Em busca de apoio e tratamento adequado

Em busca de apoio e tratamento adequado

Apesar da existência da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, os atípicos normalmente não recebem atendimento apropriado em grande parte da rede pública e privada

Por
Felipe Uhr

Autismo, quanta coisa há por trás desta palavra de sete letras. Indivíduos com esse espectro, classificado como transtorno, ainda são discriminados no mundo em que vivemos. Com suas peculiaridades, eles apresentam sintomas que variam, assim como os tratamentos e os medicamentos que usam. 

Segundo dados do Centro de Controle de Doenças e Prevenção dos Estados Unidos, existe hoje um caso de autismo a cada 44 crianças. Estima-se, através desse mesmo órgão, que o Brasil tenha 2 milhões de autistas. Desde 28 de dezembro de 2012 vigora a Lei Nº 12.764 conhecida como Lei Berenice Piana, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Porém, após quase dez anos, há muito para se avançar. Pessoas com espectro autista normalmente não recebem atendimento adequado tanto da rede pública quanto da rede privada. Os relatos a seguir são de mães que carregam o fardo dessa lacuna. As mães do autismo.


Angelina, de 6 anos, sabe falar quatro idiomas, toca bateria e piano. A música é o seu suporte, gosta de ouvir a toda hora. Foto: Alina Souza

O verão de 2017 mudou para sempre a vida de Érika Rocha. Em um dia do mês de janeiro, ela notou que a então filha caçula, com 8 meses de idade, estava bem diferente. “A Angelina foi dormir de um jeito e acordou de outro. Aquela bebê risonha amanheceu um outro bebê, que não sorria mais, que nunca mais procurou os meus olhos, parece que desprogramou o cérebro e esqueceu, sabe?”.

Ainda não passava pela cabeça de Érika o que acontecia com a filha. Angelina dava os primeiros sinais mais claros do Transtorno do Espectro Autista (TEA). “Eu achei que fosse da personalidade dela, achei que ela era uma criança mais séria.” Quatro meses depois, quando a filha completaria um ano de vida, Érika ouvia a palavra autismo da boca da pediatra de Angelina. A médica tinha experiência na área e, observando o jeito da menina, não teve dúvidas. A mãe desconhecia do que se tratava. “E quando eu fui na consulta de um ano da Angelina, que é a consulta rotineira, eu cheguei na pediatra crente que a minha filha era surda, muda.”

Três meses depois, ela foi diagnosticada oficialmente com TEA. Começava a luta de Érika por tratamento, igualdade e direitos para a filha caçula. “Eu passei de professora do ensino infantil à mãe atípica em tempo integral.” Sem rede de apoio, ou suporte familiar, ela foi atrás de informações sobre o transtorno. Além da falta de informações, ela combate a precariedade do Sistema de Saúde no atendimento a pessoas com espectro autista. “Sofri muito sozinha, calada, sem ninguém para me orientar. Bati em porta de CRAS, Conselho Tutelar, Defensoria, Ministério Público, em todos os lugares eu fui e nunca tive socorro.”

Sem emprego, a ex-professora de 42 anos hoje recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC) por conta do transtorno da filha, no valor de um salário mínimo. Com o dinheiro, ela tem de pagar os medicamentos que a filha precisa, as contas da casa e alimentação. “Se eu escolhesse somente a Terapia Ocupacional eu não teria como pagar R$ 360,00 por semana”, explica. Hoje ela não precisa pagar aluguel, pois, quando trabalhava, conseguiu comprar o seu espaço, uma casa no bairro Partenon, em Porto Alegre. O pai da menina quase não tem recursos para ajudar. “Quando eu preciso, ele fica com ela”, conta. Sem dinheiro para os tratamentos, ela espera na fila do SUS. “Estou na fila do Gercon (Gerenciamento de Marcação de Consultas) desde 2018.”

Por falta de tratamentos, a filha, hoje com 6 anos, regrediu. “A Angelina transitava do nível 1 para o 2, hoje ela está do nível 2 para o nível 3.” Dos nove atendimentos que necessita (terapia ocupacional, fonoaudiologia, musicoterapia, ecoterapia, hidroterapia, treino comportamental ABA – 30 horas semanais, psicoterapia infantil, neuropsicologia infantil e psicopedagogia), tem apenas dois durante a semana: musicoterapia e terapia ocupacional. Toda terça-feira Érika leva a filha para os atendimentos em Canoas. Neurologista apenas uma vez por ano. “Do que adianta os diagnósticos se não tiverem a terapias precoces?”, questiona ela.

Pela filha, Érika luta e briga. Como a vez em que uma funcionária de um shopping não queria deixá-la entrar no banheiro com Angelina. “Disse para eu amarrar a minha filha no banco e entrar no banheiro. Foi em 2019, uma das piores situações que já vivi”, recorda ela. O preconceito afasta a filha ainda mais de outras crianças. “A Angelina não sabe interagir, já ouvi outras mães dizendo ‘sai de perto dessa menina esquisita’.” O preconceito e falta de assistência abalam o coração materno. “Me dói o descaso, não enxergam quem tem deficiência como ser humano.” Mas para quem já perdeu o filho mais novo, já com Angelina diagnosticada, os momentos difíceis existem para serem superados. A filha a mantém firme e forte. “Se não fosse por ela, eu já tinha caído."

Método para um melhor atendimento

O ABA (Análise do Comportamento Aplicada) é um método de origem norte americana, que recebeu muito fomento financeiro e divulgação nos últimos anos. Segundo a psicóloga Gabriela Xavier de Araujo, doutora em Psicologia Psicanalítica pela Universidade Paris VII/ USP, o ABA visa ao treinamento de comportamentos de habilidades sociais e tem uma carga horária importante de treinamento semanal. 

Ela lembra, porém, que existem muitos métodos terapêuticos para o autismo, mais ou menos conhecidos. “Na minha experiência, já recebi pacientes que aumentaram as estereotipias (ou ‘stims’, que são movimentos repetitivos) e mesmo as ecolalias (repetições de palavras e frases) pelas altas exigências que o método ABA submete. Mas tem muitos estudos que apontam evidências de melhoras”, destaca. A psicóloga enfatiza que, como são muito variados os quadros de autismo, o que é bom para um pode não funcionar para outros. “O método ABA não é o método com que eu trabalho, eu trabalho como psicanalista. Penso que o tratamento deva ir na direção de ampliar o repertório de cada um, partindo dos seus interesses. Para construir pontes cada vez mais largas”.

Gabriela afirma que uma das premissas principais da psicanálise é a da singularidade, que vai ao encontro com o movimento da neurodiversidade. “Vários psicanalistas mais antigos já se equivocaram na compreensão das causas e do modo como entendiam o tratamento. Os movimentos sociais da deficiência nos fizeram avançar muito. Assim acredito que nosso norte para pensar também os tratamentos deva ser o relato dos próprios autistas e o que funciona para cada um”.

Das dificuldades financeiras ao preconceito


Thais conta que, mesmo com problemas financeiros e de acesso ao atendimento adequado, o preconceito ainda é umas das piores situações que passa em relação ao pequeno Oliver. Foto: Alina Souza

Angelina é diferenciada. Com 2 anos já sabia ler e escrever. Agora, aos 6 anos, sabe falar quatro idiomas, toca bateria e piano. A propósito, a música é o seu suporte, gosta de ouvir a toda hora. “A comunicação dela é toda através da música”, explica Érika. O espectro autista lhe dá certas peculiaridades. A menina precisa da mãe para tudo. “Ela não consegue sequer fazer atividades de vida diária, não toma banho sozinha, não veste um tênis, não escova um dente, não penteia o cabelo, não bebe nada.” Com acesso às terapias desde cedo, Angelina teria evoluído, garante a mãe. “Se ela tivesse o tratamento necessário, teria o mínimo de independência”. A menina nunca frequentou escola. Nos primeiros anos, não era aceita. Quando foi matriculada, não era cuidada adequadamente, segundo Érika. O mundo de Angelina, por ora, ainda é um mundo à parte que Érika tenta diminuir. “O que me entristece é ver ela sem contato com crianças, trancada nessa prisão domiciliar”, diz. No ano passado Érika compôs a música “Mundo Azul”, lançada no dia 2 abril, dia mundial da conscientização do autismo, em homenagem à filha.

A poucos metros da casa de Érika, mora a operadora de telemarketing Thais Rodrigues. Em uma pequena casa construída no terreno da mãe, ela, o esposo Bruno André e os dois filhos moram há sete anos. Antes moravam junto com a mãe. “Cada vizinho ajudou com uma coisa, um fez o chão, o outro as entradas e assim fomos construindo”, conta ela.

Há quatro anos mudou de vida, como ela mesma gosta de falar. “São dois mundos, tudo muda.” O segundo filho de Thais, Oliver, tem espectro autista. O mais velho tem dislexia. “A pior parte não é nem financeiramente, mas o olhar das pessoas”, relata, emocionada. O preconceito e o jeito que olham para ele é o que ela mais sente. “Começa na família”, conta ela, que já tinha uma sobrinha com espectro autista. Além da discriminação, faltam recursos para os tratamentos que o menino necessita. “Falta psicóloga, musicoterapia e psicopedagogia.” Com os dois salários mínimos que ela e o marido ganham juntos conseguem pagar terapia ocupacional e fonoaudiologia.

Segundo ela, tudo foi precoce na vida de Oliver. “Com 10 meses ele quebrou o braço e não chorou. Eu vi que tinha algo errado.” O bebê que não chorava teve o diagnóstico aos 2 anos de idade em um Posto de Saúde. Oliver não falava. “Foi o fim do mundo.” As expectativas em relação ao futuro do caçula da família viravam dúvidas, como a própria Thais conta. “Fiquei em choque, sou muito sincera. Quando aconteceu comigo eu soube como minha irmã se sentia.” O desconhecimento do marido veio à tona. “Ele me comentou ‘esqueci de perguntar para o médico quanto tempo cura’”. A tensão tomou conta do casal com a nova realidade. “Ele ficou bastante em choque, chorava alguns dias. Na verdade, até hoje a gente chora.” Apesar de o menino não tomar remédios, a falta de terapia constante causa bastante dificuldades na rotina. “Ele não dorme durante a noite, é bastante complicado.”

Apesar dos obstáculos de comunicação e das complicações devido ao pouco espaço em casa e da falta de acesso aos tratamentos adequados, para Thais o preconceito ainda é umas das piores situações. E não é raro ver a falta de sensibilidade em outras pessoas. A mãe conta uma situação em que o professor de jiu-jitsu, projeto em que Oliver participava, pediu que ele parasse ou saísse. “Não tem como ele ficar quieto. Eu sei que muitas pessoas não entendem a condição do meu filho.”

Os últimos anos não foram fáceis. Na pandemia Thais ficou desempregada, o aperto foi maior ainda e a família precisou parar os tratamentos de Oliver. Para poder trabalhar, ela deixa o menino na creche, onde é bem cuidado e tratado. Mesmo sem condições de guardar dinheiro, Thais tem sonhos como o de outra casa, mas se contenta com coisas básicas. “Queríamos uma mesa para eles poderem comer ou um quarto só para eles”.

Atípico

A psicóloga e psicanalista Gabriela Xavier de Araujo vê a difusão do termo “atípico” como uma conquista dos movimentos de neurodiversidade, despatologização e anticapacitista, pois passa-se a se pensar no autismo não como doença, mas como condição. “Condição atípica que se contrapõe àquela que seria considerada de desenvolvimento típico”, destaca. 

Mães e pais de autistas também se nomeiam “atípicos” porque a experiência deles assume outras questões como principais. “Escutei de algumas mães o quanto era angustiante perceber que a experiência de maternidade delas era muito diferente das mães de crianças típicas”, diz. Gabriela também conta que, por vezes, a maternidade ganha função de militância. “Posto que ainda temos muitas barreiras para quebrar, para avançarmos na direção da inclusão, as pautas que movimentam as mães atípicas são outras. E me parece que dentro desse lugar, dessa nomeação há um reconhecimento mútuo dos impasses que o outro passa.” 

Centro especializado

Ainda este ano, a Prefeitura de Porto Alegre pretende entregar o primeiro Centro Municipal de Diagnóstico Médico e do Tratamento Médico Integrado do Transtorno do Espectro Autista. “Estamos preparando para o lançamento do edital já nos próximos dias”, informou o Coordenador do Centro, o médico psiquiatra Alceu Gomes Correia Filho.

Depois do lançamento do edital de contratação da empresa gestora do Centro, os empreendimentos interessados terão 30 dias para manifestar interesse. Está prevista a contratação de 26 profissionais na área da saúde: dois psiquiatras de infância, dois neuropediatras, quatro psicólogos, dois fisioterapeutas, dois terapeutas ocupacionais, dois fonoaudiólogos, quatro enfermeiros e oito técnicos de enfermagem. O custo deste quadro técnico, mais os serviços de segurança, administração e de serviço gerais será dividido entre as secretarias da Saúde e da Educação.

Um imóvel de 416 metros quadrados, cedido pelo governo do Estado, localizado na avenida Bento Gonçalves, já está em fase final de reforma. Ali, serão tratadas crianças com espectro autista de até 12 anos. “Teremos condições de atender 300 crianças, considerando que cada criança terá sua indicação individual de tratamento”, explica Gomes. A iniciativa prevê a ação integrada entre a secretarias da Saúde, da Educação e da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). “O encaminhamento poderá ser feito tanto pela Rede de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação como pela Rede de Atenção Psicossocial da Saúde”, ressaltou Gomes.

Primeiros passos de uma rede de atendimento 


Um imóvel de 416 metros quadrados, na avenida Bento Gonçalves, está em fase final de reforma para se transformar no Centro Municipal de Diagnóstico Médico e do Tratamento Médico Integrado do Transtorno do Espectro Autista. Foto: Alina Souza

Há um ano, no dia 19 de julho, o governo do Estado anunciava os três primeiros centros de referência macrorregionais em Transtorno do Espectro Autista (TEA) no RS. Atualmente são sete. O primeiro foi inaugurado em Santa Rosa, ainda em setembro do ano passado. Os Centros Referência em TEA têm como objetivo oferecer retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico às equipes dos municípios da macrorregião de saúde por meio de matriciamento, nas áreas de saúde, educação e assistência social.

“Não é um atendimento clássico e sim um suporte, onde há discussão de casos, quando se há casos, os profissionais dos centros auxiliam os municípios em qual estratégia usar em determinado atendimento”, explica Fernanda Mielke, especialista em Saúde da Política Estadual de Saúde Mental e coordenadora técnica do Programa TEAcolhe, do Governo do Estado. Cada Centro Regional de Referência em TEA será destinado ao atendimento dos casos severos, graves e refratários da região, definidos por protocolo previamente estabelecido.

Fernanda admite que há um déficit de profissionais qualificados em atendimento ao cidadão, criança ou adulto, de espectro autista. “A qualificação é um grande nó crítico. Precisamos preparar nossos profissionais da saúde para atender um autista que esteja com febre e que vá ser atendido na rede convencional por exemplo”. O TEAcolhe também quer sensibilizar a sociedade quanto à inclusão da pessoa com autismo e da família e horizontalizar o atendimento multiprofissional integrado à pessoa com autismo e à família. “É um trabalho que está no começo. Estamos iniciando uma caminhada de uma coisa diferente,” ressalta Fernanda.

O TEAcolhe cria 30 Centros Regionais de Referência (CRR) e sete Centros Macrorregionais de Referência (CMR) com o objetivo de organizar e fortalecer as redes municipais de saúde, educação e assistência social no atendimento às pessoas com autismo e suas famílias. Foi investido R$ 1,4 milhão na implantação dos sete centros macrorregionais. Isso envolve a compra de equipamentos e possíveis reformas na estrutura dos centros. Também foram disponibilizados R$ 350 mil mensais para o custeio dos sete centros. Para os 30 centros regionais, o valor disponibilizado será de R$ 600 mil mensais.

STJ aprova rol taxativo e põe em risco tratamentos cobertos por planos de saúde

Quem utiliza planos de saúde para atendimentos específicos diagnosticados com Transtorno do Espectro Austista (TEA) também está tendo dificuldades. Desde 8 de junho, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu favoravelmente ao rol taxativo. Ou seja, tratamentos ou remédios que não estão na lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não precisam ser cobertos pelo plano de saúde. O rol antes era exemplificativo, com interpretação ampla, representando a cobertura mínima dos convênios, o que permitia a entrada de novos tratamentos, especialmente por via judicial. Após a decisão, planos de saúde suspenderam alguns tratamentos a autistas.

Para dirigente do Núcleo de Defesa da Saúde da Defensoria Pública do RS, Liliane Paz Deble, a decisão gera insegurança jurídica. “A dúvida surge se o tratamento não é previsto no rol da ANS e houve a judicialização do pedido de tratamento.” Por exemplo, a terapia ABA, uma das mais utilizadas no tratamento de TEA, não está no rol da ANS. “O plano de saúde pode informar a interrupção, aí o segurado vai ter que buscar ajuizar a ação para dar continuidade ao tratamento.” 

O assunto já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Luís Roberto Barroso convocou audiências públicas para setembro para debater o tema, já que ele é o relator de cinco ações que discutem a constitucionalidade do rol taxativo. “A questão é recente, não há definição ainda. Embora a decisão do STJ tenha estabelecido a regra da taxatividade, há outras ações discutindo a sua constitucionalidade, assim como vários movimentos discutindo a questão”, conclui a defensora.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895