Em busca da emancipação

Em busca da emancipação

A possibilidade de emancipações municipais no Rio Grande do Sul motiva debates que podem perdurar por décadas nas comunidades envolvidas, com argumentos contrários e favoráveis à criação de novas cidades

Por
Felipe Faleiro

Há dois lados bem definidos quando se trata da possibilidade de emancipações municipais no Rio Grande do Sul. O tema é complexo e motiva debates que podem perdurar por décadas nas comunidades diretamente envolvidas. “Muita polêmica tem se formado entre defensores e contrários à criação de municípios”, analisa o professor de Direito Administrativo da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e consultor legislativo da Comissão de Assuntos Municipais (CAM) da Assembleia Legislativa Filipe Madsen Etges, cujo tema de tese de seu Doutorado em Direito em andamento na PUCRS trata sobre novos municípios. 

Etges argumenta que os favoráveis à criação justificam a existência de bons índices de gestão e qualidade de vida relacionados com os novos municípios, maior aproximação dos cidadãos dos centros de poder, redução do êxodo rural e atendimento do poder público em locais mais distantes, em uma nação de tamanhos continentais. Já os contrários dizem que as despesas aumentam com a criação de novos cargos públicos, além de haver a proliferação de pequenos e insustentáveis municípios e pulverização de recursos oriundos de transferências constitucionais, como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

O Rio Grande do Sul é o terceiro Estado da federação em número de municípios, atrás de Minas Gerais e São Paulo, embora seja o sexto mais populoso. Ao longo da História, houve diversos grandes movimentos que buscaram criar unidades municipais. Até 1809, o RS tinha apenas quatro cidades: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha. E desde 1982, foram criadas 265, ampliando o número total de 232 para os atuais 497. Em 1988, houve a criação de 89, em 1993, mais 94, em 1995, mais 40, e outros 30 municípios foram instalados em 2001. O RS foi o Estado líder em emancipações entre 1989 e 2001, conforme artigo publicado em 2010 pela pesquisadora Cristina Thedim Brandt, economista e consultora legislativa do Senado Federal.

O fenômeno atingiu praticamente da mesma forma todas as regiões do Estado, com maior predomínio no Norte, e há estudos, como o do próprio Senado, que o relacionam ao aumento dos recursos do FPM, e, no caso específico do RS, a legislação estadual flexibilizada. Em 1990, o Estado estabeleceu, por meio de duas leis complementares, um mínimo de cinco mil habitantes ou 1,8 mil eleitores para se criar uma cidade. A Constituição de 1988, no parágrafo 4º de seu artigo 18, estabelecia a criação de municípios como de competência estadual, além de um plebiscito, mas uma emenda constitucional de setembro de 1996 alterou este entendimento. Inclusive, conforme o Supremo Tribunal Federal (STF), a emenda em questão visava “acabar com a crescente proliferação de municípios verificada no período pós-88”.

Nela, a consulta pública às comunidades envolvidas foi mantida; no entanto, a responsabilidade passou a ser de âmbito federal. A emenda de 1996 também trouxe o requisito da divulgação de Estudos de Viabilidade Municipal para a criação das unidades, o que não havia no artigo constitucional original. No entanto, conforme o presidente da CAM, deputado Eduardo Loureiro, este dispositivo não está regulamentado. “Por falta de regulamentação, não se sabe como teria de ser apresentado ou feito este estudo para cumprir esta normativa legal”, diz ele. O próprio período de sua realização, segundo o parlamentar, também precisaria ser especificado por meio de lei complementar.

“Alguns municípios foram criados após o ano de 1996. No entanto, somente foi possível [sua manutenção] em virtude de os processos terem iniciado antes deste ano e ter havido convalidação da criação destas últimas cidades por meio de uma Emenda Constitucional de 2008”, explica Etges. A emenda em questão, em parte graças a um “trabalho político junto ao Congresso Nacional” da Confederação Nacional de Municípios (CNM), afirma a própria entidade, autorizava os atos de criação, fusão, incorporação e desmembramento de municípios cujas leis haviam sido publicadas até 31 de dezembro de 2006. Foram os casos de 29 cidades criadas em 1996, entre elas Almirante Tamandaré do Sul, Capão Bonito do Sul e Itati. 

STF decidiu anular legislações estaduais

Em 2010, o governo estadual buscou editar novas leis complementares para a criação de cidades. Porém, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entrou, em 2012, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a partir de uma representação da Associação em Defesa do Território de Bento Gonçalves, e, em 2021, o STF decidiu pela anulação das legislações estaduais relacionadas. Há uma segunda ADI sobre o mesmo assunto, relacionada especificamente ao município de Pinto Bandeira, na Serra, cujo processo de emancipação teve diversas reviravoltas jurídicas. Neste caso, o entendimento da Justiça foi o mesmo das outras 29 cidades criadas até o final de 1996, cujas leis de criação não podiam ser desfeitas e, portanto, os municípios permaneceram.

O Projeto de Lei Complementar mais recente relacionado a como criar cidades foi apresentado em 2015 no Senado e atualmente está parado. O texto é o mesmo de um anterior que, em 2014, havia sido vetado pela então presidente Dilma Rousseff, com a justificativa de que traria “desequilíbrio de recursos dentro do estado e acarretaria dificuldades financeiras não gerenciáveis para os municípios já existentes”. Em 2018, já com Michel Temer na presidência, uma comissão especial fez alterações no texto, que, na prática, altera os critérios para a criação de municípios. Entre os requisitos, o número mínimo de habitantes foi levado em consideração: primeiro, era de 6 mil, depois passou a 12 mil, e, por último, 20 mil na região Sul.

Segundo a edição de 2021 do Índice Firjan Gestão Fiscal (IFGF), divulgado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), mais da metade das prefeituras gaúchas apresentam “dificuldades ou um cenário crítico” na gestão fiscal e em 59 delas as receitas oriundas da atividade econômica do município não são capazes de sustentar a estrutura do Poder Executivo e da Câmara Municipal. Por outro lado, porém, as administrações municipais do RS comprometem menos orçamento público com gastos com pessoal do que a média brasileira. 

O Rio Grande do Sul, conforme o índice, ficou na 2ª colocação neste indicador, com 67,4% das administrações com indicadores bons ou excelentes, perdendo apenas para o Mato Grosso, e 26,2%, ou 129 prefeituras, com nota máxima, o maior percentual entre todas as UFs. Conforme o Tesouro Nacional, os municípios gaúchos já receberam, neste ano, mais de R$ 3,39 bilhões em repasses do governo federal. Do total, 80,2%, ou R$ 2,71 bilhões, são provenientes do FPM, cuja importância para muitas cidades, especialmente as menores, é inegável e comparada ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que é estadual. O repasse deste tributo aos municípios em 2021, somando todos os 497, ultrapassou R$ 9,4 bilhões, conforme a Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz).

De acordo com o professor Etges, o tema econômico é um dos que deve ser levado em consideração na criação de municípios, ainda que não deva ser o único viés. “É preciso permitir a criação de novas cidades dentro de critérios adequados de sustentabilidade econômica e social, que possibilitem o desenvolvimento das regiões mais afastadas do país”, afirma ele. “É importante que o tema seja regulamentado e deve ocorrer de forma técnica, baseada em dados concretos que permitam um município sustentável de forma sistêmica”.

Na visão dele, além da relação receita e despesa, é preciso considerar ainda “aspectos sensíveis às comunidades, como pertencimento local, empoderamento democrático e autonomia para desenvolver sua comunidade”, salienta o consultor legislativo. Para o presidente da Comissão de Assuntos Municipais da Assembleia Legislativa, o debate sobre emancipações “praticamente nem existe” na atualidade. “Se existe, fica restrito dentro da comunidade através da manifestação de interesse, sem nenhuma consequência prática”, afirma o deputado Eduardo Loureiro.

Lomba Grande

Na esteira das emancipações, há outras localidades que avançaram mais e igualmente não tiveram sucesso. Lomba Grande, em Novo Hamburgo, realizou um plebiscito em 1991. Dos 2.921 eleitores inscritos, de acordo com documentos da época, 2.509 votaram. O resultado da apuração terminou com 1.080 votos “sim”, 1.399 votos “não”, 13 brancos e 17 nulos. Em 1995, houve a tentativa de nova consulta popular, mas a ideia foi vetada pela Assembleia Legislativa após o então governador Antônio Britto justificar, entre outros motivos, que a saída de Lomba poderia “desfigurar” e “abalar” o território e a economia de Novo Hamburgo. O local virou bairro rural do município em 1996.

Esperança de independência

Em duas regiões gaúchas historicamente com desejo de se emanciparem de seus municípios-mãe, há aceso o sentimento de esperança de que a cisão um dia irá acontecer. O histórico distrito de Itapuã, em Viamão, na Região Metropolitana, repleto de belezas naturais, é um deles. O presidente da comissão emancipacionista da localidade, Ederaldo de Araújo, afirma que o local está “pronto para ser município”. “Este é um tema que mexe com nossas emoções.”

Ederaldo diz ainda se considerar presidente da Associação Gaúcha de Apoio às Áreas Emancipandas e Anexandas (Agaea), hoje inativa. No passado, a entidade atuou ativamente na causa da desanexação deste e de outros locais do Estado. “Os governos federais continuam com seu discurso de que só criamos despesas, mas continuo com minha tese de que o Orçamento da União começa aqui em nossos distritos, como Itapuã”, opina. Para ele, que diz acompanhar os projetos aventados em Brasília, o assunto não está mais sendo abordado em âmbito estadual. “A pandemia e outros aspectos tiraram o foco das emancipações.”

Os distritos de Quintão e Granja Vargas, no Litoral Norte, com cerca de 10 mil habitantes somados, têm o desejo de se emancipar de Palmares do Sul. A comissão emancipacionista foi criada por dez pessoas há cerca de 20 anos. Hoje, alguns dos membros não estão mais vivos. “Poderíamos, com nossa própria arrecadação, montar uma cidade bem melhor”, afirma Jocelaine Barragan Ferrero, proprietária de uma pousada em Quintão. Ela não fez parte da comissão, mas diz ter acompanhado os trabalhos. “Todo o IPTU arrecadado aqui vai para Palmares do Sul. O que retorna é o mínimo. Aqui é um polo de turismo que traz mais dinheiro para o município”, relata ela, afirmando também que não há escola de Ensino Médio na localidade.

“As crianças têm que se deslocar para Palmares do Sul ou Balneário Pinhal para dar continuidade a seus estudos. A sede se localiza a 43 quilômetros daqui, bastante distante e de difícil acesso para muitas pessoas.” A comissão, segundo Jocelaine, chegou a criar um mapa com os limites do novo município e entregou “toda a documentação que foi exigida na época” para a Assembleia Legislativa. O grupo tinha também um documento da AL para acompanhar as arrecadações na localidade. Porém, atualmente, a emancipação se tornou “inviável” em razão de todas estas mudanças na legislação.

PEC do Pacto Federativo

A proposta de emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo, apenas uma dentro do chamado Plano Mais Brasil, foi apresentada pelo governo federal em 2019. Segundo a equipe econômica liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o conjunto de normas projetava entregar aos estados e municípios até R$ 400 bilhões em 15 anos. Para isto, foram desenvolvidos alguns mecanismos, a exemplo da unificação dos gastos em Saúde e Educação na proporção de 40% dos orçamentos, tanto para os governos estaduais quanto municipais, suspensão da progressão e promoção funcional dos servidores, entre diversos outros.

Acontece que a PEC exigia aos municípios de até 5 mil habitantes comprovar, até 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira. Senão, seriam extintos e incorporados à cidade em melhor situação fiscal a partir de 1º de janeiro de 2025. A Famurs e outras entidades municipalistas foram contrárias à proposta, que também assombrou parte das comunidades e os respectivos Executivos. Conforme a entidade gaúcha, 226 das 497 cidades do Rio Grande do Sul, ou 45,4% do total, deixariam de existir, caso a PEC fosse aprovada no Congresso Nacional. Cerca de 60% delas, ou 136, segundo justificou a Famurs na época, tinham IDH-M alto e 89, ou seja, mais de 39%, índice médio.

“Nos causou surpresa a equivocada avaliação que o ministro Guedes teve na relação com os municípios. Ele considerou que a arrecadação das cidades era apenas o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), que invariavelmente não estão presentes nas cidades menores. Mas a economia gerada neles, muito baseada na matriz do setor primário, é muito maior. Soja, um aviário, uma pequena agroindústria, todas estas atividades produzem divisas extraordinárias”, analisa o presidente da Famurs. Embora a PEC esteja atualmente com o relator, senador Marcio Bittar (União Brasil/AC), há diversas emendas, inclusive dos três senadores gaúchos, que buscam suprimir ou desidratar a extinção dos municípios.

O professor Filipe Madsen Etges explica que o processo de criação de municípios no Brasil é “relativamente normal” ao longo da República, com momentos de maior ou menor abertura “de acordo com a política centralizadora ou descentralizadora do governo federal”. “Em governos denominados democráticos, ocorreu maior número de emancipações, enquanto a escassez foi verificada durante os períodos de governos ditatoriais”. Ele exemplifica: 475 cidades foram criadas durante a Constituição da Primeira República (1891-1934); 81 na Constituição da Segunda República (1934-1937); 217 na Constituição do Estado Novo (1937-1946); 2.235 na Constituição Democrática de 1946 (1946-1967); 234 durante as Constituições do Regime Militar (1967-1988); e 1.447 após a Constituição de 1988.

Segundo ele, “causa estranheza a falta de regulamentação em momento democrático no país, uma vez que a possibilidade é constitucionalmente prevista”. “Independente do maniqueísmo político entre contrários e favoráveis, é inegável que já são 26 anos sem que o tema seja solucionado”, diz o consultor legislativo da Comissão de Assuntos Municipais da AL. “Avaliamos que, quanto ao dinheiro público, quanto mais perto das pessoas, mais bem administrado ele é e existe melhor desenvolvimento local”, diz Salmo, da Famurs.

Idas e vindas do município de Pinto Bandeira

A cidade de Pinto Bandeira, Capital Estadual do Pêssego de Mesa, se emancipou em abril de 1996, mas só teve suas primeiras eleições em 2000. O município em si foi instalado no ano seguinte. Em 2003, uma liminar do STF determinou que ele retornasse a ser distrito de Bento Gonçalves, de onde havia se emancipado, e sete anos depois, o mesmo STF decidiu pela recuperação da autonomia política. Houve novas eleições para prefeito em 2012, e Pinto Bandeira virou outra vez cidade em 1º de janeiro de 2013.
“O município hoje está bem consolidado, não vai mais retornar para a cidade-mãe. Não se imagina o quanto estamos crescendo, tanto em população quanto no nosso percentual de arrecadação”, afirma o prefeito de Pinto Bandeira, Hadair Ferrari. De acordo com ele, o avanço atual da cidade de cerca de 3,1 mil habitantes é “bem maior” do que era enquanto distrito de Bento Gonçalves. “Estamos realizando grandes obras e fizemos há poucos dias nosso primeiro Fórum de Turismo. Aqui é povo que trabalha”.

Conforme o DataSebrae, o setor de serviços e comércio representava 41,3% do Valor Adicionado (VA) do município em 2018 e a agropecuária, 28,6%. Ferrari diz ainda acreditar que a PEC do Pacto Federativo “não vai evoluir”. “Mas, se evoluir, paciência. Nós vamos batalhar para continuar como cidade. Acreditamos que todo este processo valeu a pena e temos que ser firmes quanto à emancipação. Não temos dívidas e precisamos sempre valorizar o interior. Quando a colônia vai bem, a cidade vai bem também”, avalia o prefeito de Pinto Bandeira.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895