Falta prudência nas estradas

Falta prudência nas estradas

Três rodovias concentram 52% das mortes em BRs do Rio Grande do Sul. Embora tenha havido redução de acidentes de 2019 para 2020, não há motivo para comemoração

Por
Gabriel Guedes

Nas rodovias federais brasileiras em 2020, foram 63.447 acidentes, queda de 5,9% em relação a 2019, que teve 67.427 ocorrências. O número de mortes no ano passado, por sua vez, foi de 5.287, redução de 0,8% na comparação com 2019 (5.332), indicando que, embora tenha havido menos acidentes, eles foram mais letais.

No Rio Grande do Sul, o número absoluto de acidentes nas BRs diminuiu, passando de 3.614 para 3.349. No entanto, a proporção de mortes em relação às ocorrências pouco mudou, com ligeira diminuição de 1,36%. Já a quantidade de acidentes com morte foi 22,4% menor, indo de 304 em 2019 para 236 no ano passado, acompanhando a redução de 7,3% na quantidade de acidentes. Foram 14 mortes nas rodovias federais a cada dia em 2020 no Brasil. No RS, houve uma morte a cada 36 horas, o que faz do Estado o décimo em número de acidentes com morte em rodovias federais no país e o terceiro na região Sul. Embora os dados aparentem otimismo, especialistas afirmam que o saldo ainda se mantém trágico ao se considerar o volume de tráfego bastante reduzido no ano passado, por causa da pandemia de Covid-19. Não há um número global, mas só na Freeway (BR 290), por exemplo, houve semanas com até 57% menos de veículos trafegando nos horários de pico. Ainda assim, trechos da BR 116 entre Porto Alegre e Novo Hamburgo, da BR 290 na região carbonífera e da BR 386 no Vale do Caí e região de Lajeado, todos conhecidos pelo trânsito atribulado, concentraram 52% das mortes. Esta última, particularmente, a BR com mais acidentes fatais no Rio Grande do Sul, resultado da imprudência em uma estrada que tem um grande trecho em pista simples e traçado sinuoso, o que requer ainda mais cautela dos motoristas.

Estas informações constam no Painel CNT (Confederação Nacional do Transporte) de Consultas Dinâmicas de Acidentes Rodoviários, que foi atualizado, no final do mês de janeiro, com os números de 2020. Os dados são da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Foram 81 acidentes com vítimas a cada 100 quilômetros de rodovia federal no Brasil em 2020. Também mostra que alguns estados com malhas rodoviárias federais relativamente menores que a gaúcha, como Santa Catarina, que conta com 3.249 quilômetros, respondem por 11,6% dos acidentes com vítimas e 7,2% das mortes. O Rio Grande do Sul, que tem 5.585 quilômetros de BRs, participa com 6,5% dos acidentes e 4,5% das mortes ocorridas no país no ano passado. Mas este raio-x ainda apresenta outros dados. O tipo mais frequente de acidentes com vítimas é a colisão, com 54,8% das mortes acontecidas aos finais de semana, principalmente aos domingos (22,4%). A maior parte dos mortos (81,8%) é do sexo masculino. As estradas do Sul e Sudeste concentram os maiores índices de acidentes com vítimas, mas são as rodovias do Nordeste que mais matam, principalmente motociclistas. Já as rodovias do Paraná concentram mais mortes de ciclistas.

No RS, assim como no restante do país, o automóvel foi o tipo de veículo mais envolvido em acidentes com vítimas em 2020 (51,2% do total), seguido de motos (26,7%) e caminhões (16,7%). Os finais de semana costumam ter mais acidentes e, por consequência, mais mortes nas BRs, concentrando 69% dos sinistros. Além disso, homens com idades a partir de 36 anos, que somam 64,1%, foram os que mais morreram nas rodovias federais gaúchas em acidentes ocasionados por colisão entre veículos (61%).

Na sequência, saída de pista (18,6%) e atropelamento (17,4%) foram as duas outras situações que mais causaram mortes nas BRs do RS. Também houve mais acidentes no ano passado durante o dia (55,4%) e a noite (34,5%). O levantamento da CNT ainda aponta que 51,6% das mortes ocorreram em rodovias de pista simples e 40,4% nas de pista dupla. “Não é a rodovia que é perigosa. O fator principal do acidente é do condutor, que negligencia ou se coloca nesta posição. Quanto melhor a rodovia, mais a pessoa tende a cometer imprudência”, afirma o chefe do setor de Segurança Viária da Superintendência da PRF no RS, inspetor Marcelo Saturnino.

A rodovia com o maior número de acidentes no Brasil, em 2020, foi a BR 101, onde foram contabilizadas 8.715 ocorrências. Entretanto, em relação ao número de mortes, a BR 116 é a rodovia que mais mata. Ano passado, foram 690 vidas perdidas nessa via. No Rio Grande do Sul, a rodovia com o maior número de acidentes com vítimas foi a BR 116, um total de 822, com 40 mortes. A BR 290, especialmente no trecho da região carbonífera, entre Eldorado do Sul e Pantano Grande, somou 502 acidentes e 41 mortes. Mas a BR 386 despontou como a mais letal do Estado, com 487 acidentes com vítimas e 43 mortos. Os trechos mais perigosos, conforme a CNT, ficam entre Canoas e Tabaí, entre Fazenda Vila Nova e Marques de Souza, entre São José do Herval e Soledade, já na Serra do Botucaraí, e as travessias urbanas de Carazinho, Sarandi e Frederico Westphalen, no norte gaúcho. “É pista simples, sinuosa, com aclives e declives, além de ter o tráfego de muitos veículos de carga. É uma rodovia bem sinalizada, bem mantida, o que ajuda a evitar acidentes, mas não é o suficiente”, alega Saturnino.

O inspetor da PRF lembra que os números da BR 386, apesar de chocantes, mostram redução na letalidade na rodovia em comparação a 2019, quando 73 morreram. Porém, para quem costuma receber os acidentados, o trabalho continua árduo. O coordenador da Emergência do Hospital Bruno Born (HBB), de Lajeado, no Vale do Taquari, médico André Pinheiro Weber, afirma que o serviço acaba sendo bastante demandado, recebendo pacientes socorridos no trecho que vai de Paverama a Marques de Souza. “Temos dois perfis aqui: acidentes mais perto dos acessos aos municípios, com motocicletas, com mais acometimento de membros, mais comuns, e o outro, em sextas-feiras e domingos. A cada semana, chegam os muito graves”, conta Weber. E quando as vítimas chegam nesta situação, de extrema gravidade, o tempo vale muito. “Tudo depende da cinemática do trauma. Em colisões, frente a frente, a energia é somada. Há algumas semanas, um paciente chegou praticamente com a perna amputada, bem grave. Há alguns dias, um outro (acidente) acometeu tórax, fígado e baço. Paciente com trauma é como um infarto. Todo este processo, de estancar o sangramento, faz muita diferença no desfecho”, explica Weber. Segundo o médico, a instituição passou recentemente por processo de acreditação, certificação de qualidade dos serviços de saúde, em que houve mudanças de protocolos na Emergência, justamente para atender e salvar mais vítimas de acidentes.

A CCR ViaSul assumiu a concessão da BR 386, juntamente com as BRs 101, 290 (Freeway) e 448, em fevereiro de 2019. Em agosto do mesmo ano, iniciou a operação na BR 386, sendo que, a partir de fevereiro de 2020, começaram os trabalhos de restauração do pavimento sob o trecho concedido, entre Carazinho e Canoas, de 265,8 quilômetros de extensão. Em nota, a companhia afirma que tem realizado os serviços de conservação e manutenção do pavimento, conservação da faixa de domínio (capina e roçada), bem como a manutenção e implementação da sinalização horizontal e vertical. Também informa que, desde 2020, executa o programa de restauração do pavimento, que consiste em uma recuperação mais profunda da rodovia, com troca de asfalto e implantação de drenagem. “Todos estes investimentos estão descritos no Programa de Exploração da Rodovia, documento do contrato de concessão”, destaca a empresa. A CCR ViaSul afirma ainda que entre os dias 23 de dezembro de 2020 e 3 de janeiro de 2021, não foram registradas mortes em nenhuma das quatro rodovias sob sua administração, contra dois óbitos no período de 23 de dezembro de 2019 a 3 de janeiro de 2020. Outro índice colocado pela ViaSul foi a diminuição no número de acidentes com vítimas, que caiu de 41 no período anterior para 34 neste último levantamento.

Dados do RS nas BRs, conforme o painel CNT

Nada a comemorar

Rodolfo Alberto Rizzotto, fundador coordenador do SOS Estradas e autor de livros como “Acidentes Não Acontecem”, diz que as estatísticas ocultam outras vítimas dos acidentes de trânsito: os familiares. “A Diza Gonzaga foi vítima quando o filho Thiago morreu. Famílias são destruídas assim”, enfatiza. Atual diretora do Detran-RS, Diza passou a lidar com o assunto na gelada madrugada de 20 de maio de 1995, quando Thiago de Moraes Gonzaga, com 18 anos na época, morreu em um acidente de carro no qual era o carona, depois de sair de uma festa em Porto Alegre. Desde então, ela colocou suas forças na fundação que leva o nome do filho e no programa Vida Urgente, como forma de combater excessos e abusos dos jovens na direção. Alta velocidade e imprudência mataram Thiago e continuam matando nas rodovias gaúchas, na visão dela. “Não temos nada a comemorar. É insignificante esta queda. Estamos vivendo uma Segunda Guerra Mundial nisso e o Brasil está entre os cinco países em que as pessoas mais morrem no trânsito. O Brasil deixou a desejar. Temos índices de países atrasados”, critica.

Assim como Rizzotto, a diretora da autarquia assegura que esta redução nos números de acidentes e mortes nas estradas foi induzida pela Covid-19 e por isso não há o que ser comemorado. “Mesmo com a pandemia, em que houve redução significativa no tráfego em alguns meses, houve uma diminuição pouco significativa nos acidentes”, aponta Diza. Mesma observação de quem está na linha de frente no atendimento aos acidentados. “Com a Covid, tivemos um ano bem atípico. No final de abril, maio e junho, diminuiu bastante o número de traumas. Agora estamos voltando para o que seria o normal”, descreve Weber, do HBB. Os dados da CNT indicam o mês de junho de 2020, com sete mortos no RS, a menor marca no ano que passou. Já em quantidade de acidentes, os meses mais críticos da pandemia também foram os que tiveram menos ocorrências, como o mês de setembro. “Comparando os números nacionais, o Estado tem números bem melhores que o país. Todos os outros indicadores melhoraram”, lembra Saturnino, da PRF.

O presidente da CNT, Vander Costa, ressalta a importância da disponibilização dos dados de acidentes no Brasil. “O trabalho de fiscalização, levantamento e sistematização das informações relacionadas aos acidentes nas rodovias brasileiras realizado pela Polícia Rodoviária Federal é fundamental para nortear as ações de redução de acidentes, além de demonstrar o compromisso do órgão com a transparência de dados tão importantes.”

Diza acredita que a questão do trânsito “requer os três ‘e’: engenharia, esforço legal e educação”. O que os dados revelam, na opinião de Rizzotto, é a existência da “adoção de uma política de não fiscalização de velocidade”. A quantidade de mortos seria resultado disso. “Há uma relação direta entre a velocidade e a letalidade dos acidentes”, garante o Saturnino.

O ano de 2018 foi o menor em número de mortes nas rodovias federais desde 2007, conforme a CNT, e encerrou uma trajetória de queda no índice, o que vinha ocorrendo desde 2011. O ano de 2019 foi o primeiro com aumento e coincide com a decisão do governo federal em diminuir a fiscalização nas rodovias federais. A maioria dos radares fixos foram desligados e nos últimos meses de 2019 também não foram usados radares móveis e portáteis. Nos dois casos, houve decisões judiciais para que os equipamentos voltassem a ser utilizados. “Quando chegou abril (de 2019) começou esta política. O governo tentar desligar todos os radares fixos. Em agosto de 2019, o presidente da República pediu a retirada dos radares móveis. No RS, não teve uma única multa por excesso de velocidade entre 16 de agosto e 23 de dezembro. Aí houve uma decisão (judicial) de voltar com os radares móveis. Mas em 2020 não tivemos nem 400 mil multas por velocidade. Isso é um dado sem precedentes. E as consequências foram as mortes”, acrescenta Rizzotto. “A fiscalização retornou após reestruturação do regulamento, mas foi um pouco mais restrita por causa da pandemia. Mesmo assim, a gente conseguiu ter resultado. Quando enxergam uma placa de 80, motoristas têm andado a 80, porque sabem que podem ser multados. Isso é bom. A meta da fiscalização de velocidade é proteger o usuário”, diz o representante da PRF.

A reestruturação a qual Saturnino se refere é da resolução 798, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que passou a vigorar dia 1º de novembro de 2020. Com a nova norma, ficou proibida a instalação de radares móveis em locais escondidos, como dentro de viaturas ou em carros descaracterizados. Para a instalação de radares móveis e portáteis, a velocidade da via agora é considerada e o órgão ou concessionária responsável precisa mapear e divulgar previamente os locais sujeitos à fiscalização. Em rodovias, o dispositivo só poderá ser usado a 2 mil metros de um equipamento fixo. A fiscalização também tem de ser visível, com agentes de trânsito ou policiais devidamente uniformizados. “Assim, 95% da malha rodoviária federal não tem mais fiscalização”, afirma Rizzotto, que lembra que o Brasil segue na contramão de países como Espanha e Suécia. “Por aqui não há fiscalização da Polícia que acabe com esta imprudência. Com o aumento do tráfego nos próximos meses, o quadro para 2021 será ainda pior”, sentencia.

Nos trechos gaúchos das BRs, segundo a CNT

Todos pagam pelos acidentes

Fiscalização, como ressaltou Rizzotto, é necessária para frear a matança nas estradas. “Aqui no Brasil falamos da indústria da multa. Olha só, foram 2,3 milhões de multas em 2018 em 140 mil quilômetros de malha (rodoviária) no país. Isso dá duas multas por hora a cada mil quilômetros no país.” Além disso, o especialista ressalta que a falta de fiscalização está transformando infratores em famosos. “Eles andam nesta velocidade e estão no YouTube. E são remunerados por publicidade. O infrator virou celebridade e isso é resultado da impunidade”, denuncia. “Esta cultura de impunidade já está em vigor. Muitas vezes motoristas estão atropelando e matando, mesmo embriagados, nem sempre isso é tratado como crime. Tem uma corrente que diz que isso deveria ser chamado de sinistro do trânsito e não de acidente. Temos que ter tolerância zero com a morte no trânsito”, apoia a diretora do Detran-RS.

O presidente da CNT comenta que os índices de acidentes, especialmente os com vítimas fatais, revelam a necessidade de investimentos efetivos em infraestrutura rodoviária, na formação dos condutores e na ampliação de campanhas educativas com foco na segurança no trânsito. “Reduzir o número e a gravidade dos acidentes rodoviários é promover o transporte no país, com benefícios claros à economia e à sociedade. Assim, desenvolver ações voltadas à melhoria das condições viárias, à capacitação dos motoristas e à segurança veicular são a melhor estratégia para a superação desse grave problema”, sugere. No que tange à infraestrutura, a CCR ViaSul está iniciando a duplicação da BR 386, uma das obras mais esperadas pelos gaúchos e que tem a promessa de ser concluída em menos de 10 anos. O primeiro trecho, com extensão de 20,3 quilômetros de duplicação, começa neste mês, entre Lajeado e Marques de Souza. Além da duplicação, serão construídos, neste primeiro trecho, 13 quilômetros de vias marginais, dois retornos em nível, seis adequações de acesso, quatro passarelas de pedestres, seis novas pontes, seis alargamentos de pontes existentes, duas passagens inferiores e duas superiores.

Mas trânsito seguro não é feito apenas de concreto e asfalto. A educação, apontada por Costa, é um dos recursos que também Diza acredita ter potencial transformador. “É na educação que a gente vai mudar esta cultura da violência do trânsito. As pessoas entram no automóvel e se transformam em seres medievais. Então, estamos com a Escola Pública de Trânsito, on-line, por causa da pandemia. Neste espaço público privilegiado, estamos trabalhando a empatia. Vai trabalhar com todos os atores envolvidos, pedestres, ciclistas, motoristas credenciados do Detran. Será como uma escola convencional, vai ter sede, mas será uma escola de vida, porque educação é um processo permanente”, adianta Diza. “Ao longo do ano, a PRF desenvolve uma série de atividades voltadas à educação, como palestra em escolas. Porém, com a pandemia, estamos fazendo isso na pista, junto ao usuário, evitando o que envolve aglomeração”, resume o chefe do setor de Segurança Viária da PRF.

Apesar do pessimismo com o quadro mais imediato da segurança no trânsito, a presidente do Detran-RS não perde a fé. “Tenho certeza de que as reduções (nas mortes) poderão ocorrer. Quando iniciei o trabalho na fundação Thiago Gonzaga, beber e dirigir era normal. Hoje as pessoas já ficam envergonhadas”, exemplifica. Iniciativas de longo prazo, como as batalhadas por Diza, podem não apenas salvar vidas, mas ter como benefício também auxiliar a economia do país. O custo estimado de todos os acidentes em rodovias federais foi de R$ 10,22 bilhões, e somente no RS, foi de R$ 599,11 milhões. Custos com acidentes no Brasil equivalem a 4% do Produto Interno Bruto (PIB). “Se reduzirmos os acidentes por uma década, teremos economia de R$ 1 trilhão. A mesma meta que era da Reforma da Previdência”, compara Rizzotto, do SOS Estradas.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895