Incertezas na colheita

Incertezas na colheita

Trigo está com boas cotações, mas produtor ainda não sabe quanto vai colher por causa da geada e estiagem

Por
Nereida Vergara

Os produtores de trigo do Rio Grande do Sul voltaram a apostar na cultura, ampliando a área cultivada de 760,9 mil hectares no ano passado para 915,7 mil hectares neste – avanço de 20,34% –, mas, na média geral, não alcançarão o resultado esperado. Embora exista uma grande variedade de situações, as fortes geadas ocorrida nos dias 21 e 22 de agosto e a estiagem da atual fase de enchimento e maturação dos grãos trouxeram perdas que não haviam entrado nas projeções de 2020, ano que era tido como uma oportunidade de o agricultor fazer caixa, já que a saca do cereal nunca registrou preços tão altos como os picos superiores a R$ 72,00 desta semana.

Não é só pela quebra ainda não quantificada da safra que o produtor deixará de aproveitar a cotação. Grande parte da colheita que será entregue nas próximas semanas foi vendida antecipadamente, no mercado futuro, por valores próximos a R$ 50,00, tidos como bons à época dos negócios porque a média histórica da fase da entrega, no quarto trimestre do ano, é próxima dos R$ 40,00.

Em algumas regiões do Estado, especialmente nas Missões e no Noroeste, lavouras semeadas no final de maio e início de junho com cultivares precoces foram as que mais sofreram, chegando à perda total em alguns casos. Para a maioria dos técnicos e dirigentes da cadeia tritícola gaúcha, ainda é cedo para avaliar o tamanho do impacto trazido pela intempérie. Todos concordam que é preciso aguardar o andamento da colheita, iniciada na segunda semana de outubro na região de Santa Rosa e que se estende até a segunda quinzena de novembro nas regiões mais frias, como os Campos de Cima da Serra, para ter uma ideia consolidada da quebra, que pode variar de 20% a 30% do volume estimado para o ano, que ficava entre 2,2 milhões a 3 milhões de toneladas, segundo estimativas de diferentes instituições.

José Vanderlei Waschburger, gerente regional adjunto do Escritório da Emater de Santa Rosa, que abrange 45 municípios com uma área plantada de trigo de 224 mil hectares, cerca de um quarto da área total do Estado, calcula que alguns produtores da região poderão perder de 15% a 50% de suas lavouras, mas ressalva que isso não é regra. “Tudo depende da variedade e do estágio em que estava a planta quando a geada ocorreu”, afirma. O agrônomo destaca que a expectativa de produtividade na região era de 50 sacos de trigo por hectare, cerca de três toneladas. Calcula, ainda, que produtor que não perder mais de 35% do volume esperado ainda vai ter rentabilidade, uma vez que o custo de produção das lavouras girou entre 22 e 25 sacos por hectare.

O presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (FecoAgro), Paulo Pires, reconhece que a região atingida pelas geadas de agosto tem um peso importante na produção total do Estado. O dirigente considera que se for confirmada uma perda de 25% nessas áreas do Noroeste, esse percentual representará uma redução de 600 mil toneladas ante a expectativa inicial mais otimista, que era de 3 milhões de toneladas para todo o território gaúcho. Pires observa ainda que o produtor começa a ficar “tenso” porque está vendo preços bons para o grão ao mesmo tempo em que constata que seus esforços e investimentos podem ser prejudicados pelo fator imponderável do clima.

O dirigente da FecoAgro admite que, passado o impacto das geadas, a preocupação agora é com a falta de chuva, que pode influir negativamente nas lavouras que estão em desenvolvimento, ou com o excesso de chuva no final do ciclo, quando a umidade pode afetar a qualidade do grão. “Mesmo assim, as perspectivas ainda são boas, o produtor já comercializou no mercado futuro 950 mil toneladas de trigo e a produção restante deve ser o suficiente para a demanda dos moinhos gaúchos, com comercialização a bons preços”, avalia.

Hamilton Jardim, presidente da Comissão de Trigo da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) e da Câmara Setorial das Culturas de Inverno do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), é mais otimista e diz que o Estado deve colher 2,5 milhões de toneladas, o que atenderá as exportações e os moinhos. Pondera ainda que, com o avanço da colheita, os preços do trigo tendem a se estabilizar num patamar nunca antes praticado na história da cultura. “O produtor que tiver colheita de razoável a boa, mesmo sem ser excelente, como se esperava, vai se capitalizar, pois o preço da saca vai compensar as perdas”, diz. Somente aqueles que tiverem perdas significativas, observa Jardim, vão amargar maiores prejuízos. Isso tudo se nada mais acontecer de agora até a conclusão da colheita, no final de novembro.

 

Planejamento dribla ameaças

Produtores podem reduzir perdas provocadas por fenômenos climáticos se adotarem práticas como escalonamento do plantio e escolha adequada das cultivares

Rio Grande do Sul já tem lavouras em fase de colheita, algumas com bons e outras com maus resultados. | Foto: DIVULGACAO/ EMBRAPA

Os fenômenos climáticos não podem ser controlados, mas o estudo das culturas, a pesquisa e a tecnologia permitem que o agricultor reduza riscos se adotar manejos adequados.

A agrônoma Kassiana Kehl, coordenadora de Pesquisa e Desenvolvimento da Fundação Pró-Sementes, de Passo Fundo, ressalta que, entre os grãos, o trigo é uma das culturas mais delicadas e sensíveis às variações de temperatura e à falta ou excesso de chuvas. Uma das particularidades do trigo é que, por se tratar de um alimento fornecido diretamente aos humanos, não deve ser contaminado por micotoxinas e, por isso, corre riscos em situações de umidade excessiva. Além disso, deve manter um PH (peso hectolítrico) superior a 78 para atender exigências da indústria moageira.

“Claro que não há como evitar 100% dos prejuízos, mas eles podem ser diminuídos se o produtor adotar práticas como o escalonamento do plantio e a variação dos ciclos das cultivares, que são precoces, médios e tardios”, explica a agrônoma. Desta forma, o produtor pode evitar que a planta seja prejudicada por geadas nas etapas de espigamento e florescimento, quando o dano é maior.

Kassiana observa que o quadro da safra de trigo no Rio Grande do Sul é heterogêneo, com lavouras já em fase de colheita e outras em suas etapas iniciais, como as implantadas nas regiões mais frias e altas. No entanto, com base nos sete campos experimentais que acompanham o desenvolvimento de pelo menos 35 cultivares de trigo, a pesquisadora estima que, em todo o Estado, a perda na colheita deve ficar próxima dos 30%.

Mas não é só o prejuízo causado pela geada que entra nas contas que o produtor faz no momento. Kassiana relata que a falta de chuva nas regiões onde a cultura tem mais amplitude virou motivo de preocupação nos últimos dias. “A estiagem prejudica o enchimento de grãos e isso diminui a produtividade por hectare”, observa.

O pesquisador da Embrapa Trigo, Gilberto Cunha, acrescenta ao raciocínio de Kassiana a necessidade de mudança na mentalidade do agricultor de antecipar de forma demasiada o plantio do trigo pelo desejo de plantar a soja logo no início da janela do zoneamento. “O produtor pode plantar o trigo com calma, tem 60 dias para fazer isso e deve romper com este culto de plantar tudo antecipadamente para poder correr também com a semeadura da soja”, pontua.

Segundo Cunha, é fundamental a escolha de cultivares que sejam resistentes às principais doenças da espiga e a atenção ao período de amadurecimento como forma de diminuir os riscos típicos da cultura, já que no Rio Grande do Sul a colheita não ocorre em estação seca.

Cunha lembra que o produtor deve estar atento às chuvas no período de colheita e antecipar seu processo de colocação das máquinas nas lavouras para fugir do risco de umidade excessiva.
Apesar das recomendações, o pesquisador considera que “ainda é cedo demais para fazer previsão de perdas”. Para Cunha, este tipo de estimativa não acrescenta nada num cenário de muitas variáveis, como o do momento, e que ainda vai durar mais 45 dias até o final da safra.

 

Consumidor terá de pagar mais pela farinha nos próximos meses

Brasil consome cerca de 12,5 milhões detoneladas do grão por ano e importa quase 55% deste volume. | Foto: RAQUEL TUMELLERO/ DIVULGACAO CP

Até a metade de novembro, a farinha que chega às indústrias de panificação e mesmo à casa do consumidor deve ter um acréscimo de pelo menos 10% no preço do quilo. A estimativa é do presidente do Sindicato das Indústria do Trigo no Rio Grande do Sul (Sinditrigo), Diniz Furlan. Ele revela que os moinhos gaúchos já estão com seus estoques no final e que o trigo importado de países como a Argentina e o Paraguai está chegando ao Estado a um preço muito alto, que precisará ser repassado à cadeia de consumo. Furlan destaca que o período da colheita sempre foi sinônimo de baixa de preço, mas isto não deve ocorrer neste ano.

O empresário calcula que, com a quebra prevista na safra de trigo gaúcha, a produção fique entre 2,5 milhões e 2,6 milhões de toneladas. Como 950 mil toneladas já estão negociadas no mercado futuro, sobrarão as tradicionais 1,5 milhão de toneladas de trigo que a indústria moageira costuma consumir.

“Não teremos alternativa a não ser aceitar os preços que estão sendo colocados e o repasse é inevitável, mesmo que nós não queiramos sacrificar mais o consumidor e tornar o pão mais caro”, comenta. Segundo Furlan, em um ano o quilo da farinha, que hoje sai do moinho a preços entre R$ 2,50 e R$ 2,70, teve um acréscimo de 40% em função da disparada no preço do trigo, que também sofre a influência do dólar e as consequências da variação cambial.

Dados da Conab indicam que o Brasil importa quase 55% das 12,5 milhões de toneladas de trigo que consome por ano. A Argentina é o maior fornecedor, chegando a responder por até 90% do total.

 

Do plantio à frustração

Jairo Gaviraghi iniciou o cultivo antes do pai e ficou com a perspectiva de colher pouco porque as geadas ocorreram no momento em que a plantação estava mais suscetível. | Foto: Arquivo Pessoal/ Jairo Gaviraghi

Mesmo que entidades e especialistas analisem com cautela o percentual de perdas que irá se consolidar ao final da colheita do trigo gaúcho, em novembro, para o agricultor que plantou e não vai conseguir a produtividade que pretendia, o sentimento de frustração já é realidade.

Neste ano, o produtor Jairo Gaviraghi, da localidade de Candeia Baixa, em Santa Rosa, plantou 40 hectares de trigo logo no início de junho. A área é 10 hectares maior que a do ano passado e foi ampliada com a perspectiva de aproveitar os bons preços alcançados pelo cereal em 2020. A geada de agosto, no entanto, destruiu a lavoura de Gaviraghi, que admite que vai colher muito pouco no local. “A gente investiu em adubo e ureia, mas se der cinco ou seis sacos por hectare vai ser muito”, calcula o agricultor, que no ano passado colheu cerca de 100 toneladas de trigo em 30 hectares e neste já solicitou a cobertura do Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro), o seguro da agricultura familiar para este tipo de prejuízo.

Jairo Gaviraghi divide o cultivo da propriedade de 120 hectares com o pai, Mário, que em sua parcela também plantou 40 hectares de trigo, mas em julho. A área de Mário sofreu menos com a geada pois não estava na fase de formação da espiga, quando o frio intenso faz mais estrago. “Mas agora não está chovendo na nossa região e mesmo que o pai vá colher melhor que eu, ainda não dá para saber quanto será”, diz Jairo.

Lavoura de Mário Gaviraghi não estava em fase de formação da espiga quando ocorreram as geadas e por isso sofrerá menos perdas que a do filho. | Foto: Arquivo Pessoal/ Jairo Gaviraghi

Situação parecida também vive o agricultor Airton Andrighetti. Ele plantou 55 hectares de trigo em duas áreas, uma em Giruá e outra em Santa Rosa. Na área de Giruá, Andrighetti afirma ter semeado uma lavoura excelente, com uma boa quantidade de adubo e ureia, esperando colher mais de 60 sacos por hectare. “Para se ter uma ideia do estrago, neste local não vale a pena nem passar a máquina, pois queimou tudo”, lamenta. “Em Santa Rosa eu devo colher alguma coisa de trigo, mas este era o ano para a gente colher bem e fazer dinheiro, pois nunca se viu o preço de hoje”, analisa.

Neste ano, o  agricultor plantou trigo em  metade do terreno que havia destinado à cultura em 2019. O objetivo foi  dar espaço ao milho, mas esta lavoura também começa a preocupar porque sofre com a inesperada falta de chuva para esta época do ano em todo o Noroeste do Rio Grande do Sul.

 

Cooperativa processa somente grãos do associado

A maior parte dos moinhos gaúchos compra o trigo local para misturar com grão estrangeiro e obter a qualidade da farinha exigida pelo mercado. Exceção à regra, a Cooperativa Tritícola Mista Campo Novo (Cotricampo), que integra produtores de 17 municípios do Noroeste do Rio Grande do Sul, utiliza em seu moinho apenas os grãos entregues por seus associados. O presidente da cooperativa, Gelson Bridi, considera muito cedo para fazer uma avaliação das perdas que a cultura sofreu neste ano. Para o dirigente, o que se pode confirmar até o momento é uma produção menor que a esperada e preços bem mais altos que os do ano passado.

A Cotricampo recebe em torno de 120 mil toneladas de trigo por ano, oriundas de 3,8 mil produtores. Deste total, 60 mil toneladas são destinadas à produção de farinha e o restante colocado à venda no balcão. “Vai haver perda”, admite Bridi. “Mas não chegará ao ponto de comprometer nossa indústria”, prevê.

O presidente afirma, ainda, que a Cotricampo tem grande preocupação com a qualidade do trigo e reconhece que ela será afetada, assim como o volume de produção.

Bridi relata que a cooperativa faz um trabalho de segregação dos grãos junto ao produtor, o que garante uma qualidade média superior. “Temos 40 técnicos que durante toda a safra vão a campo acompanhar o agricultor, o que assegura a qualidade que precisamos para atender nosso moinho”, completa. A unidade industrial tem capacidade para transformar 220 toneladas de trigo em farinha por dia.

 

Seis toneladas como meta

Projeto indica que uso de cultivares específicas e mudança do intervalo entre  as linhas de plantio pode melhorar qualidade e produtividade do trigo gaúcho

Inovação de métodos já ocorre em40 campos do Paraná e do Rio Grande do Sul. | Foto: Gustavo Santos Leite/Divulgação

A gangorra de expectativas que historicamente vive o plantio do trigo no Rio Grande do Sul pode ser deixada de lado se houver uma mudança de mentalidade por parte do agricultor. Este é o pilar principal do Projeto 100 Sacos de Trigo, que vem sendo implantado no Estado e no Paraná pela Suporte Corretora. Divulgado pelo agrônomo Gerson Diefenthaeler Herter, o projeto propõe a modernização da cadeia tritícola desde o plantio.

Segundo Herter, da escolha das sementes até o manejo e a configuração das lavouras, a triticultura nacional está defasada. “Ainda trabalhamos com plantadeiras com intervalo de linha de 17 centímetros quando no mundo já se usa a medida de 26 centímetros, que dá mais espaço para adubação e condições de produtividade”, observa.

Herter conta que estão sendo feitos ensaios com a mudança de espaçamento no plantio em 40 campos do Rio Grande do Sul e do Paraná, num total de 45 mil hectares. Alguns desses experimentos já atingiram a produtividade de seis toneladas por hectare, o dobro da média obtida no Rio Grande do Sul em 2019. O agrônomo observa que, além da produtividade, o Projeto 100 Sacos de Trigo tem por objetivo garantir um grão estável dentro dos parâmetros de qualidade requeridos pela indústria moageira, com o uso das cultivares Tbio Aton e Tbio Audaz, as quais apresentam melhores teores de proteína e performance mais adequada à panificação.

Com desempenho e produtividade garantidos, o sistema divulgado por Herter também visa melhorar a remuneração do produtor, que poderá segregar seu trigo no plantio e receber um bônus sobre o produto entregue às cerealistas.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895