceram e, em 1992, teve início uma guerra civil no Afeganistão. Entre tantas mortes, o Talibã, que significa “estudantes” em pashto (uma das línguas faladas no Afeganistão), saiu vitorioso do banho de sangue desse período. E governou de 1996 até 2001. Houve intervenção dos EUA no território depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Os EUA justificaram a ação alegando que Osama bin Laden estava no Afeganistão e que o regime talibã permitia que a Al-Qaeda, a organização terrorista de Bin Laden que executou o atentado, tivesse abrigo no país. A presença americana ocasionou novos conflitos, o que obrigou a criação da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF) da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a fim de manter o mínimo de segurança no Afeganistão e ajudar a administração do então presidente Hamid Karzai. Desde então ocorre uma guerra entre governo e Talibã. A Força Internacional deixou o país em 2014.

A ofensiva de agora dos extremistas aconteceu simultaneamente quase ao fim da retirada dos exércitos americanos do país, decorrente do acordo de paz assinado pelo governo Trump com os talibãs em Doha, no Catar, em 2020. Em 15 de agosto, o Talibã tomou diversas cidades, inclusive Cabul. O presidente Ashraf Ghani fugiu. Em seguida, o Talibã anunciou anistia geral em todo o Afeganistão e disse que respeitará os direitos das mulheres, dentro dos preceitos da religião islâmica, além de liberdade para a imprensa. O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu que a comunidade internacional se una diante dos últimos acontecimentos no Afeganistão. “Estou particularmente preocupado com relatos de crescentes violações dos direitos humanos contra mulheres e meninas no Afeganistão”, afirmou. O Talibã tenta mostrar certa suavidade no discurso. O resto do mundo segue cético em relação ao tema.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895