Eleições do outro lado da fronteira

Eleições do outro lado da fronteira

Os eleitores argentinos e uruguaios vão às urnas neste domingo para escolher seus respectivos presidentes. Em ambos os países, as pesquisas indicam a possibilidade de alternância no poder

Por
Danton Júnior

O domingo será de eleições para presidente no outro lado da fronteira. Em uma coincidência inédita de datas, Argentina e Uruguai elegem os seus próximos mandatários em uma disputa que tem sido marcada por surpresas e reviravoltas. Em ambos os países, pesquisas indicam a possibilidade de alternância, com vitórias da oposição. O pleito, em especial da Argentina, é acompanhado com atenção no lado brasileiro da fronteira, já que a crise econômica vivida pelo país vizinho tem causado impacto na indústria, com queda nas exportações. 

Na Argentina, o resultado da Primária Aberta, Simultânea e Obrigatória (PASO), em agosto, colocou o peronista Alberto Fernández à frente do atual presidente, Mauricio Macri, com quase 17 pontos percentuais de vantagem. Fernández, professor de Direito e ex-ministro dos governos Kirchner, tem como candidata à vice a ex-presidente Cristina Fernández Kirchner. A vantagem faria com que Fernández fosse eleito sem necessidade de um segundo turno. O resultado da prévia forçou Macri a lançar uma série de medidas para tentar conter a inflação e aliviar o bolso dos argentinos, como congelamento do preço dos combustíveis e aumento do salário mínimo. 

No Uruguai, a disputa representa um teste para o predomínio recente da Frente Ampla, coalizão de partidos de esquerda que elegeu os últimos três presidentes do país. A disputa está concentrada entre o liberal Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, e o esquerdista Daniel Martinez, candidato do governo. Mas Ernesto Talvi, do Partido Colorado, e Guido Manini Ríos, do Cabildo Abierto, também sonham em chegar ao segundo turno. Caso seja necessário, os eleitores dos dois países retornam às urnas no dia 24 de novembro. 

O desempenho da economia tem sido um assunto central na eleição argentina. A desvalorização do peso e o aumento da inflação (alta de 40% no primeiro ano de governo, em 2016) pesam contra o governo Macri. O resultado é percebido de forma impactante no Rio Grande do Sul, que historicamente tem o país vizinho como um dos principais destinos das suas exportações - ainda que a participação da Argentina no total das vendas externas tenha caído nos últimos anos, ao mesmo tempo em que houve uma forte ascensão das vendas para a China. “A relevância da Argentina para a economia gaúcha é demonstrada não apenas pelo volume de importações, mas também pelos tipos de produtos comercializados, predominantemente industrializados”, descreve o pesquisador em Economia Tomás Amaral Torezani, do Departamento de Economia e Estatística da Secretaria Estadual do Planejamento, Orçamento e Gestão. 

Por este motivo, a indústria foi o segmento mais impactado no Rio Grande do Sul pela crise argentina. Entre janeiro e agosto deste ano, as exportações para o país vizinho recuaram em 44,1%, o que representa 521,8 milhões de dólares, sendo que a grande maioria deste valor, 491,3 milhões, refere-se a bens industrializados. No mesmo período, as vendas externas totais do Rio Grande do Sul recuaram em ritmo muito menor, em 10%. Nos últimos anos, as exportações para aquele país haviam registrado crescimento. 

A recessão iniciada no ano passado tem demonstrado impacto no crescimento da economia. Em 2017, o PIB do país vizinho havia avançado 2,7%. Em 2018, houve queda de 2,5%. Em julho, o Fundo Monetário Internacional (FMI) havia previsto nova queda, desta vez de 1,3%, para o ano de 2019. O cenário é complementado por forte desvalorização do peso, aceleração da inflação, crescimento da dívida pública, aumento da taxa de desemprego e queda nos salários reais. 

O impacto para as exportações gaúchas é observado principalmente nos segmentos de calçados, automóveis, máquinas agrícolas e autopeças. “Num momento em que já não temos a economia doméstica aquecida, temos esse efeito Argentina muito mais consistente”, afirma o professor Marcos Lélis, do Departamento de Economia da Unisinos. Na avaliação dele, independentemente de quem vencer a eleição deste domingo, a crise deve permanecer, já que a estimativa é que a economia do país vizinho cresça abaixo de 1% no próximo ano. Lélis afirma ser necessário um ajuste de no mínimo dois a três anos. 

Dada a importância do país vizinho para alguns segmentos da indústria do Rio Grande do Sul, o economista afirma que a expectativa é que as relações entre os dois países mantenham-se sem atritos no caso de uma vitória da oposição. O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, manifestou-se a favor da vitória da Macri. “Se Fernández vier a ganhar, temos que ver como essa cicatriz vai ser curada ao longo dos quatro anos”, observa Lélis. Da mesma forma, o especialista espera que não haja mudanças em relação ao Mercosul, em especial no que se refere ao regime automotivo, vantajoso para o Brasil. 

Embora seja um grande exportador de commodities, o Brasil tem na Argentina o seu principal mercado comprador de produtos manufaturados. A demanda dos vizinhos por itens desta natureza está ligada ao histórico recente do país. “A economia argentina foi praticamente destruída na década de 90”, observa o doutor em Relações Internacionais Charles Pennaforte, coordenador do grupo de pesquisa Geopolítica e Mercosul da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Isso impactou, segundo ele, no parque industrial que havia sido consolidado no início do século XX. Por isso, produtos industrializados do Brasil encontram menor concorrência na Argentina, desde calçados até automóveis. Entre outros motivos, Pennaforte cita ainda a proximidade e a tarifa reduzida. 

Nos municípios da fronteira com o Rio Grande do Sul, o clima é de campanha acirrada e os moradores deixam transparecer a predileção dos eleitores locais. 

Argentina

Foto: Mauro Schaefer

Dois símbolos ligados à identidade nacional convivem harmonicamente na principal praça de Paso de los Libres, na fronteira com Uruguaiana. O busto de Evita Perón, descrita como “chefe espiritual da nação argentina”, está localizado a poucos metros de monumento aos combatentes das Malvinas, recentemente restaurado. 

Na região central da cidade, porém, a candidatura oposicionista encontra mais espaço. Os rostos de Alberto Fernández e Cristina Kirchner são onipresentes, enquanto que é difícil encontrar propaganda alusiva ao atual presidente e candidato à reeleição, Maurício Macri. Não que o atual mandatário não tenha seus eleitores. Porém muitos optam por se manifestar de maneira tímida frente ao atual momento econômico do país. Na província de Corrientes, onde está localizada a cidade fronteiriça, Fernández venceu Macri por uma diferença ao redor de 20 pontos percentuais nas primárias ocorridas em agosto. 

Um dos temas que mais desfavorecem a candidatura de Macri à reeleição é o aumento da pobreza na Argentina, que segundo o Instituto Nacional de Estatística chegou a 35,4% da população - sendo que 7,7% são considerados indigentes. No segundo semestre de 2017, o índice era de 25,7% dos habitantes, o que na ocasião representou queda de cinco pontos percentuais na comparação com o ano anterior. Ao assumir o governo, em dezembro de 2015, Macri havia prometido “pobreza zero”. “Há muito desemprego, recessão, falta de consumo, perda de valor dos salários. Tudo isso fez com que a crise social seja muito grande”, afirma o radialista Sergio Lopez, da FM Activa. 

O trabalhador rural aposentado Mariano Gomez diz que não voto no peronismo | Foto: Mauro Schaefer

 

A inflação acumula alta de 37,7% em 2019. O quilo do pão francês, que há um ano custava 67 pesos na grande Buenos Aires, hoje é vendido a 98 pesos (o equivalente a R$ 6,91). “No último mandato de Cristina (2011 a 2015), os preços também encareceram”, pondera o trabalhador rural aposentado Mariano Gomez, morador de Paso de los Libres, que pretende votar pela reeleição de Macri. Ele afirma que, embora os valores de alguns itens tenham aumentado, consegue viver de forma tranquila com a aposentadoria. Crítico do peronismo, Gomez afirma nunca ter votado no movimento político hoje representado pela chapa Fernández-Kirchner e considera um exagero a associação feita como defensores dos mais pobres. “Colocam isso nos ombros de Perón, mas não são mais como Perón”, resume.

Um dos fatores que mais provocou repercussão nesta eleição foi o fato de a ex-presidente Cristina Kirchner, hoje senadora, concorrer como coadjuvante da chapa peronista, como candidata a vice de Alberto Fernández. Quando deixou o governo, em 2015, a ex-presidente enfrentava acusações de corrupção. “Cristina é povo, é amor, é empatia”, define Luis Humbero Danuzzo, morador de Paso de los Libres e eleitor de Alberto Fernández. Otimista, ele considera irreversível a vantagem obtida pela chapa peronista. Danuzzo cita entre as qualidades de Fernández a participação do hoje candidato no governo Kirchner (foi chefe de gabinete de Cristina) e o fato de ser professor de Direito na Universidade de Buenos Aires. “Creio que pode ser um bom presidente. Não 'muito bom', mas um bom presidente dentro desta situação”, define. 

Muitos argentinos perguntam-se qual será o papel de Cristina em um eventual governo Fernández e quais serão as semelhanças com os três governos kirchneristas. “O contexto internacional é bem diferente daquele que vigorou durante os 12 anos de governo de Néstor e Cristina Kirchner. Não havia uma figura como Trump nos Estados Unidos nem Bolsonaro no Brasil”, afirma o argentino Gabriel Vitullo, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ainda assim, Vitullo aposta que haverá semelhanças com as políticas implantadas durante o “kirchnerismo”. 

Ele acredita que, caso seja eleito presidente, Fernández promoverá a ampliação de direitos e uma reorientação da política externa, mais voltada para o fortalecimento dos laços com os países vizinhos. Com relação ao Brasil, Vitullo ressalta que Fernández tem dito que os dois países estão unidos por “laços que vão muito além do atual governo e que procurará não entrar no jogo de qualquer provocação” do governo brasileiro. No caso de um triunfo de Macri, o professor acredita que as relações com os países vizinhos tendem a permanecer como estão.

Integração avança

O hall de entrada da Prefeitura de Uruguaiana é decorado por pinturas que ilustram encontros entre os presidentes de Brasil, Argentina e Uruguai ocorridos no município. O primeiro deles datado de 1865, que marcou a “Retomada de Uruguaiana” após o cerco dos paraguaios, durante a guerra da Tríplice Aliança. Figuras ilustres como o argentino Juan Domingo Perón, o brasileiro Jânio Quadros e o uruguaio Julio María Sanguinetti estão entre os rostos que dão as boas-vindas aos visitantes e ilustram o simbolismo do município gaúcho, situado na fronteira com a argentina Paso de los Libres e a 80 quilômetros da uruguaia Bella Unión, para a integração entre o Brasil e os países da Bacia do Prata. 

Esta integração vive novo momento com a recente instalação dos free shops na cidade da Fronteira-Oeste. As lojas das redes Dufry e Central oferecem produtos como eletrônicos, bebidas, cosméticos, chocolates, entre outros. Mais cinco estabelecimentos devem abrir as portas até o final deste ano. Tanto brasileiros quanto argentinos podem fazer compras no local, limitados a 300 dólares por mês. Porém, o contexto econômico de ambos os países faz com que o movimento ainda seja tímido. Além da crise na Argentina, há o fator câmbio. Nos free shops do lado brasileiro, o dólar chegou a estar cotado a R$ 4,36. “Nas rodas de amigos e família é o que mais se comenta”, afirma o prefeito de Uruguaiana, Ronnie Mello. 

Prefeito de Uruguaiana, Ronnie Mello avalia como positivo a implementação dos free shops | Foto: Guilherme Almeida

Apesar do dólar alto e da apreensão pela chegada dos free shops no comércio local, que tradicionalmente recebe muitos turistas argentinos, o prefeito avalia que a implantação dos estabelecimentos já provoca resultados positivos. Um deles é o anúncio da instalação de um hotel da rede Ibis. O município também busca viabilizar a vinda de uma loja da rede Havan. A grande movimentação registrada no feriado de 12 de outubro, quando o comércio local ficou lotado, é citada por Mello como exemplo deste impacto. O free shop também é visto como oportunidade de fortalecer a vinda de turistas de outros estados do Brasil, por meio do Aeroporto Ruben Berta, que hoje conta com cinco voos semanais entre Uruguaiana e Porto Alegre. 

Empresários locais afirmam que o movimento em lojas frequentadas por argentinos caiu nos últimos meses, em função da recessão enfrentada pelos vizinhos. Mas isso não altera o plano de investimentos no município. “A expectativa é de que essa crise aos poucos se amenize e se resolva porque o argentino é de suma importância, não apenas para os free shops, mas para o comércio em geral de Uruguaiana”, complementa o prefeito. 

Segundo a Receita Federal, seis empresas estão autorizadas a operar lojas francas de fronteira terrestre em território brasileiro, quatro em Uruguaiana, uma em Jaguarão e uma em Barra do Quaraí. O professor Charles Pennaforte, da UFPel, acredita que os free shops são uma iniciativa interessante do ponto de vista da dinamização da fronteira. “O problema é o momento”, afirma, citando, além da crise argentina, o aumento na taxa de câmbio. “O turismo ficou caro para os argentinos por dois motivos: pela questão do câmbio e pelo empobrecimento da população”, concorda Marcos Lélis, da Unisinos. 

Uruguai

Foto: Guilherme Almeida

Assim como na Argentina, a economia é um dos pontos centrais na campanha uruguaia. Embora tenha permanecido distante dos sobressaltos dos países vizinhos, o crescimento do PIB do Uruguai tem ocorrido de maneira tímida nos últimos anos. A projeção para 2019 está abaixo de 1%. “Comparado com o caos da Argentina ou a profunda recessão que vive o Brasil, é uma situação positiva, porém de declínio da atividade econômica”, aponta o cientista político uruguaio Hugo Borsani, professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Os principais desafios, conforme ele, estão relacionados ao déficit fiscal, ao dinamismo da economia e ao percentual de funcionários públicos, em torno de 17% da população economicamente ativa, o que, para opositores, ajuda a disfarçar o desemprego. 

Em outro aspecto importante da disputa, a educação, mesmo algumas autoridades do governo admitem que não têm conseguido melhorar os índices. Segundo Borsani, os problemas concentram-se principalmente no ensino médio e técnico, de modo que as propostas para reformular o sistema estão no centro do debate eleitoral. 

A preocupação com a segurança no país tem crescido a tal ponto que, ao mesmo tempo que irão escolher o novo presidente, os uruguaios votarão um plebiscito que poderá endurecer o combate à criminalidade. A proposta foi apresentada pelo senador Jorge Larrañaga, que tentou se candidatar à presidência pelo Partido Nacional. “O governo que temos não nos dá segurança. Vivemos a incerteza de poder ser roubado na rua. O cidadão se cansou, então busca uma mudança”, afirma o bombeiro aposentado Luis Alberto de Cuadro Silveira. Morador de Artigas, na fronteira com a gaúcha Quaraí, ele se define como “bem uruguaio e bem de direita”. Seu candidato para a eleição deste domingo é Lacalle Pou, que propõe medidas que busquem trazer um “choque de segurança” ao Uruguai. Em seu plano de governo, o candidato afirma que o ano de 2018 registrou um recorde no número de homicídios, com mais de uma morte violenta por dia, algo inédito na história recente do país de 3 milhões de habitantes. 

Luis Alberto Silveira, bombeiro aposentado, se diz "bem uruguaio e bem de direita" | Foto: Guilherme Almeida

Por mais que a campanha seja visível nas ruas, o nível de polarização da política uruguaia está bem abaixo do que foi observado no Brasil em 2018. Segundo Borsani, isso ocorre porque o principal candidato de oposição, Lacalle Pou, não leva sua posição “a aspectos muito extremos”, nem faz coro ao discurso da antipolítica. Um dos motivos é o fato de ser filho do ex-presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle, que governou o país de 1990 a 1995. Por parte da esquerda, Borsani vê uma tendência ao pragmatismo na candidatura de Martinez, que já fez críticas ao presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o que desagradou a lideranças da Frente Ampla. “As posições extremas e muito polarizadas nunca foram um perfil da política uruguaia”, resume o professor. Baseado neste raciocínio, Borsani acredita que as relações com o Brasil não devem sofrer grandes sobressaltos de acordo com o resultado da eleição. 

A eleição deste domingo serve como teste para a coalizão de esquerda que há 15 anos governa o país, a Frente Ampla (foram dois governos de Tabaré Vasquez e um de José “Pepe” Mujica). Os frenteamplistas colocam entre suas principais conquistas estabilidade econômica, aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ampliação do acesso ao ensino superior e regulação da maconha. “Foram 15 anos em que houve crescimento importante no desenvolvimento da vida política e social, com incremento de salários, melhoria nas condições de vida, desenvolvimento das políticas de inclusão e das políticas de gênero”, enumera a professora aposentada Sonia Alves, moradora de Artigas e eleitora de Daniel Martinez. Ela defende a proteção da diversidade “como elemento fundamental de desenvolvimento de uma sociedade”. 

Para o professor Charles Pennaforte, da UFPel, uma possível derrota da Frente Ampla pode ser atribuída ao desgaste natural representado por 15 anos de um governo da mesma coalizão. Apesar disso, ele não crê que em uma mudança de rumo na relação dos uruguaios com os países vizinhos. “A chegada de um governo de direita não mudaria muito a concepção dos uruguaios, que veem o Mercosul como plataforma de projeção econômica”, observa.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895