Do passado ao futuro

Do passado ao futuro

Há imóveis que fazem parte do patrimônio cultural e contam parte da história da Capital, mas cujas responsabilidades por sua preservação ainda são desafios

Por
Henrique Massaro

José Gabriel Irace, 66 anos, aguardava com uma lanterna em frente a uma das cortinas metálicas entreabertas do casarão de esquina. Quando ergueu a abertura, a luz natural da tarde nublada de fim de julho não revelou nenhum detalhe do interior do prédio às escuras no centro de Porto Alegre. A falta de energia elétrica, assim como as portas e janelas fechadas, escondiam a deterioração de uma edificação havia anos desocupada, mas também a pujança de um imóvel histórico de 1.560 metros quadrados que no século passado foi um dos principais pontos de encontro da Capital. “Temos muita coisa para ver”, disse, assim que ligou a lanterna.

Personalidades políticas como Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra, e da cultura, como Mario de Andrade, estavam entre os frequentadores mais conhecidos do estabelecimento, que diariamente também recebia a alta sociedade, o porto-alegrense em geral e quem mais passasse pela Capital. Mas a efervescência do local, assim como sua beleza e o sabor dos doces que ali eram servidos, permanece apenas na memória afetiva da cidade. Nas últimas décadas, José Gabriel é o único que, vez que outra, ainda abre as portas e entra no prédio localizado na esquina das ruas Riachuelo e Doutor Flores, endereço onde por mais de 50 anos funcionou a célebre Confeitaria Rocco.

Irace, oficial de justiça aposentado, é um dos herdeiros do casarão cuja construção se iniciou em 1910, durante um período de grande desenvolvimento urbano e econômico da cidade. A inauguração foi no dia 20 de setembro de 1912. O ritual de checar todas as peças da Rocco, que repete com a reportagem do Correio do Povo, é feito por ele cerca de uma vez por mês. Verificar o estado do prédio, limpar parte da sujeira provocada por pombos e ratos, além de checar possíveis invasões à propriedade fazem parte da rotina. O prédio não é alugado há 22 anos e foi aberto ao público pela última vez há 14. Os problemas somam-se à degradação da estrutura, que, por diversos motivos, é recorrente em outros imóveis protegidos como patrimônio cultural.

A Confeitaria Rocco foi fundada por Nicolau Rocco, italiano que, antes de vir para Porto Alegre, viveu na Argentina, onde trabalhou na Confitería del Molino, em Buenos Aires. Nicolau inaugurou uma primeira confeitaria na capital gaúcha, a Sul-América, em 1892, antes de mandar construir a Rocco. O empresário morreu em 1932, sendo homenageado na imprensa e por autoridades locais não só como grande empreendedor, mas também como filantropo. O ex-presidente do Rio Grande do Sul Antônio Augusto Borges de Medeiros, inclusive, enviou representante para o funeral.

Com altos custos para fazer as intervenções necessárias, José Gabriel Irace diz que o interesse dos herdeiros é pela venda do imóvel. Foto: Mauro Schaefer

Após a morte de Nicolau Rocco, a confeitaria foi comandada por seu sobrinho, José Rocco Irace, que tocou o negócio até 1947, quando deu sociedade e passou a administração para os funcionários. Assim, o estabelecimento permaneceu até seu primeiro fechamento, em 1959. Miguel e Remo José Irace, filhos de José – portanto, sobrinhos-netos de Nicolau, a quem tinham como avô –, decidiram, em 1962, largar um bem-sucedido escritório de engenharia para reabrir a Rocco. A decisão foi movida pela lembrança do pai e do avô, sempre ligada a uma época brilhante do estabelecimento, como mostra o discurso feito por Miguel para jornalistas antes da reinauguração. “Parece que, mesmo que quiséssemos, seria impossível reformar a decisão. Tal era a alegria de velhos amigos, homens de todas as classes, que não aceitavam ver esta casa fechada. De toda parte surgiram manifestações de simpatia. De toda parte palavras de estímulo manifestadas com comovente interesse", declarou.

Quatro dias depois, estava reaberta a Confeitaria Rocco. A pompa já não era a mesma de antes: o estabelecimento se restringia ao salão do térreo e ao subsolo, onde eram fabricados os doces, enquanto o segundo, terceiro e quarto pavimentos, anteriormente destinados a salões de festas, à copa e ao terraço com vista para o Centro da cidade, haviam sido alugados como residências. Esta nova fase da Rocco também foi mais curta. A rotina diária das 7h à meia-noite se tornou desgastante e, sob a administração dos irmãos, a confeitaria acabou funcionando somente por mais seis anos.

José Gabriel Irace é um dos quatro filhos de Miguel. Após a morte de seu irmão mais novo, Miguel Filho, em 2017, com quem dividia o interesse por fomentar a história do local, é o único membro da quarta geração da família que ainda se envolve diretamente com o prédio. Nascido em 1955, ele chegou a morar com familiares na casa em 1961, antes da reabertura. “Meu pai gostaria de ver aquilo lá reaberto, meu tio também, tanto é que eles deram um tiro no escuro, largaram um escritório que era um dos melhores de Porto Alegre e não puderam conciliar uma coisa com a outra”, relembra. Após o último fechamento como confeitaria, o prédio da Rocco foi alugado por mais de 30 anos, até 1999, dois anos após ser tombado como patrimônio cultural. Desde a saída do último inquilino, os problemas começaram a se acumular.

Histórico de problemas

A área interna do prédio, que também precisa de restauros. Foto: Mauro Schaefer

A Rocco foi tombada pelo município em 1997. Já fazia 30 anos que o local havia deixado de ser uma confeitaria, mas seguia em funcionamento. O último inquilino, um curso pré-vestibular, acabou saindo em 1999, depois de 25 anos. A cronologia não foi por acaso. O cursinho, recorda Irace, tinha o interesse de construir mais salas de aula no local, o que não pôde ser feito, já que, devido à importância cultural, o tombamento prevê a proteção de todas as características do imóvel. Ou seja, as estruturas internas e externas não podem ser modificadas.

O tombamento impôs limitações, como prevê qualquer instrumento de proteção, o que, de acordo com Irace, também dificultou o processo de dar um novo destino ao prédio. Desde 1999, somente dois eventos abriram as portas da antiga Confeitaria Rocco para o público novamente. O primeiro deles foi a Casa Cor, que, em 2006, realizou uma série de intervenções que naquela época já eram necessárias nas fachadas e no interior do local. Sem elas, o processo de deterioração hoje estaria mais avançado. O Conselho Municipal do Patrimônio Artístico e Cultural (Compahc) e a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc), além de outros profissionais, estiveram envolvidos no restauro.
Um ano depois, uma edição do Porto Alegre em Cena, que escolheu o espaço como ponto de encontro do festival, marcou o último evento no antigo prédio da Confeitaria Rocco. A coordenação do evento pintou parte do interior, instalou um bar, espaços para oficinas e área de imprensa. No subsolo, foi realizada uma exposição da célebre cenógrafa Daniela Thomas, que esteve presente, e houve também um desfile do dramaturgo Naum Alves de Souza.

Para Ana Bravo, uma das coordenadoras do festival na época, aquelas noites de setembro de 2007 foram marcadas por um Centro Histórico novamente cheio de vida. Ainda é clara a lembrança de artistas circulando pela antiga confeitaria. “Por incrível que pareça, fui apresentada àquele prédio naquele ano. Pensei: ‘Meu Deus do céu, por que esse lugar está fechado há tanto tempo?’”, recorda. O ex-coordenador do Porto Alegre em Cena, Rodrigo Lopes, relembra a edição como um momento de reencontro da Capital com o próprio passado. “Pensei que alguém ia se interessar pelo prédio depois daquilo e nada aconteceu.”

Atualmente, além do estado do prédio, existem outras complicações, como um atraso de anos no pagamento de IPTU e uma decisão da Justiça, condenando, de forma solidária, proprietários e prefeitura a realizar a restauração interna e externa do prédio. Na condenação, é ressaltado a necessidade de impedir o desmoronamento do reboco dos elementos decorativos da fachada, assim como da chaminé do antigo forno de pães, cuja base fica localizada no terraço. Ainda é mencionado que a situação do prédio é de abandono e deterioração desde 2001. As obras deveriam ter sido iniciadas até o final do primeiro trimestre de 2020, sob pena de multa diária para o município.

José Gabriel Irace calcula que, ao longo dos anos, aplicou mais de R$ 100 mil para manter o prédio de pé, mas afirma que os proprietários não têm recursos para fazer as intervenções necessárias e deixar o espaço pronto para algum novo inquilino. A propriedade é dividida entre sua mãe, sua tia e a imobiliária Predial Vitória. Segundo ele, o interesse de todos é pela venda. “Há heranças que são um abacaxi, o prédio da confeitaria, apesar de ser maravilhoso, uma coisa histórica, dá bastante incomodação, tanto que tem processos contra todos os herdeiros”, diz Irace. “Não basta ter uma lei de preservação se o poder público não consegue gerir isso e dar retorno para as pessoas que podem entregar esse prédio para a comunidade.”

Importância e desafios na proteção do patrimônio

Quase sempre que Irace ergue a cortina metálica da rua Riachuelo, há alguém que se aproxima para contar alguma história envolvendo a Rocco ou perguntar quando o prédio será reaberto. Se dependesse da vontade da população, a confeitaria estaria funcionando novamente. Prova disso é o grupo Amigos da Confeitaria Rocco, criado no Facebook em 2016 e que reúne mais de 2,7 mil pessoas. A comunidade virtual ganha novos membros semanalmente e é um espaço de verdadeira propagação da história do estabelecimento e da cidade.

A cada postagem são compartilhadas imagens de personalidades políticas e solenidades realizadas no local, recortes de jornais e até mesmo da louça e dos cardápios da Confeitaria Rocco. Há também fotografias de detalhes arquitetônicos que ajudam a entender a importância cultural do prédio, projetado inicialmente pelo arquiteto e construtor Salvador Lambertini e, após sua morte, em 1911, pelo engenheiro e arquiteto Manuel Itaqui Barbosa Assumpção, responsável também pelos projetos do Viaduto Otávio Rocha e do Campus Central da Ufrgs. De estilo eclético, a construção em esquina chanfrada é semelhante à da confeitaria Del Molino, de Buenos Aires, onde Nicolau Rocco trabalhou.

Nas fachadas, destacam-se diversos ornamentos e elementos esculturais em relevo. Um trabalho requintado em ferro marca as sacadas e balcões, enquanto a parte superior das colunas e pilastras expõe esculturas de cabeças de leão. Dois letreiros em relevo com o nome Confeitaria Rocco misturam-se à decoração de frisos e detalhes da balaustrada, onde ficam três pares de atlantes. O atlante jovem simboliza a América e a Fartura, enquanto o idoso representa a Europa e a Abundância. As sacadas e as cornucópias – vasos em formato de chifre – da fecundidade são suportadas pelas mãos dos atlantes. O conjunto da fachada principal representa a luz. Centralizada no topo do prédio, há ainda uma figura feminina com um braço erguido, emoldurada por uma lira e localizada entre duas crianças segurando uma guirlanda de flores que as une.

Não é apenas na estrutura do prédio que está sua importância, mas nas histórias ali vivenciadas. “Meu pai, hoje com 93 anos, trabalhou na confeitaria. Saiu para servir no Exército e, ao final do tempo de serviço, foi readmitido. Meu pai lembra que era chamado de ‘mensageiro’, ele e todos aqueles que usavam o bonde para entregar tortas e doces em diversos bairros da cidade. Até hoje diz que foi uma maravilhosa experiência”, escreveu uma usuária no grupo Amigos da Confeitaria Rocco. Outra usuária publicou que na sua família todos frequentavam o estabelecimento e utilizavam a expressão “é como cocada na bandeja” para se referirem a pessoas que não faltavam a um evento. O motivo: na Rocco, sempre que alguém comprava doces variados, vinha uma cocada.

“Patrimônio não é empecilho, é herança”, afirma a arquiteta Luísa Rocca, especialista em restauração de monumentos e conjuntos históricos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Segundo ela, patrimônio é um ativo de uma sociedade e isso já estava na mente dos intelectuais que criaram o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1937. A professora admite, no entanto, que a manutenção de bens tombados ou inventariados encontra entraves. Apesar de afirmar que, a longo prazo, preservar faz mais sentido, inclusive, economicamente, o pensamento vigente muitas vezes funciona por outra lógica, a de que é mais barato construir tudo do zero do que restaurar. “É um trabalho especializado que exige mais tempo, mais estudos e é um pouco mais dispendioso.”

Responsável pelo projeto de restauração da Igreja das Dores, Lucas Volpatto define como estigma a visão de que prédios protegidos devido a seu interesse cultural sejam mais onerosos para seus proprietários. “Não importa qual é o edifício, se ficar 50 anos sem mexer nele, são 50 anos de manutenções acumuladas. É caro porque ficou muito tempo sem conservação e manutenção”, afirma o arquiteto, que é também professor de Patrimônio e Restauro da UniRitter. Segundo ele, existem empreendedores interessados em adquirir edificações tombadas e inventariadas, além de projetos interessantes que já saíram do papel. Falta, no entanto, fazer funcionar as políticas públicas e difundir informação.

“Não temos cultura de manutenção do patrimônio”, destaca o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), Rafael Passos. Segundo ele, a divulgação da arquitetura na mídia brasileira se restringe à arquitetura de interiores, por isso, é necessário promover debates junto à sociedade. O arquiteto também cita a importância de se construir dispositivos de incentivo, como já ocorreu no passado, e afirma que preservação e restauro podem ser vistos como atividades lucrativas. "Há um potencial imenso para empresas que possam se voltar a isso e trabalhar com esse nicho de mercado."

Para a advogada e ativista cultural Jacqueline Custódio, que atua na proteção do patrimônio cultural, possuir um bem tombado ou inventariado tem bônus, mas também há ônus. Herdar um imóvel com essas características é herdar as responsabilidades e limitações que a legislação impõe, como não poder alterar a estrutura. Por isso, entende ser necessário algum tipo de retorno. “Se não tem política cultural que ajude esses proprietários, é muito mais um peso do que uma alegria”, comenta Jaqueline, que é membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos). Ela cita, por exemplo, o Fumpoa, o fundo do Programa Monumenta, do governo federal, em Porto Alegre. A iniciativa proporcionava aos proprietários de bens tombados financiamentos a juro zero, o que era considerado um facilitador para a manutenção e revitalização do patrimônio. Além disso, atualmente a lei prevê outras opções, como isenção de IPTU, no caso de imóveis tombados, mas não são todos os proprietários que conseguem acessar o benefício. Há burocracia e outros complicadores, como inadimplências que chegam a ser históricas. Existe, ainda, a transferência de potencial construtivo, uma forma de permissão do poder público para que o proprietário use o potencial não utilizado do seu imóvel para aumentar o índice de construção de um outro imóvel.

Na visão da ativista, que é coordenadora do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro no Rio Grande do Sul, além da falta de opções de benefícios ou incentivos, a proteção do patrimônio sofre uma série de pressões, como do setor imobiliário. Segundo ela, é contraditório o discurso de que a manutenção é contrária ao desenvolvimento econômico, já que a revitalização de espaços costuma atrair cultura, turismo e, consequentemente, movimentar a economia.

Bons e maus exemplos

A fachada do antigo Cine Astor, no bairro Floresta, foi mantida e restaurada no local onde está sendo finalizada a construção de um hotel de 156 acomodações. Na página ao lado, o prédio conhecido como Casa Azul, no Centro Histórico, está há muito anos abandonada e esteve prestes a ruir. Foto: Ricardo Giusti

Há quem veja os prédios históricos como uma oportunidade, apesar de seu estado de abandono. Foi assim que empresários portugueses pensaram quando adquiriram o antigo Cine Astor, no bairro Floresta. A manutenção da fachada, exigência para edificações inventariadas, não foi empecilho, e a construção de um hotel de 156 acomodações foi feita junto de um processo de revitalização da imagem original do imóvel. “A questão da fachada não se tornou um problema, primeiro, porque fazemos isso em vários projetos, em Portugal isso é muito comum, é uma coisa que já faz parte do nosso dia a dia, e foi um bom presságio: nosso primeiro hotel na cidade do Porto tem uma fachada semelhante, que também foi restaurada e também era um antigo cinema”, conta Daniel Brites, diretor da Endutex Hotéis Brasil. As obras do empreendimento, orçado em R$ 36 milhões, foram iniciadas em 2019 e estão sendo concluídas.

O estado de danificação do prédio era avançado e precisou, inclusive, de intervenções estruturais. Segundo Brites, as dificuldades de se trabalhar com este tipo de edifício existem, mas são solucionáveis e, apesar do aspecto, os empreendedores reconheceram a beleza original. “Vimos como uma vantagem, porque tem uma fachada que já tem uma relação com as pessoas do local, e a gente sente isso diariamente, as pessoas passam, ficam curiosas, contam que foram lá ver o filme A, B ou C. Isso acaba nos dando uma visibilidade interessante e a gente resgata o carinho e a relação que as pessoas têm com o local”, comenta.

A localização, próxima do bairro Moinhos de Vento, da 3ª perimetral e do Aeroporto Salgado Filho, também é considerada estratégica para o tipo de hotelaria proposta, visando o público que viaja a trabalho. O diretor da empresa entende que a cultura de preservação e investimento em prédios históricos ainda é pouco arraigada para o potencial da cidade, mas acredita que isso está mudando e que, no futuro, outros empreendimentos com essas características acabarão saindo do papel.

Um dos casos mais recentes de abandono acabou impactando diretamente no dia a dia da população porto-alegrense. Até 26 de maio de 2018, poucas pessoas prestavam atenção no estado de degradação do prédio centenário localizado na esquina das ruas Riachuelo e Marechal Floriano Peixoto, no Centro Histórico. Na manhã daquele sábado, no entanto, devido ao risco de desabamento da fachada da edificação conhecida como Casa Azul, a EPTC precisou interditar o cruzamento e mudar o sentido de uma das quadras.

O bloqueio modificou o fluxo de todo o Centro e começou a provocar engarrafamentos diários. Além do perigo de queda, a manutenção da estrutura do casarão era uma obrigação legal, já que o prédio é inventariado, ou seja, não pode ser demolido. A contradição da situação ficou evidenciada: de um lado, uma edificação com um instrumento legal para garantir sua proteção devido às suas características e importância histórica, de outro, um descaso de anos com o imóvel herdado. O resultado não chegou a ser trágico, já que a casa ainda está de pé, mas o imbróglio fez com que a interdição das ruas se arrastasse por um ano e nove meses.

O que ocorreu foi um processo típico de abandono. O prédio passou anos fechado, deteriorando-se. Enquanto isso, havia discordâncias entre os herdeiros entre manter o local e tentar vendê-lo. O problema foi parar na Justiça e obras de estabilização foram executadas pela prefeitura, já que os bens dos proprietários haviam sido bloqueados judicialmente. Em março de 2020, a edificação voltou a ser responsabilidade dos donos e o Executivo buscou o ressarcimento pelas intervenções feitas.

Soluções à frente?

Semanas antes de abrir a porta principal da antiga Confeitaria Rocco para a reportagem do Correio do Povo, José Gabriel Irace recebeu no local os secretários municipais de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, e de Cultura, Gunter Axt. O interesse de Irace em dar um destino para o prédio ia ao encontro de um amplo projeto de revitalização do Centro Histórico, que vinha sendo finalizado pela prefeitura e que seria oficialmente apresentado menos de um mês depois, no dia 9 de agosto. Parte do programa de governo denominado Centro+, que envolve preservação, segurança pública, infraestrutura, fiscalização, desenvolvimento econômico, zeladoria e mobilidade urbana, terá um projeto de lei específico para prédios desativados na região.

O levantamento do Executivo é de que o bairro possui 115 edifícios desocupados, além de 85 terrenos baldios, e uma das explicações para a situação é o processo de abandono da área central. O apogeu da Rocco, por exemplo, está diretamente ligado ao do Centro. Na primeira metade do século passado, sua localização era considerada estratégica: em frente a ela passavam os trilhos do bonde e a Praça Conde de Porto Alegre, antiga Praça do Portão, era o marco de entrada da Capital. Porto Alegre sempre concentrou a maior parte dos serviços públicos na região central, mesmo assim, nas últimas décadas, a região sofreu com a migração de parte considerável dos moradores e do setor privado para outros bairros.

O programa de revitalização do Centro Histórico é desenvolvido e coordenado pela pasta de Schirmer, chamado pelo próprio prefeito Sebastião Melo de “prefeito do Centro”. Desde o início da gestão Melo, é ele quem concentra as questões envolvendo a região. Na segunda semana de agosto, a dupla, acompanhada do secretário do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, esteve no Rio de Janeiro para conhecer iniciativas implementadas pelo prefeito Eduardo Paes. No retorno, Schirmer trabalhou nos últimos detalhes da minuta do projeto de lei que será encaminhado à Câmara de Vereadores para criar o que vem sendo chamado de Polo do Centro Histórico.

Com o objetivo de reativar economicamente os prédios desocupados, a proposta é isentar os imóveis de todos os impostos municipais. Para acessar as isenções, haverá duas condições: o prédio precisa ter sido construído até 1960 e uma atividade econômica com potencial de atrair público deverá ser implementada. Serão quase 40 atividades das áreas de turismo, cultura, gastronomia, arte, entretenimento, lazer, inovação e economia criativa que poderão se encaixar no projeto, como albergue da juventude, antiquário, ateliê de arte, bistrô, cafeteria, confeitaria, conservatório de música, escola de artes plásticas, cinema e restaurante temático. Os interessados deverão se inscrever apresentando um projeto, que será analisado por uma comissão.

A proposta da prefeitura é de conceder as isenções para o prédio e para a atividade. Segundo Schirmer, todos os proprietários de edificações desocupadas na região podem se beneficiar, inclusive os de imóveis inventariados e tombados. “Isso, na minha opinião, pode resolver tudo, desde que haja interesse”, afirma o secretário, que adianta que outros incentivos ainda podem vir. A prefeitura estuda, por exemplo, anistiar dívidas de IPTU, algo comum a proprietários de bens protegidos. Também analisa junto ao Banco Mundial a possibilidade de financiamento a juro zero para a recuperação dos prédios. “Estamos vendo, não está batido o martelo”, pondera o secretário.

O projeto de criação do Polo do Centro foi desenvolvido alinhado com a Secretaria de Cultura. Gunter Axt, titular da pasta, entende que o poder público tem de ser um facilitador do mercado, que pode ajudar a solucionar questões de interesse social. “A nossa compreensão é que é preciso que haja efetivamente estímulos a ocupação desses prédios. Acho que a isenção de impostos vem nesse sentido e é uma relação de ganha-ganha, porque a prefeitura pode estar abrindo mão de uma receita, mas recebe em troca uma dinamização da economia e uma cidade que fica muito mais cuidada”, explica.

A proposta, no entanto, é voltada para todos os prédios que a prefeitura tem definido como antigos e desocupados, e não especificamente para o patrimônio. Na avaliação de Axt, as edificações protegidas já contam com outros benefícios, como a transferência de potencial construtivo oficializada pela lei de 2019. Segundo ele, iniciativas anteriores estão sendo utilizadas, como é o caso do Fumpoa, que ainda conta com cerca de R$ 12,5 milhões. O fundo municipal não recebe mais recursos do Monumenta, do governo federal, mas as devoluções de proprietários de prédios privados que acessaram os financiamentos do programa continuam acontecendo. Parte dos valores será utilizada na revitalização do Mercado Público, no Paço Municipal e no Museu Joaquim Felizardo.

Nas fachadas da antiga Confeitaria Rocco, destacam-se diversos ornamentos e elementos esculturais em relevo. Foto: Mauro Schaefer

No caso do Mercado, o prefeito Melo ainda solicitou ao ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, que visitou a Capital dia 13 de agosto, R$ 11,5 milhões para concluir as obras de recuperação do segundo andar. A quantia é referente ao restante do que estava previsto pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Históricas, mas que nunca chegou a ser repassado. “Estamos levando a sério a questão do Centro e do patrimônio histórico”, afirma o secretário, citando que o município, inclusive, adiantou recursos do tesouro para pagar que as obras da Praça da Matriz, também do PAC, não paralisem.

Recém-apresentado, o programa do governo para revitalizar o Centro encontra resistências. O IAB, por exemplo, apresentou divergências urbanísticas à proposta como um todo. O presidente Rafael Passos também tem críticas especificamente ao projeto para os prédios desocupados, que, segundo ele, tem viés mais econômico do que de proteção cultural. “Não desconsidero de todo, mas deveria ter uma diferenciação aos edifícios tombados e protegidos”, comenta. Acrescenta que a isenção dos impostos municipais, ainda que possa ser considerável, talvez não seja o suficiente para criar um atrativo. “Seria interessante que houvesse um diálogo do município com o governo do Estado para um incentivo de ICMS e, aí sim, quem sabe, tratar da questão do patrimônio.”

O presidente do IAB-RS também demonstra preocupação com a possibilidade de anistiar dívidas de IPTU, o que pode soar como beneficiar um delito. Afirma que, apesar da inadimplência ser um impasse histórico, existem instrumentos legais para resolver este tipo de problema, obrigando os proprietários a darem ocupação para os edifícios e, em alguns casos, prevendo, inclusive, a desapropriação. Na visão do arquiteto, a proposta, que ainda não foi oficialmente apresentada pela prefeitura, pode ser debatida, mas, como flexibiliza uma regra do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor, precisa estar bem alinhada, penalizando, por exemplo, o proprietário que acessar as isenções e não honrar o compromisso de designar o prédio para determinada atividade.

Outro projeto de lei que integra o programa Centro+ e que deve beneficiar bens protegidos em Porto Alegre está na pasta do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade. A proposta prevê incentivos ao desenvolvimento urbanístico de médio e longo prazo. Para acessá-los, o empreendedor precisará atender a pelo menos quatro de oito critérios estabelecidos pelo Executivo. A restauração ou requalificação o patrimônio histórico é um dos itens elencados, pois a região central, segundo levantamento da prefeitura, tem 52 bens tombados e 247 inventariados de estruturação.

O projeto promete a liberação de um milhão de metros quadrados de potencial construtivo no bairro, o que é passível de R$ 1,2 bilhão de arrecadação para o município. A proposta, no entanto, é de que o valor seja transformado em contrapartida para obras de revitalização do próprio centro. Entre os bens mapeados pela Secretaria da Cultura estão imóveis como a Casa Godoy, a Pinacoteca Ruben Berta, a Casa Torelly e a Confeitaria Rocco, além de monumentos. Para quem for empreender, estão previstos incentivos como isenção do valor da compra do solo criado e flexibilização do limite de altura de prédios. Com previsão de ser enviado à Câmara em setembro, o projeto foi apresentado e discutido junto à sociedade ao longo do mês de agosto, encontrando resistências.

Rafael Passos, do IAB, e Jacqueline Custódio, membro do Icomos, por exemplo, criticam alterações significativas no plano diretor, que poderão promover um adensamento exacerbado no bairro. “Nossa preocupação é com as alturas e com a questão do patrimônio. Vai proteger alguns, mas esse programa está tentando incentivar a substituição de diversos edifícios sem atualização do inventário”, afirma o presidente do IAB. “Os critérios para os regimes de altura e ocupação espacial não ficaram definidos. Fica aberto à discricionariedade do agente público, o que pode ser mais suscetível à pressão de eventual empreendedor. É quase um cheque em branco. E isso vai influir nas questões da qualidade de vida”, diz Jacqueline, que também comenta que o Executivo não apresentou estudos sobre o impacto ambiental decorrente da flexibilização, como ventilação, insolação e densificação.

Os questionamentos foram levantados também em espaços de discussão, como a audiência pública do programa de reabilitação do Centro. Para Germano Bremm, titular do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, as preocupações ambientais envolvendo a construção mudaram ao longo do tempo e hoje existem novas formas de mensurar critérios como insolação e ventilação, o que possibilita flexibilizar o padrão. De acordo com o secretário, estudos da prefeitura mostraram que a área central é a mais adequada para comportar mais habitantes, que poderiam dobrar de número devido à infraestrutura disponível, como esgoto, água, iluminação e áreas de praça. “Todos esses equipamentos públicos poderiam recepcionar esse adensamento de população. A ideia de um urbanismo mais contemporâneo é que a gente adense onde já tem essa infraestrutura instalada, porque se não permitirmos haver um incremento nesses locais, a população acaba se instalando onde talvez não tenha essa infraestrutura, e o poder público vai ter um custo de levar transporte, iluminação, recolhimento do lixo. É muito caro para o município levar essa infraestrutura, temos que aproveitar aquela que já temos.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895