Fake News: Quando a verdade vira um detalhe

Fake News: Quando a verdade vira um detalhe

A disseminação de notícias falsas cria um desequilíbrio na balança política, pode abalar os pilares da democracia e contribui para o aumento da polarização na sociedade

Por
Carlos Corrêa

A esta altura do campeonato, não resta dúvida que 2020 tem sido um ano atípico, muito mais no mau sentido que no bom. É claro, vai ficar para sempre marcado como um ano praticamente perdido, aquele em que vivemos a pior pandemia de nossa geração. Mas não ficou só isso. Basta dar uma olhada em algumas manchetes que circularam pelas redes sociais nas últimas duas semanas para vermos como a realidade pisou fundo no acelerador e não para de nos surpreender: 

– No Cazaquistão foi descoberta uma pneumonia mais letal que a Covid-19.

– A Itália está perto de achar a cura para o coronavírus depois de descobrir que na verdade é uma bactéria que causa a doença.

– Até mesmo o Papa foi flagrado em uma foto fazendo gestos obscenos aos fiéis.

Surpreendente, não? Até seria, não fossem todas elas falsas. Essas e várias outras manchetes são apenas alguns exemplos de notícias inverídicas que são diariamente compartilhadas por milhares de pessoas como sendo verdadeiras. E não são. Aliás, estão longe de ser. No entanto, mesmo parecendo absurdas, passam como verdade para cada vez mais gente, como bem convém às fake news. O termo começou a ganhar espaço nos últimos anos e já foi incorporado ao nosso dia a dia, a ponto de ser banalizado por políticos que, toda vez que se veem diante de denúncias, alegam ser vítimas delas. 

O problema é que as consequências de tanta desinformação vão muito além do ambiente político. O resultado é um processo contínuo e nem tão lento assim de erosão do sistema democrático. Como era de se esperar, a questão é muito mais complexa do que simplesmente determinar o que é verdade ou mentira. Aliás, este talvez seja um bom ponto de partida para traçarmos um caminho que nos mostre como chegamos aqui.

Jogar com a verdade, ainda mais no ambiente político, não é algo exatamente novo. Não foram poucos os conflitos travados com base em mentiras. Para ficarmos em casos relativamente recentes, basta lembrar a Guerra do Iraque, em 2003, quando falsos relatórios apontavam que o país possuía armas de destruição em massa, o que se provou equivocado. Panfletos apócrifos em véspera de eleição sempre foram uma rotina nos pleitos realizados no Brasil. O que mudou foi a plataforma e o alcance. “Boatos e mentiras sempre foram peças no tabuleiro político. O que muda é que o boato ou a mentira muitas vezes tinham como canal um contato pessoal ou precisavam da cumplicidade dos meios de comunicação. O boato, para se tornar notícia, precisava ser publicado. Existia portanto um filtro. Em nome da credibilidade, nem tudo se publicava. Hoje, a tecnologia, antes com os blogs e agora com as redes sociais, fez com que esse filtro desaparecesse. A pessoa recebe uma foto produzida ou alterada e manda adiante. Pior, nem precisa ser uma pessoa, já que os robôs fazem esse trabalho”, explica Rodrigo Stumpf, professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Políticas da Ufrgs.

Foto: Shyntartanya / Shutterstock / CP

Aqui talvez seja preciso dar um passo para trás para depois seguirmos. Uma vez que toda a discussão em torno das fake news se dá a partir do que é verdadeiro ou falso, convém abordar antes o próprio conceito de verdade. “Uma pessoa diz que está calor, outra que está frio. Qual o critério para dizer se está calor ou frio? Há tanto subjetividade aí, a sensação de cada um, como objetividade, que é o que marca o termômetro. Mas nós só vamos chegar à verdade a partir de critérios objetivos e mediações. Não é nem a minha subjetividade, nem a do outro, mas a partir de abordagens objetivas”, explica o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, Agemir Bavaresco. Mesmo que a percepção da verdade possa ser diferente para cada pessoa, ainda assim se pressupõe que ela tenha um mínimo de objetividade. E aqui começam os problemas com as fake news, já que são criadas narrativas que muitas vezes não têm nada de verdadeiro ou objetivo. “A questão é que hoje se dá o mesmo peso a todas as narrativas, mesmo que algumas delas estejam totalmente distantes do que aconteceu”, complementa Stumpf.

Já que se parte do pressuposto que a imensa maioria dos indivíduos que abraçam e/ou compartilham notícias falsas não o fazem deliberadamente, a pergunta que fica é por que essas pessoas tendem a acreditar em narrativas tão fantasiosas? Não são poucas as respostas e elas vão muito além de questões ideológicas, passando pela própria tecnologia e até pelo nosso cérebro. Por mais toscas que algumas dessas notícias falsas pareçam, elas são extremamente competentes no que se propõem a fazer: gerar desinformação. De acordo com Emerson Wendt, há uma série de características em comum entre elas. “Existe uma lógica na questão das fake news quanto ao aspecto, quase uma forma de marketing para pegar a atenção de quem vai ler”, explica o delegado de polícia e especialista em crimes cibernéticos, citando alguns exemplos, como o uso de um texto todo em letras maiúsculas, erros de português ou chamadas como “isso a mídia não mostra”. “O interessante é que as fake news têm um outro vetor que não é só a leitura, mas a retransmissão. Tem aquele chamariz 'não deixe de ler e compartilhar' ou 'se você concorda, compartilha'”, diz.

Bolhas mais polarizadas

Compartilhamento não falta. Já em 2018, um estudo do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA), a partir de 126 mil histórias, indicava que, só no Twitter, notícias inverídicas se disseminavam seis vezes mais que as verdadeiras. Mais que isso, a mesma pesquisa também apontou que conteúdo com desinformação tem 70% a mais de chance de ser compartilhado. O que nos leva à questão da tecnologia. Recentemente, o documentário “O Dilema das Redes”, da Netflix, virou um sucesso inesperado ao mostrar de forma didática como as Big Techs, como são também chamadas as gigantes do setor de tecnologia da informação, contribuem para a disseminação de notícias falsas ao direcionar determinadas informações para cada grupo. Por meio de complexos algoritmos, cada conteúdo é dirigido para uma determinada faixa de público no Facebook, no Twitter ou no Google. Como o que está em jogo são polpudas verbas publicitárias, pouco importa se as informações são verdadeiras ou não, a prioridade é criar engajamento e permanência nos sites. 

A consequência é que cada público passa a receber apenas notícias condizentes com sua linha de pensamento, o que reafirma suas convicções, mas aprofunda a polarização da sociedade. “Não há mais espaço para ouvir o que eu não quero, já que é mais fácil silenciar opiniões opostas. O relato que o indivíduo faz pode se afastar de tal modo da realidade que não tem nenhuma relação com o evento real, mas quem recebe aceita aquilo ou porque conhece quem mandou, ou porque concorda com aquele padrão. E aí temos o problema das bolhas, as pessoas só recebem notícias com a perspectiva que elas gostam”, aponta Stumpf. 

Em termos de plataforma, Emerson Wendt revela que o Facebook ainda é a rede mais utilizada para a disseminação de fake news. Levando-se em conta que a empresa também é dona do WhatsApp e do Instagram, os problemas são os mesmos, apenas com proporções distintas. O que faz com que muita gente se questione sobre o poder que empresas desse porte têm nas mãos. “Nenhuma delas tem o poderio militar dos EUA ou da China, por exemplo. Agora, se falarmos em outro tipo de conflito, não aberto, de guerra de informação, sim, algumas dessas redes têm capacidade de interferir ou não nos processos eleitorais”, opina Stumpf.

Do ponto de vista técnico, em termos de computação a questão poderia ser minimizada consideravelmente se houvesse mais empenho por parte das Big Techs. Mas isso resultaria, claro, em menos lucro. Estudioso do tema há alguns anos, Dante Barone é professor do Instituto de Informática da Ufrgs e chefe do Computational Neuroscience and Cybernetic Systems (Concys), também da universidade, que pesquisa temas relacionados à neurociência computacional e sistemas cibernéticos. Desde 2018, aprofundou o interesse pelas conexões que a área tem com a disseminação de desinformação. Para ele, não bastaria uma só ação para eliminar o problema, mas a participação das Big Techs seria de grande importância. “Se elas tivessem outra postura, não se eliminaria o problema, mas políticas de mitigação aconteceriam. A questão é que elas lucram muito. O que precisaríamos é de um esforço mundial para que avanços venham junto de princípios éticos. Assim como ficou provado que as empresas tiveram participação em processos como o Brexit, elas bem que poderiam contribuir para a luta contra a xenofobia e outros malefícios”, afirma Barone.

Além de boa vontade, contudo, é preciso lidar com outro fator complicador, que é a velocidade com que a tecnologia avança. Se por um lado, há mais formas de se identificar robôs que disseminam desinformação nas redes, por outro, a mesma tecnologia torna esses mecanismos mais eficientes e difíceis de serem detectados. “É uma corrida de gato e rato. Os governos e as Big Techs precisariam ter uma concentração mundial vendo como a inteligência artificial pode agir para o bem e investir nisso de fato, para proteger as pessoas”, observa Barone.

Informação falsa de que a medição de temperatura por aparelho poderia causar câncer e cegueira obrigou alguns locais a alterar o procedimento | Foto: Alina Souza

O cenário joga contra

Há, contudo, um outro fator complicador bem mais perto do que se pensa e que age sem que sequer possamos nos dar conta. “Nosso cérebro tende a desconsiderar evidências contrárias àquelas que acreditamos”, revela o neurologista e professor de neurologia da Escola de Medicina da PUCRS, André Palmini. Para o médico, que já foi coordenador científico do Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções (Brain), é possível explicar do ponto de vista científico por que algumas pessoas tendem a acreditar em fake news, por mais absurdas e exageradas que algumas possam ser: “Seres humanos identificam suas convicções como inseparáveis da sua identidade. O fulano é o fulano mais as coisas que ele acredita. Então, quando existe algo que vai contrário a isso, é como se ele deixasse de ser o fulano. Quando as evidências batem com o que tu pensas, tu tens uma sensação recompensadora. E quando negam ou são contraditórias a isso, há uma tendência a desconsiderar ou de se sentir ameaçado. Por isso que as pessoas buscam ler só aquilo que já pensam”. 

Palmini explica que, da mesma forma que a dopamina, um hormônio neurotransmissor cerebral, é liberada diante de algo prazeroso, como se fosse uma recompensa, existe a contrapartida, que é a liberação de cortisol em situações de conflito. “Quando tu estás diante de algo que ameaça tuas convicções, isso atua no cérebro de forma contrária à recompensa, com a liberação de cortisol. O cérebro é permissivo para esse tipo de situação porque liga as tuas convicções com a tua identidade. É um círculo vicioso que alimenta a tendência de polarização”, afirma o neurologista.

Palmini cita alguns estudos e experiências que vão na mesma linha e mostram como pessoas com viés ideológico mais radical tendem a basicamente reforçar suas convicções. Estudos com magnetoeletrencefalografia (MEG), por exemplo, apontam que o sinal magnético é muito mais elevado quando recebemos evidências que confirmam nossas convicções. “Ou seja, nosso cérebro processa as evidências de forma a confirmar os vieses que temos, tornando mais difícil o processo de mudar de opinião”, aponta. Outro estudo propõe aos pacientes que identifiquem os movimentos de pequenos sinais de luz. No decorrer do processo, a identificação vai ficando mais e mais difícil. Palmini revela que, no entanto, as pessoas com perfil mais radical não admitem o aumento da dificuldade. “Elas assumem menos a incerteza. Pessoas radicais não conseguem dizer ‘eu não sei’”, conclui. Por fim, o outro experimento traz camundongos que precisam identificar odores que predominavam em uma mistura para serem recompensados. A pesquisa mostrou que, diante de cenários de incerteza, a dúvida levava os animais a um aumento na atividade cerebral e, quando confrontados com a escolha equivocada, rapidamente corrigiam e mudavam o rumo. “Para tu veres, os ratinhos, que não têm poder de reflexão, trocam de lugar, enquanto os seres humanos mais radicais preferem ficar dando soco em ponta de faca”, compara. Além destes, há outra lembrança na mesma linha feita pelo professor Dante Barone. Ele cita o Efeito Dunning-Kruger, um mecanismo de ilusão demonstrado pelos pesquisadores Justin Kruger e David Dunning, em 1999. Os dois comprovaram um fenômeno em que indivíduos com pouco conhecimento sobre determinado assunto acreditam que sabem mais sobre tal tema do que profissionais preparados, o que tem como resultados decisões equivocadas.

A psicologia também corrobora essa tendência do ser humano de negar a realidade em prol de uma autoproteção. “Existe uma tendência natural do indivíduo de acreditar no que nós chamamos de ‘ilusão’, ou seja, quando o desejo é maior do que a realidade. A ilusão é uma espécie de miopia, vemos a realidade da forma como queremos, distorcida pelos nossos próprios desejos e vontades. No desenvolvimento do ser humano, durante a infância, é uma experiência muito importante, mas na vida adulta, o sujeito precisa aceitar que a realidade tem suas próprias indicações, que, muitas vezes, são frustrantes e implicam renúncias. Para aceitarmos a realidade, precisamos suportar um tanto de angústia, de sofrimento”, explica Paula Daudt Sarmento Leite, psicanalista e presidente do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (Itipoa). 

Presidente do TSE, Luís Roberto Barroso lembrou dos riscos que corre a democracia diante das fake news. Entidade firmou acordo com empresas de tecnologia | Foto: Roberto Jayme / Ascom/ TSE / CP

Há um segundo vértice que é a postura agressiva diante do contraditório. “No extremo negativo, o sujeito pode ter atitudes violentas, criar e repassar mentiras ou gerar fofocas para abolir a diferença imposta pela maneira de se comportar do outro. Em um ponto não tão extremo, posso repassar fake news sem reconhecer de forma consciente que estou fazendo exatamente por se tratar de um assunto ou pessoa que me impõe essa diferença”, exemplifica a psicanalista, que acredita serem necessárias a empatia e a capacidade de tolerar a angústia como recursos para enfrentar obstáculos como as fake news.

Enquanto falta empatia no mundo, uma das melhores saídas contra a disseminação das notícias inverídicas tem sido as agências de checagens de fatos (fact checkings). No Brasil, quem desbravou esse caminho foi a Agência Lupa. Fundada em 2015, conta hoje com uma equipe de 20 profissionais e, como ressalta a diretora de conteúdo Natália Leal, foca em eventos passíveis de comprovação. Isso significa que opiniões, por exemplo, estão fora do radar – no máximo há uma busca para ver se há contradição por parte de quem disse. A intenção é se ater apenas à objetividade. “Trabalhamos com estatísticas, dados públicos, afirmações que podem ser comprovadas. Temos que ter uma âncora na realidade do que é o fato. E também não utilizamos o conceito de verdade ou mentira, até porque mentira pressupõe intenção e isso é muito difícil de ser comprovado”, explica Natália. 

A partir da escolha do evento, os profissionais se debruçam sobre as informações disponíveis, por meio de bancos de dados, grande parte oficiais. O tempo de checagem varia de acordo com cada notícia. “Depende muito do nível de aprofundamento da informação que está sendo checada. Às vezes em um debate eleitoral, por exemplo, vai ter um candidato afirmando que o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) não subiu, que a cidade não atingiu a meta. Isso é muito simples de verificar, com base em dados públicos. Mas têm relações que são feitas que são mais difíceis de comprovar”, explica a diretora de conteúdo.

Checagem em tempo real

As checagens em tempo real demandam uma preparação maior, uma vez que todas as possibilidades precisam estar à disposição dos profissionais. O discurso do presidente Jair Bolsonaro na Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro, por exemplo, foi acompanhado em tempo real pela agência. “Como a gente acompanha, já se tem ideia de que tipo de discurso vem nestes casos. E isso vale para qualquer caso de política. Fact checking é muito de preparo. Tem que fazer uma organização e analisar quais bancos de dados podem te entregar as informações que tu vais precisar. No caso do discurso do presidente na ONU, a gente já tinha um levantamento de meio ambiente, porque sabia que isso seria assunto, dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) seriam imprescindíveis, assim como dados do agronegócio. Vamos fazendo possíveis bancos de dados que podem ser acionados. E a partir da frase que aparece, a gente recorre a isso”, conta Natália, explicando que para aquela ocasião foram destacados quatro repórteres e dois editores.

Como era de se esperar, as fake news também vão se sofisticando com o tempo. Da mesma forma que muitas das que são difundidas se baseiam em narrativas que pouco condizem com a realidade, em muitos casos, o fato em si é verdadeiro. Mas volta a circular completamente fora de contexto, em muitos casos anos depois do ocorrido. Natália cita como exemplo o caso de fotos com caixões vazios que circularam nos primeiros meses da pandemia da Covid-19 no Brasil. A intenção ali era afirmar que os números de vítimas estavam sendo inflados. A foto em si era verdadeira, mas dizia respeito a um golpe aplicado em uma seguradora em Minas Gerais, em 2016. 

Um caso mais próximo e mais recente foi em torno de uma possível contratação do uruguaio Cavani pelo Grêmio. O interesse de fato foi confirmado pelo clube, ainda que as negociações não tenham avançado muito. No entanto, na véspera do aniversário do clube, em 15 de setembro, as redes sociais foram tomadas por uma onda de informações garantindo que o acerto havia sido selado. “Muitas pessoas diziam até que o Cavani estava hospedado em um hotel de Porto Alegre. Tinha até foto. E tudo isso vinculado a uma campanha de desinformação, de algo que vinha muito mais das redes sociais do que de informação mesmo. E o Grêmio, ao não negar a informação, acabou alimentando o boato. Não foi dito ‘Não, ele não vai ser apresentado hoje à noite’ e aí aquilo tomou um corpo muito maior do que o imaginado. Aí chegou na live de aniversário e o resultado era que todo mundo estava esperando o anúncio. E muita gente surfou nessa onda de desinformação", afirma o editor do site do Correio do Povo, Márcio Gomes.

Onda de desinformação sobre a contratação do atacante Cavani pelo Grêmio incluiu até mesmo relatos de que o uruguaio estaria na Capital para o acerto | Foto: Luis Acosta / AFP / CP 

O Correio do Povo, aliás, faz parte do Comprova, um projeto que reúne jornalistas de vários veículos do país que buscam descobrir e esclarecer notícias enganosas. Representante do CP no projeto, Márcio revela que, mesmo que em termos políticos eleições municipais gerem um número menor de desinformação na comparação com pleitos mais abrangentes, há sim bastante material de cunho regional circulando pelas redes sociais. “O volume não é tão grande quanto as campanhas nacionais, mas tem sim muita coisa regional circulando. Mas isso me parece que circula mais em grupos de políticos, do que o público comum. Mas à medida que a eleição se aproxima, sim, as pessoas começam a receber muita coisa. A eleição de 2018 foi bem pontual em relação a isso”, conta. 

Minimizar o conteúdo de algumas dessas informações falsas que circulam pelas redes sociais pode ter um saldo bem pior do que simplesmente tratar como um boato inconsequente. No Brasil, o caso mais grave aconteceu em Guarujá (SP), em 2014. Na ocasião, circulava nas mídias sociais da região a teoria de que uma mulher estava sequestrando crianças para rituais de magia negra. Um retrato falado chegou a ser compartilhado, principalmente no Facebook. O problema é que o desenho era de um crime ocorrido no Rio de Janeiro e a própria polícia local afirmou posteriormente que nada parecido foi verificado no município paulista. Só que a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi confundida com a suposta sequestradora e acabou morrendo depois de ter sido linchada por populares. Outro exemplo, esse menos violento, aconteceu recentemente, quando alguns locais que testavam a temperatura das pessoas na entrada por causa da Covid-19 passaram a apontar o dispositivo para o punho, já que se propagou nas redes sociais a informação equivocada de que o aparelho, apontado para a testa do indivíduo, emitia um raio infravermelho com potencial para causar câncer. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) até esclareceu de forma oficial que a informação era inverídica, mas as reclamações foram tantas que muitos estabelecimentos mudaram o padrão de medida.

Por mais que a desinformação atinja várias áreas da sociedade, existe um consenso de que suas consequências mais negativas acontecem mesmo no campo político. Os casos mais notórios são a suposta influência russa, por meio de desinformação, nas eleições dos EUA de 2016, e a quantidade de notícias falsas que circulou pela Grã-Bretanha durante a campanha pelo Brexit, o referendo que definiu a saída da região da União Europeia. No Brasil, às vésperas das eleições municipais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) firmou uma parceria com as principais Big Techs – Facebook (que inclui WhatsApp e Instagram), Google, Twitter e TikTok – para combater perfis falsos, uso indevido de robôs e impulsionamentos ilegais de conteúdo. “Há um outro vírus que ronda as eleições, capaz de comprometer não a saúde pública, mas a própria democracia. Trata-se das notícias falsas, das campanhas de desinformação e de difamação”, afirmou, em pronunciamento oficial, o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso. 

TRE criou comissão

Em um âmbito mais próximo, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) criou a Comissão de Enfrentamento à Desinformação, presidida pelo desembargador Jorge Dall'Agnol e que tem três finalidades principais: conscientização, fiscalização e responsabilização. Para as duas últimas, o foco deve ser em um monitoramento das redes, seguido da aplicação pura e simples da lei. Em relação à primeira, os cuidados devem ser especiais, na medida em que há uma espécie de mea culpa por parte das autoridades, principalmente se considerada a experiência das últimas eleições. “Pensamos muito na tecnologia em 2018, mas talvez tenhamos nos esquecido do eleitor. Ele não estava preparado, devidamente informado e alfabetizado para entender o fenômeno que aconteceu nas redes sociais”, admite Dall'Agnol, citando pesquisas que indicam que quase 70% dos brasileiros dizem já ter recebido desinformação. As medidas que vêm sendo tomadas pelo TSE e o TRE indicam a preocupação em não deixar as mesmas brechas verificadas no pleito mais recente. Da mesma forma, comprovam que o sistema poderia ter sido mais atento na ocasião. “O que mudou em relação à propaganda eleitoral de 2018 para agora? Houve essa resolução do TSE vedando a candidatos, partidos ou coligações que contratem disparos em massa de conteúdo. O TSE se deu conta de uma grave deficiência que não tinha percebido. Não conseguimos visualizar corretamente o potencial danoso da desinformação, não entrou no radar”, aponta Rodrigo López Zilio, membro auxiliar da procuradoria-geral eleitoral e professor de direito eleitoral da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (FMP).

Dall’Agnol observa que o ideal seria um processo de educação a longo prazo, mas como o tempo é curto, é necessário esse reforço dada a proximidade da votação em primeiro turno, marcada para 15 de novembro. “Como não temos esse ensino tão bem formado, optamos por essa conscientização, de modo que o eleitor tenha recursos e possa se defender das mentiras, que possa transitar com responsabilidade e bem informado nas redes sociais”, justifica o desembargador. Os prazos apertados, aliás, são alguns dos grandes inimigos na briga contra a desinformação no ambiente político. Do ponto de vista da lei, há uma série de medidas que podem ser tomadas para punir a disseminação das fake news. O problema é que em muitos casos, até que se alcance todos os passos legais, a eleição já passou, o que torna qualquer decisão posterior mais difícil. Zilio inclusive alerta para o risco de problemas em cidades menores neste ano. “Em um município pequeno, uma ação dessas pode ser decisiva. Vamos ver se a Justiça vai conseguir agir preventivamente nestes casos. A métrica entre o que é abuso de poder digital e o tamanho de cada município é o que vamos verificar”, aponta o professor, também coordenador do gabinete eleitoral do Ministério Público do RS.

Mais do que só negar e/ou esclarecer boatos, a luta contra a desinformação no ambiente político busca manter o equilíbrio das relações democráticas. “O principal efeito nocivo da desinformação é que ela desvirtua a balança entre os candidatos. Na medida em que fornece falsas notícias de um candidato, não corresponde à verdade e desestabiliza o processo eleitoral. E, ao fazer isso, ofende a democracia, que é o mais grave”, pontua o desembargador Dall’Agnol. Nesta mesma linha, o cientista político Rodrigo Stumpf observa que, a continuar a influência das fake news nos processos eleitorais, sequer é preciso fazer a transição para um sistema totalitário para que se perceba a curva descendente nos processos democráticos. “O grande risco que se corre é perder a qualidade da democracia. Podemos até seguir fazendo eleições, mas que nem sempre serão legítimas porque têm essa influência da redes. Os governantes nem precisariam prestar tanto contas, porque quando contestados, se utilizam de uma outra narrativa ali e pronto”, observa.

Foto: Alina Souza

A interferência da desinformação no cenário político tem sido tão grande e frequente que os protagonistas têm dedicado cada vez mais atenção ao tema. A diretora de conteúdo da Agência Lupa Natália Leal revela que cada vez mais tem sido procurada com pedidos de indicações de profissionais com experiência em checagem de fatos, destacando que tem existido um preparo melhor por parte das assessorias.

“Os políticos estão mais atentos. Há um tempo, era mais fácil comprovar que havia um dado errado. Hoje, eles já deixam muita coisa no ar, de uma forma que a metodologia não possa ser aplicada. Ou então reforçam suas equipes, com o objetivo de ter à disposição os dados corretos na hora de fazer uma afirmação. O que também qualifica muito o debate público, se trabalha com mais transparência”, afirma ela. O grande pesadelo dos políticos é o deep fake, uma técnica baseada no uso da inteligência artificial, que consegue substituir o rosto e a voz de uma pessoa, criando um vídeo realista. Apesar de alguns casos envolvendo celebridades já circularem na Internet, os especialistas acreditam que ainda vai levar um pouco mais de tempo para que se considere uma ameaça massificada. “Isso está muito ligado ao risco que representa. O grande problema está ligado à incapacidade das pessoas de perceber o que é verdadeiro, nem precisa que seja do nível de uma deep fake. Acho que ainda vai demorar para a gente ver deep fake em prática aqui”, aposta Natália.

Existe um consenso de que a lei brasileira ainda precisa evoluir em vários sentidos na questão da disseminação de desinformação – e a polêmica em torno do Projeto de Lei das Fake News só corrobora essa tese. O que não significa que não existam já hoje em dia mecanismos de regulação e, principalmente, responsabilização sobre a divulgação de conteúdo falso. Autor de nove obras sobre crimes cibernéticos, o delegado de polícia Emerson Wendt cita pelo menos dois trechos do artigo 57 da Lei Eleitoral 9504 que tratam sobre desinformação e preveem a suspensão do conteúdo veiculado e multa que pode ir aos R$ 50 mil. O mito de que as redes sociais são terra de ninguém também é de certa forma questionável. Existem caminhos pelos quais é possível se chegar à autoria de determinadas publicações ou mesmo verificar qual foi o marco zero de uma publicação disseminada a partir de compartilhamento no WhatsApp. “Em princípio, toda e qualquer mensagem do WhatsApp, de vídeo, foto ou link, tem uma identificação única. Há uma forma de acessar isso, pelas ferramentas de desenvolvedor do navegador. Se houver uma ordem judicial, o WhatsApp tem como rastrear tanto de onde saiu como quem compartilhou”, observa Wendt. Aliás, a responsabilização pode ser aplicada não apenas a quem iniciou todo o processo, mas também a quem compartilha fake news. “Para fins de indiciamento, tem que ser verificado o dolo da vontade de ofender, de reproduzir uma informação falsa. Pode acontecer de a pessoa simplesmente acreditar e compartilhar, mas isso não exime. Tem que ser avaliada situação por situação. ‘Ah, vou compartilhar’, bom, assumiu o risco. Isso pode gerar responsabilidade, se não penal pelo menos civil”, esclarece o delegado.

A questão é o quanto as autoridades conseguem seguir no rastro dos disseminadores. “A lei brasileira eleitoral foi firmada quando tratava de propaganda a partir de uma premissa de dois regimes de transmissão: rádio e TV e imprensa escrita. Esses meios de comunicação têm uma característica: há um emissor para vários receptores. Só que a Internet inverte essa lógica. São vários para vários, e essa horizontalidade é o que dá poder maior a essas pessoas que são contra um fair play eleitoral. De certa forma, dá uma importância até maior que os marqueteiros políticos”, contextualiza Zilio.

É possível ser otimista?

A julgar todo o contexto relacionado ao compartilhamento das fake news, fica a dúvida: é possível ter otimismo em relação ao futuro? Sim e não. Ou melhor, o médio e longo prazos, ao que tudo indica, dependem de um imenso “se”. “Se fizermos as escolhas certas agora, podemos ter avanços a longo prazo. Mas no curto prazo, são muitos fatores que não me permitem ser otimista. Acho que as mudanças vão ocorrer, a história é cíclica, é algo meio natural no caminho da humanidade que a gente tenha altos e baixos”, prevê Natália Leal. “Acho que podemos ter dois cenários. Ou a sociedade vê a importância disso, que essas questões podem prejudicar uma nação e passa a agir de modo mais coercitivo e também colocando meios e financiamentos para as universidades pesquisarem, ou então é uma guerra muito desigual”, pondera Dante Barone. A educação também é um ponto central na opinião de quase todos os entrevistados. Por mais que os resultados em alguns casos demorem a aparecer, quanto maior a demora, maiores serão os problemas lá na frente. “A resposta não pode ser isolada. É um fenômeno social que exige uma conjugação de esforços: agências de checagem, meios de comunicação, apostar na educação digital e o sistema de justiça”, sugere Rodrigo Zilio.

Há os mais esperançosos, que acreditam no potencial da sociedade de aprender a partir dos desafios apresentados. “Sou otimista. Acho que a mentira vai existir sempre, mas esses momentos de crise servem para balançar a gente. Isso faz parte do crescimento da humanidade. Se formos para pior do que estamos vivendo, vai ser o caos. Acredito piamente que esses tropeços são importantes para que a gente possa crescer. Ciclicamente a humanidade cresce a partir de cada problema que surge”, torce o desembargador Jorge Dall’Agnol.

Foto: Ricardo Giusti

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895