Incentivo para uma vida com protagonismo

Incentivo para uma vida com protagonismo

Ter alguma deficiência intelectual não necessariamente significa ausência de autonomia ou de independência

Por
Giullia Piaia

Apesar de serem comumente utilizadas como sinônimos, as palavras “autonomia” e “independência”, quando tratamos de comportamentos pessoais, têm significados distintos. A autonomia está relacionada ao poder de escolha: tomar suas próprias decisões. A independência está ligada ao auxílio necessário para realizar determinada tarefa ou tarefas.

Esses termos costumam se confundir ainda mais quando o tema é a vida de pessoas com deficiências intelectuais. Todos, com deficiência ou não, possuem necessidades de cuidado que variam conforme as capacidades pessoais e a amplitude da diversidade humana. Socialmente, a autonomia e o cuidado (ou nível de independência) são vistos como dicotômicos e, muitas vezes, se espera que a pessoa com deficiência intelectual ocupe um lugar de independência para ser considerada autônoma e capaz de expressar sua vontade.

Porém, o cuidado é essencial para a participação social e o exercício da autonomia. Ao contrário do que o estigma indica, autonomia não significa independência. As pessoas com deficiência intelectual podem precisar de diferentes níveis e tipos de suporte para exercer sua autonomia e ser protagonista da própria vida. A autonomia e o cuidado andam de mãos dadas na garantia de uma vida digna para essas e muitas outras pessoas.

A história das deficiências intelectuais é complexa. Ao longo das décadas, pelo menos trinta designações diferentes foram usadas para descrever esses tipos de deficiência. O conceito de pessoas com deficiência intelectual também mudou. Quando nos referimos, hoje, a essas pessoas, não estamos nos referindo exatamente ao mesmo grupo de anos atrás. “Por mais que tenha havido essas mudanças, as pessoas que estão hoje dentro da categoria de deficiência intelectual carregam uma certa herança desse passado, das ações que a sociedade teve com esse grupo”, expõe a psicóloga especialista em psicopedagogia Carina Streda.

Os manuais atuais de classificação definem que, para que uma pessoa seja considerada com deficiência intelectual, um dos critérios é que ela apresente restrições no que diz respeito a independência com tarefas do dia a dia, o que, de acordo com a psicopedagoga, é uma questão que aparecia desde as primeiras definições da deficiência, na Idade Média. “Tivemos vários momentos na história da deficiência intelectual. Momentos em que se considerava que essas pessoas deveriam ficar cada vez mais longe da vida e contato sociais e, outros em que eram considerados anjos, que deveriam ser cuidados. Mas em todos os conceitos está presente a ideia de serem tutelados, de receberem auxílio do Estado, principalmente essa ideia de não terem uma vida autônoma e independente”, elucida. 

Conforme explica Carina, a suposição de que pessoas com deficiência intelectual precisam que alguém faça as coisas por elas é algo que acompanha a sociedade há bastante tempo e está, de certa forma, intricada em nossa cultura. “A ideia da restrição intelectual vem carregada de muitas antecipações e não percebemos que, toda a vez que encontramos uma pessoa que tem o diagnóstico, temos uma ideia pronta. Já esperamos menos dela, já esperamos que ela não aprenda, que ela não consiga desenvolver, ter uma vida independente.”

As ações feitas para tentar mudar esse pensamento, e a consciência de que não seria adequado, são recentes. “São anos de uma atitude social, perante essas pessoas, de que há incapacidade para a autonomia e independência e agora começamos a pensar que, se educarmos e incentivarmos as pessoas para isso, elas podem desenvolver essas habilidades”, aponta a psicopedagoga. Portanto, é muito difícil dizer se, na história, pessoas com deficiência intelectual não conseguiam ser autônomas por questões biológicas que as incapacitassem para isso ou se as atitudes sociais perante elas não abriam oportunidades para que tivessem uma vida autônoma. “Ninguém nasce autônomo e independente, nós nos tornamos autônomos e independentes à medida que vamos crescendo, mas também na medida em que as pessoas que cuidavam de nós quando éramos crianças vão nos autorizando essa autonomia”, explica. A psicopedagoga nota que muitas atitudes das famílias com seus filhos com deficiência intelectual são incapacitantes. “‘Ah, ele não vai conseguir administrar dinheiro’. Então, não ensino. ‘Ele não vai conseguir andar sozinho pela rua’. Então, eu não ensino”, exemplifica.

“A possibilidade de que essa pessoa leve uma vida autônoma e independente depende de alguns fatores. Diz respeito aos limites que a pessoa, e não a deficiência, vai colocar. E também vai depender do que for oportunizado para ela aprender”, define Carina, que também é pesquisadora. Não há tampouco um modelo do que configura uma vida independente. “Algumas pessoas vão desenvolver a independência em alguns aspectos e em outros não. Podem, por exemplo, não morar sozinhos, mas ter independência de outras maneiras. Apesar de que pessoas sem deficiência intelectual também moram com outros ou com a família e também tem independência em outros aspectos. Ou podem, realmente, ter uma vida independente em todos os aspectos.”

A presença de um cuidador ou apoiador que apague a vontade da pessoa com deficiência intelectual, não permitindo que ela seja protagonista de sua história, acaba por ser um desrespeito. “A autonomia é algo importante para todo mundo. É algo que, como seres humanos, as pessoas com deficiência intelectual têm direito”, afirma Carina.

Livro publicado, faculdade concluída e sonhos para o futuro

Fernanda Machado tem 32 anos, é bacharela em Design, trabalha na área de recursos humanos e vive em Porto Alegre com sua família. Já publicou um livro de ficção e sonha em se tornar uma grande escritora. Foto: Mauro Schaefer

Fernanda Machado tem 32 anos, é bacharela em Design, trabalha na área de recursos humanos e vive em Porto Alegre com sua família. Sua paixão são os livros, já tendo até mesmo publicado um, intitulado “Taragô”, que conta uma história de ficção e magia. Seu maior sonho é se tornar uma grande escritora. “E, de preferência, importante também”, completa. Fernanda faz parte de um grupo muito seleto. Tendo finalizado sua graduação em 2014, é uma das 90 pessoas com síndrome de Down que chegaram à universidade no Brasil, segundo dados da iniciativa Movimento Down.

Ela sempre estudou em escolas regulares e o apoio dos pais foi crucial para seu desenvolvimento acadêmico e social. Foi preciso falar com mais de uma escola de ensino fundamental para encontrar uma que a aceitasse como aluna e, posteriormente, uma troca de escola foi necessária. Quando criança, fez acompanhamentos com psicopedagogos e fonoaudiólogos. Durante sua infância e adolescência teve muitas oportunidades de participar de atividades fora de casa e sem a família: foi escoteira e participou de mais de um grupo de jovens. Com os escoteiros, aos 14 anos, passou 20 dias na Argentina, acampando, e, aos 15 anos, ganhou dos pais a viagem que é o sonho de várias debutantes, a ida aos parques da Disney, nos Estados Unidos, para onde foi com um grupo de turismo. “Foi no movimento de escoteiros que iniciou a minha caminhada de autonomia e de independência. Eu amava ir para lá”, relembra Fernanda. “Como pais, éramos muito presentes, mas a gente não podia estar junto nas atividades. A Fernanda dormia fora de casa, saía o fim de semana inteiro sem pai e sem mãe. É claro que ela tinha todo o apoio, é claro que a gente conhecia as pessoas, mas ali foi que a gente começou a ver que a gente podia deixar a Fernanda, que ela sabia se virar e se virar muito bem até”, conta a mãe, Miriam Schaker, com um sorriso.

Durante a viagem à Argentina, Fernanda ganhou o título de escoteira mais organizada do grupo durante as revisões que eram feitas pelos chefes dos escoteiros. “Eu adoro organização, adoro organizar as coisas”, comenta a jovem. Miriam conta que Fernanda pôde descobrir esse gosto, entre outros, por conta dessas atividades que foram oportunizadas. “Em alguns casos, a proteção da família é tão grande que não permite isso. A Fernanda teve a possibilidade de se ver nesses lugares um pouco sem pai e sem mãe. De se ver se ela gosta disso ou não.”

Após um ensino médio puxado, a família sugeriu a Fernanda que ela fizesse cursos mais práticos e assim tivesse tempo para fazer outras coisas que gosta, como academia e dança. Mas, ao expressar sua vontade de cursar uma graduação, Fernanda encontrou nos pais muito apoio.
Quando foi escolher qual graduação cursar, ela já havia tido a oportunidade de conversar com um escritor profissional e perceber que não seria fácil entrar no ramo da literatura, nem se sustentar apenas escrevendo, por isso, optou pelo curso de Design Gráfico. “Eu queria dar continuidade às minhas histórias. Daí eu queria cursar Cinema para fazer roteiro ou Design Gráfico para chegar mais perto dos livros”, justifica a escolha. Como projeto de trabalho de conclusão de curso, Fernanda desenvolveu um guia de diagramação para livros acessíveis, que é, ele mesmo, um livro acessível. “Eu aprendi muita coisa lá dentro e adorei. Minha adaptação foi tranquila, sabia me virar o tempo todo lá no campus. Com os professores, em sua maioria, foi tranquilo. Mas houve alguns professores que não estavam muito à vontade comigo na sala de aula. Com esses professores eu me esforçava bastante e, aos poucos, fui conquistando eles. No final da faculdade, os professores que se tornaram mais meus amigos acabaram sendo estes”, relata.

Fernanda considera, inclusive, que sua experiência na faculdade foi melhor que a do ensino médio e do ensino fundamental. “Isso porque na universidade as pessoas são mais adultas”, comenta Fernanda, sobre o tratamento dos colegas nas diferentes fases de ensino.

Miriam atribui a autonomia da filha a uma criação onde não houve “descontos” por conta da síndrome. Os pais esperavam as dificuldades de Fernanda aparecerem, ou então serem apontadas por ela mesma, antes de intervir. Não a impediram de realizar atividades por conta própria. “Ela era minha primeira filha e educamos ela como se fosse qualquer filho, claro que pensando em todas essas questões de ajudá-la, como da fonoaudióloga”, conta.

Atualmente, além de trabalhar no setor de recursos humanos da Arquidiocese de Porto Alegre, Fernanda é colunista de uma revista digital. Seus planos para o futuro próximo incluem fazer cursos para se aperfeiçoar como escritora, além da escrita de uma sequência para a história de seu primeiro livro publicado. 

Já no que toca ao futuro um pouco mais distante, a designer gostaria de se mudar da casa dos pais para uma casa própria, mas não para morar sozinha. “Eu já namorei duas vezes, foram experiências interessantes. No momento, eu não namoro, mas eu gostaria. Só que, para mim, um namorado tem que ser para toda a vida. Eu quero casar na igreja. A pessoa tem que ser sincera, honesta, fiel, entre muitas outras coisas. Com certeza eu quero muito ter um namorado, justamente para não ficar sozinha também. Faz muitos anos que eu quero muito ter minha casa própria, mas com certeza ia ser muito melhor se eu fosse dividir essa casa com o amor da minha vida”, almeja Fernanda, que já economiza para comprar um apartamento.

"Moradia é estruturante"

Mãe de um rapaz com autismo, Flávia Poppe percebeu que, ao término da fase escolar, não havia muitas opções para pessoas com deficiência intelectual. “Fazer a transição para a fase adulta não é fácil para nenhum jovem. Achar uma carreira, sair da casa dos pais, fazer suas escolhas de socialização. Eles não são diferentes e você negar isso a eles é diminuir a relevância deles.” Dessa percepção, nasceu o Instituto JNG, no Rio de Janeiro, que propõe uma moradia independente para pessoas com deficiências cognitivas. “A moradia é estruturante. Ela é aquele passo mais importante da vida de um jovem onde ele toma as rédeas”, opina a economista.

No Instituto JNG, a moradia é vista como um ambiente natural para o desenvolvimento de habilidades. Em novembro do ano passado, foi lançado o projeto piloto da organização, em um prédio no bairro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. O prédio fica em uma área bastante urbana, com comércio e transporte público à disposição dos participantes do projeto, que não são os únicos habitantes do prédio. Cada morador do projeto, e no momento há sete deles, tem seu próprio apartamento, com cozinha, quarto e banheiro individual. Fora dos apartamentos, mas dentro do edifício, há uma base de apoio em regime de plantão 24 horas, formada por especialistas como assistentes sociais e psicólogos. Eles conhecem a rotina e as necessidades de cada um dos moradores e desenvolvem planos específicos para cada um, respeitando a autonomia. Quando um dos participantes sente a necessidade de pedir ajuda com alguma tarefa ou problema, dirige-se à central.

A ideia foi inspirada em políticas públicas de países como a Inglaterra, que já contam com sistemas similares de moradia para pessoas com esses tipos de deficiência. A ideia do instituto brasileiro é que os órgãos competentes percebam as vantagens de um sistema de moradia como o que propõem e que, futuramente, seja uma alternativa viável para mais pessoas.

Preparação para o trabalho

Natasha Gabriele Moura (E) e Karen Castilhos Dutra estudam na Apae. Natasha faz oficina de preparação para o mercado de trabalho e de cozinha e quer trabalhar com vendas e Karen participa da oficina de informática e escreve poesias. Foto: Matheus Piccini

Não são todas as pessoas com deficiências intelectuais que frequentam escolas regulares, como Fernanda. Para os que não conseguem se adaptar, existem as chamadas escolas especiais, que atendem especificamente a este público. Em Porto Alegre, há duas delas ligadas à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), uma no bairro Glória e outra no Vila Nova. Além de aulas adaptadas, esses espaços oferecem atividades diversas ao público com deficiência intelectual, estudem eles na escola ou não. Aulas de teatro e informática, equipes esportivas, tratamentos médicos - como terapias em grupo, fonoaudiologia e fisioterapia e oficinas de inserção no mercado de trabalho são oferecidas. “Eles estão preparando a gente para trabalhar. Ensinam como se comportar como candidato, quais roupas vestir. Estou muito ansiosa para conseguir um emprego”, exclama, empolgada, Natasha Gabriele Moura, de 22 anos, que participa da oficina de preparação para o mercado de trabalho e da oficina de cozinha. A jovem gostaria de trabalhar com vendas, em especial a de perfumes. Ela estudou até o sexto ano, em uma escola regular, mas parou de frequentar as aulas. “Penso muito em voltar a estudar. No colégio que estava não tinha nenhuma aluna especial e eu ficava pensando: ‘Poxa. Por que será que um colégio público não pode ter um aluno especial? Por que será que tem que ter um colégio especial separado e eles não podem estar misturados com aqueles que não têm nada?’”, comenta a futura vendedora.

Colega de Natasha na Apae, Karen Castilhos Dutra tem 38 anos e frequenta o local desde 2001. Ela é aluna do EJA da escola, onde tem aulas de matemática, português e ciências. Além disso, participa da oficina de informática, escreve poesias e tem o título de autodefensora. “Participo de reuniões com o diretor da escola, sou a voz dos colegas, repasso para ele o que os colegas querem”, explica.

Todas as oficinas da Apae são vinculadas à Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) sendo, assim, gratuitas para os usuários. O psicólogo Vicente Coda é responsável por algumas delas. “Apesar de cada oficina focar em uma determinada área, todas abordam a questão do trabalho. Dentre essas, a gente tem a de preparação para o mercado de trabalho, que dá foco maior. Eles dramatizam cenas do cotidiano ou entrevistas de seleção e até a parte de verificação de documentação e currículo.” A Apae também auxilia na busca pelo emprego por meio de empresas parceiras. Há também um grupo de acompanhamento dos que já trabalham. 

O emprego é uma parte importante da aquisição da independência e autonomia, além de poder auxiliar na inclusão dessas pessoas na sociedade. “A gente sabe que a sociedade hoje é muito preconceituosa. Por mais que se fale disso, a gente vê que ainda tem muitas limitações. Então, quando a gente vê que eles estão dentro do mercado de trabalho, conseguindo participar do funcionamento social e se sentindo funcionais também, acho que na questão emocional, para eles, é muito importante, até de valorização dentro do próprio grupo familiar”, percebe o psicólogo.

Coda percebe, por vezes, que é necessário trabalhar questões com as famílias também, para que mudem a percepção sobre o usuário. “Dentro de casa, devido ao entendimento que eles têm da deficiência, às vezes não conseguem perceber o potencial dos usuários.” Educador social na escola especial da Apae, Augusto Inácio Silveira relata que alguns usuários desenvolvem muitas habilidades após chegar à Apae, pois saem do ambiente de superproteção no qual foi criado pela família. “Teve um menino que chegou para nós, com 14 anos, que era tratado como criança pela família. O crescimento dele depois que foi inserido no mercado de trabalho é impressionante, não parece o mesmo. Extremamente autônomo”, lembra. O funcionário ressalta que o desenvolvimento de pessoas com deficiência intelectual pode ser um pouco mais difícil, mas compara a situação com a de pessoas sem deficiência que também têm dificuldade em certos aspectos da vida ou matérias de escola. “Às vezes, a superproteção da família acaba infantilizando, sem querer, aquele aluno. Aqui eles têm várias experiências para praticar a independência e a autonomia deles”, complementa a professora de educação física da escola, Michele Theodoro. 

A professora, que trabalha há oito anos na escola, costuma acompanhar os usuários atletas nas competições, passando, inclusive, dias com eles em viagens, sem a presença da família. A próxima competição será em Canoas, ainda esse mês, e 15 atletas ficarão com Michele durante cinco dias em um hotel na cidade. “As mães já estão me mandando mensagem, preocupadas. Mas os alunos aproveitam muito essas viagens, podendo conhecer grupos de outras Apaes, inclusive de outros estados. Tem festa, baile de confraternização, eles se divertem muito.” Além do lazer, as viagens são uma oportunidade de exercitar a independência. “Às vezes, em casa, a mãe ainda escova os dentes do aluno, mas durante a viagem nós apenas os supervisionamos”, diz.

Autonomia para lidar com números e dinheiro

A pedagoga Maria Regina Linck dos Santos também foi, por muitos anos, funcionária da Apae. Este ano, decidiu sair da associação, mas não parou de atender jovens com deficiência intelectual. À sugestão da mãe de um jovem com síndrome de Down, em 2016, Regina criou uma oficina monetária. “Elas sentiram a necessidade de os filhos de trabalhar com os números e o dinheiro para exercitar a autonomia”, relembra Regina. A ideia foi um sucesso e, além das aulas semanais, a pedagoga passou a fazer saídas com os jovens, para que eles pudessem praticar os conhecimentos trabalhados em sala de aula comprando coisas, fossem lanches ou roupas. “Depois da compra, eles traziam a nota e verificávamos quanto eles tinham gasto, se tinham recebido o troco correto. Questões que fomos abordando e elaborando”, explica Regina. Os participantes aprendem a usar dinheiro, cartão de crédito, conta bancária, números e operações matemáticas, a depender, claro, das habilidades individuais de cada um. “Adquirir esses conhecimentos é, primeiro, uma questão de dignidade. Segundo, nem sempre os pais ou responsáveis estarão com eles”, argumenta.

Atualmente, a pedagoga segue com a oficina monetária, com alunos novos e alguns que a acompanham desde 2016. Além de temas financeiros, Regina promove uma oficina batizada de “Te Vira”, onde são realizados encontros periódicos com imersão para jovens com deficiência intelectual. De acordo com a pesquisadora, no convívio com pessoas com deficiência intelectual, se percebe um grande desejo de se sentirem úteis, cuidando de sua vida e sendo independentes. Nesta oficina, os jovens são estimulados a tomarem decisões e a participarem em atividades propostas para a busca da independência. Na prática, Regina trabalha com os jovens questões de deslocamento, como pegar um ônibus, por exemplo, e planejamento, como pensar na alimentação do final de semana, momento em que ocorrem esses encontros com pernoite, e da organização da casa. Durante os encontros, a pedagoga consegue observar a evolução quase que imediata dos participantes. “A autonomia acontece na ação prática e sua construção envolve dois aspectos chave: o de criar e determinar suas próprias leis e a capacidade de colocar em prática a atividade proposta”, escreveu em uma pesquisa

Enfrentando preconceitos

Como muitos adolescentes, Gabrielson Rodrigues da Silveira, de 16 anos, adora jogar futebol e sua matéria preferida é educação física. O gremista adora camisetas de times: tem mais de 30, de diversas equipes, inclusive do Internacional. Chegou à escola da Apae em fevereiro deste ano após experiências muito negativas em outras escolas, como conta a mãe dele, Valquíria Rodrigues. Com um diagnóstico de autismo moderado, Gabrielson passou por duas escolas regulares até os 10 anos de idade e foi expulso de ambas. A incapacidade das escolas na inclusão do menino é apenas um dos preconceitos encarados pela família. Valquíria conta que, em espaços públicos, como supermercados e ônibus, percebe com frequência olhares e risos em direção ao filho, além de comentários sobre o comportamento do menino. “Quem olha para ele não sabe que ele tem um transtorno e aí fazem comentários do tipo ‘se fosse meu filho, eu educava direito’. Eu nem boto a boca mais, apenas mostro o cartão de identificação de pessoa no espectro autista e pergunto ‘sabe ler?’”, diz, incomodada. “Perguntar antes de falar” é a solução proposta por Gabrielson, que também percebe os olhares na rua.

Aos 10 anos, o menino foi encaminhado a uma escola especial, a qual frequentou nos últimos seis anos, mas Valquiria julga que o oferecido pelo local estava aquém das capacidades do filho. “Era sempre a mesma atividade, como se eles fossem todos doentes, sem capacidade de aprender coisas novas, melhorar e progredir”, reclama. Gabrielson também não gostava mais das atividades propostas na antiga escola, que consistiam, em sua maioria, na pintura de desenhos. Na escola da Apae, o adolescente tem feito atividades novas todas as semanas e tem estado muito feliz. Ele também gosta da disciplina de geografia, reconhecendo países, capitais e bandeiras com facilidade. Ao contrário do futebol, Gabrielson tem um gosto que não é partilhado por muitos jovens da sua idade. “Quero ser político”, responde, ao ser questionado sobre seu futuro. “Ele fala muito sobre esse assunto, acho que é porque vemos muito jornal em casa”, comenta a mãe. “É a segunda coisa que eu mais gosto”, diz Gabrielson. 

Valquíria se preocupa com o futuro do filho e pensa em matriculá-lo, em breve, em cursos profissionalizantes, em uma área que ele goste. “Será que tem curso de político?”, pergunta Gabrielson. De acordo com a mãe, independência é algo bastante discutido com o adolescente. “Ele tem que aprender a fazer as coisas sozinho, porque um dia não vou mais estar aqui. Ele é capaz de ir longe se quiser, ele é bem esperto”, garante. 

Karen Castilhos Dutra tem 38 anos e frequenta a Apae desde 2001. Ela é aluna do EJA da escola e participa de oficinas. Foto: Matheus Piccini

Se mesmo em 2022, pessoas com deficiência intelectual e suas famílias precisam encarar tantos preconceitos, o que dizer da situação de décadas atrás? Júlio Vega García, tem 55 anos e é porteiro na escola de Gabrielson, desde 2011. Trabalho que adora. Começou como monitor e, há cinco anos, teve sua carteira de trabalho assinada, o que alegra muito sua irmã e tutora, Maria Consuelo Vega García. 

Além de funcionário da Apae, Julio é usuário dos serviços da associação. “Ele faz terapia ocupacional, atendimentos com psicólogo e fisioterapia. São atendimentos específicos para o desenvolvimento da independência e da maturidade. Começaram no ano passado”, conta a irmã mais velha. A família sempre morou no bairro Vila Nova, onde, segundo a Maria Consuelo, todos conhecem Júlio e ele conhece todos. “Ele se dá bem com todo mundo. Taxistas, motoristas de ônibus, lotação, comerciantes, todos conhecem ele. Mesmo sem ser alfabetizado, pega ônibus e se locomove sozinho.”

A irmã de Julio nota diferenças no tratamento que a sociedade dá ao irmão em comparação a quando eram crianças. “Naquela época, não havia nenhum atendimento especializado nas escolas. E ele não quis frequentar a escola regular. Ele também não queria tomar os remédios e nossa mãe permitia. Hoje ele toma tudo direitinho”, relembra. Com a abertura da escola no bairro, em 1984, Julio passou então a frequentar as atividades. 

Iniciativa estimula inserção social em passeios e atividades

O Clube Social Pertence promove atividades de socialização entre os participantes e saídas para diferentes espaços onde as pessoas ficam em contato com a sociedade como um todo. Foto: Elisa Pegoraro / Divulgação / CP

Se existem iniciativas que focam na autonomia e independência visando aspectos financeiros, habitacionais e de organização e habilidades pessoais de pessoas com deficiências cognitivas, o Clube Social Pertence cumpre uma outra função. “A gente promove saídas para diferentes lugares de Porto Alegre, visando a inserção social dessas pessoas. Então a gente vai para restaurante, para praças, para shopping e teatros, diferentes espaços onde esses jovens, então, ficam em contato com a sociedade como um todo”, elucida a psicóloga do clube, Marina Barth. As saídas acontecem de duas a três vezes por mês. 

Com o intuito de promover a independência dos participantes, tornando-os mais aptos para as situações do dia a dia, o clube fundado há dez anos oferece, além das saídas, atividades esportivas, artes, culinária, fotografia, inglês, música e robótica, entre outras. A fundadora do Clube, Sara Zinger, oferecia aulas particulares para pessoas com deficiência intelectual. “Ela começou a juntar os alunos dela porque percebeu que estavam muito reclusos ao convívio familiar, em casa. Então, Sara começa a levar esses jovens para passear”, conta Marina.

A psicóloga percebe que há um ganho dos participantes na questão de interação social e das relações interpessoais. “Eles conseguem criar vínculos. A grande maioria trazia muito esse discurso, ‘ah antes de entrar no Pertence, eu não tinha amigos’. As pessoas entram no clube e criam laços de amizade”, afirma Marina. Alguns jovens também criam laços amorosos. “A gente tem vários casais aqui no Pertence. São habilidades sociais, se comunicar com o outro, conseguir interagir, perder a timidez, adquirir autonomia, poder tomar suas próprias decisões, as suas próprias escolhas, conhecer as suas habilidades, os seus potenciais, ou descobrir coisas novas para aprender."

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895