Mercado Público: 150 anos de repetitivas resistências

Mercado Público: 150 anos de repetitivas resistências

Ameaças e superações são marcas permanentes na história de um dos principais cartões postais de Porto Alegre

Por
Henrique Massaro

Tal qual a chegada dos primeiros caminhões ainda em meio à escuridão, o aquecer dos fornos das padarias antes do amanhecer, a abertura dos portões nas primeiras horas de luz e o entra e sai de dezenas de milhares de pessoas até o anoitecer, que se repetem diariamente, a história do Mercado Público de Porto Alegre também é feita de repetições. Em 150 anos de existência, comemorados neste dia 3 de outubro, o público que dá vida ao mais tradicional ponto de abastecimento da Capital tem duas convicções. Por um lado, sabe que ameaças são uma constante. Por outro, ao ver o prédio de pé diante de tantos finais anunciados no passado, tem a certeza de que Mercado e mercadeiros compartilham uma trajetória de superação.

Constantes como o cheiro do pão quentinho, das hortaliças frescas, das especiarias expostas ao alcance das mãos e até do peixe fresco no balcão são os anúncios de pôr fim a essa história. Somente de incêndios, o Mercado Público sobreviveu ao menos a quatro. Houve ainda a grande enchente de 1941 e uma série de tentativas de demolição por parte do poder público ao longo do século passado. Em todos esses episódios, a união dos permissionários e a força do prédio prevaleceram. Em um século e meio, o país mudou as leis e o sistema de governo, a cidade alterou sua geografia ao afastar as águas do Guaíba e se despediu de mais de um meio de transporte, como carroças e bondes, mas, de alguma forma, o Mercado se manteve. Constante, permanente, contínuo, renovado, resistente, novamente abalado, incerto e eterno.

Constante - Uma opção diária

Desde que escolheu ser brasileiro, Ângelo Bessa de Sousa, 75 anos, também escolhe diariamente o Mercado Público. Vindo de Portugal aos 17 anos para escapar do serviço militar e das guerras que seu país atravessava na África, começou a trabalhar no local dois anos depois, com um tio que já vivia em Porto Alegre. Criou amizades, arrumou namorada, casou, formou família e, é claro, conquistou uma clientela fiel na confeitaria Copacabana. “Digo que sou mais brasileiro do que qualquer outro, porque quem nasce no Brasil é brasileiro por obrigação, eu sou por opção”, comenta o comerciante em uma manhã de quarta-feira, sentado à beira do balcão de seu estabelecimento.

 

“O Mercado continua sendo um dos melhores locais para o consumidor fazer compras"

 

Os mesmos laços que fizeram Ângelo ficar no Brasil continuam levando-o diariamente até a Copacabana, com suas entradas no Largo Glênio Peres. Até hoje, chega por volta das 7h e só vai embora perto das 20h. Diferente de muitos estabelecimentos modernos, no Mercado, o dono do negócio costuma estar presente durante todo o expediente. Em quase seis décadas fazendo isso, o permissionário que conhece a todos e com todos conversa acredita ser a pessoa há mais tempo no histórico prédio. Seus dois sócios na confeitaria, por exemplo, são filhos dos sócios originais, já falecidos.

Ângelo saiu de Portugal aos 17 anos e está há mais de cinco décadas no Mercado. Foto: Alina Souza

Em outros tempos, recorda o empresário, a cidade tinha mais segurança e, consequentemente, vida noturna movimentada. Havia os bondes, a Feira Livre e um Mercado mais público também à noite. Apesar das mudanças, a alma do lugar permanece. “O Mercado continua sendo um dos melhores locais para o consumidor fazer compras, além de ser um prédio histórico e uma atração turística da nossa cidade. Aqui, se compra mais barato e produtos de melhor qualidade”, assegura. 

Em 56 anos, o mercadeiro brasileiro por opção pôde ver a maior parte das ameaças e mudanças no tradicional ponto do Centro. Com o auxílio de anotações feitas em um bloquinho, lembra de dois incêndios ocorridos na década de 1970, um deles obrigando-o a fechar a confeitaria por dois meses. Recorda também o mais recente, de 2013, pelo qual os permissionários pagam até hoje com a interdição do segundo andar, além de modificações provocadas pelo tempo e por algumas reformas, como a dos anos 1990, que deu a atual cobertura ao local.

Permanente - Um recanto dos clássicos

Preços acessíveis, que levam a uma boa saída dos produtos e que, consequentemente, deixam as mercadorias sempre frescas e ao gosto do público. Esse fluxo contínuo tão característico do Mercado Público há 150 anos é que garante, por exemplo, a produção diária da tão apreciada nata batida que vai cobrir a salada de frutas, se unir aos três sabores de sorvete e formar a apreciada Bomba Royal, que há décadas faz formar fila em dias mais quentes na Banca 40.

A origem da sobremesa está associada à essência do mercadeiro de aproveitar os negócios. Foi quando o português Manuel Maria Martins, que adquiriu uma fruteira no local em 1927, resolveu aproveitar, em forma de salada, as frutas que estavam prestes a passar do ponto. Depois, veio a produção de sorvete e, em seguida, de nata, até que surgisse a Bomba Royal. O estabelecimento passou para os filhos e, mais tarde, para a nora do comerciante, que vendeu o ponto em 2011 para um grupo de sócios.

Salada de frutas, sorvete e nata batida: a combinação da Bomba Royal. Foto: Alina Souza

João Bonnel Júnior, 52 anos, tinha experiência de 18 anos como bancário e nenhuma como permissionário quando se associou à Banca 40 há cerca de oito anos. Trocou a atividade profissional que dificilmente lhe permitia passear pelo Centro Histórico por uma rotina diária dentro de um dos mais tradicionais locais do bairro. Apostou na identidade consolidada junto ao público e em produtos simples e de qualidade.

Alguns fregueses com o saudosismo mais aflorado chegam a reparar nas singelas diferenças que o tempo naturalmente provocou em alguns sabores. “As frutas mudaram, o jeito de plantio. Antigamente, tudo era artesanal, se colocava gema no sorvete de creme, hoje é proibido”, comenta Júnior. Mas a maior parte dos comentários é de elogios. Além de novos visitantes de fora da cidade e do Estado que se impressionam com o movimento e com o sabor da nata batida, o permissionário costuma ver um encontro de gerações. Há clientes que se emocionam e choram ao pedir as sobremesas que, na infância, comiam acompanhados dos pais e avós.

Tão clássico quanto o sabor doce da Banca 40 são os pratos salgados servidos nos restaurantes. O Naval, em funcionamento desde 1907, se orgulha tanto do famoso bacalhau, que rende elogios de clientes portugueses, quanto de sua célebre e histórica freguesia, com as cadeiras utilizadas por Lupicínio Rodrigues e Glênio Peres penduradas em uma das paredes para que todos possam ver. Já o vizinho Gambrinus, também conhecido pelos pescados, conta com o título de ser o mais antigo. Além de estar aberto desde 1889, o estabelecimento tem um personagem conhecido por todos.

Se a história do Mercado Público é composta por pessoas, José Carlos Lopes Tavares é certamente um de seus protagonistas. Desde 1980, o garçom diariamente espalha simpatia pelas bancas e nas mesas do restaurante. “Esse Mercado para mim é fonte de inspiração para qualquer tema”, garante. Aos 72 anos, “mas com visual de 60”, o Zezinho, como é chamado, carrega um bom humor característico e, ao final de cada frase, solta uma piada seguida de uma risada inconfundível.

O garçom, que faz questão de ver o sorriso de cada cliente ao ir embora, “para voltar e recomendar”, conquista a freguesia do restaurante. Japão, Rússia, França e China são alguns dos países de onde já recebeu cartões-postais da fiel clientela, que, segundo ele, já pede para que deixe separado um belo filé de peixe para quando retornar a Porto Alegre. “Gambrinus e eu, é parada obrigatória.” 

Contínuo - Três gerações de Mercado

Nem em suas memórias mais antigas Cláudia de Paoli, 44 anos, consegue se lembrar de sua vida sem estar associada ao Mercado Público. Até porque, se não fosse pelo local, ela sequer teria nascido. Era início da década de 1960 quando seus pais, Leonel e Olga de Paoli, vieram do Interior para a Capital. De diferentes regiões do Estado, ele de Lajeado e ela de Bento Gonçalves, foram parar nas bancas 15 e 16, respectivamente, para trabalhar com familiares. No começo dos anos 1970, começaram a namorar e logo casaram. Nesse meio tempo, adquiriram uma banca, onde a primeira filha praticamente se criou. “Ela era a mascotinha do Mercado”, recorda o pai, aos 73 anos.

Logo nos primeiros meses de vida, Cláudia ia para o local com os pais, que a deixavam acomodada em um pelego dentro de uma caixa de maçãs enquanto trabalhavam. Dali, cresceu brincando nos corredores e bancas vizinhas. Adquiriu memórias para cultivar, histórias para contar, cicatrizes dos tombos que levou e amor pelo local e pelas pessoas com quem até hoje convive.

Lorenzo, Cláudia, Olga e Leonel: família criada no Mercado Público. Foto: Alina Souza

A época e o ambiente serviram para que tivesse uma infância repleta de alegrias e liberdades. Nada lhe faltou por estar no local de trabalho dos pais, pelo contrário. “Eu chorava quando não me traziam”, lembra Cláudia, que viu mudanças na estrutura que alteraram aos poucos o Mercado de quando era criança. A superfície do segundo andar, aberta até a década de 1990, costumava acumular gatos de rua e as bancas do primeiro piso eram mais próximas do que são hoje, dando uma sensação de mais calor humano.

Apesar disso, a proximidade dos mercadeiros não parece ter sido abalada. “A gente não consegue ver ninguém como concorrente, é uma família, isso é essencial aqui dentro, esse é o diferencial, por isso batalhamos tanto. Estamos lutando para poder continuar com essa essência e melhorar cada vez mais o prédio”, afirma Cláudia, que hoje toca a banca da família ao lado do pai. Assim como as mudanças estruturais não afastam os permissionários, os novos tempos não a impedem de repetir o que os pais fizeram e levar o filho para o local de trabalho. Ainda que com diferenças devido às questões de segurança de hoje, Lorenzo, de 6 anos, diz que quando crescer vai trabalhar com o avô.

Prestes a completar 74 anos, Leonel de Paoli se diverte com o otimismo do neto com relação ao futuro, mas garante que, enquanto puder, seguirá atrás do balcão. Aposentado desde o ano 2000, ele segue indo para o estabelecimento todas as manhãs. “Gosto de lidar com o público, é o que eu sei fazer”, conta o comerciante, que, tirando a lida com a agricultura que teve na juventude em Lajeado, passou toda a vida profissional no Mercado, onde, segundo ele, “quem não aprende a trabalhar, não aprende em lugar nenhum”.

Renovado - Da tradição à inovação

Basta um passo no corredor das peixarias para perceber que o que não falta em um dos tipos de comércio mais tradicionais do Mercado Público é conversa. De trás do vidro com os pescados expostos, os vendedores pulam e se debruçam sobre os balcões a qualquer sinal de um possível freguês. O convencimento se dá, resumidamente, na base de quem grita mais alto. “Preço bom” e “aqui é mais barato” são frases corriqueiras. Mas a concorrência termina aí, já que permissionários e funcionários se conhecem e batem papo o tempo inteiro, sem hierarquia aparente. Basta pedir uma entrevista, no entanto, para que a falação cesse. Uns se escondem, outros passam a responsabilidade para o colega mais próximo e trabalhadores antigos chegam a mentir que são novos no estabelecimento.

Quando João Carlos Lima, 73 anos de idade e 50 de Mercado, finalmente aceita dar um depoimento para a reportagem, fica claro porque ninguém queria falar. Funcionários da sua banca e das vizinhas quase não o deixam conversar, de tanto que debocham da situação e, quando um peixe escorrega das mãos do permissionário ao ser fotografado, a gargalhada toma conta dos corredores. “É assim o dia inteiro”, resume o comerciante, também às risadas.

João Carlos acompanha a tradicional venda de peixes há cinco décadas. Foto: Alina Souza

João Carlos é um dos mais antigos entre as peixarias do Mercado Público. Abriu o ponto com o pai no final dos anos 1960, quando, recorda, todos os balcões eram de cimento e os estabelecimentos funcionavam somente até as 10h. As águas do Guaíba, que ele, nascido na Ilha da Pintada, até hoje gosta de estar perto, eram mais próximas do prédio. Parte da freguesia, no entanto, continua comprando o peixe no mesmo local. Clientes que iam de mão com os pais, hoje, com mais de 50 anos, continuam frequentando sua banca. “É um costume, uma tradição.”

A tradição, muitas vezes, pode ser reinventada. Uma das mais conhecidas peixarias da cidade, a Japesca, há dez anos apostou no potencial do Mercado Público para iniciar novos negócios. Desde que a zona portuária era mais próxima, João Lopes da Cunha fazia como tantos outros pescadores artesanais da Ilha da Pintada e comercializava a pesca da noite anterior junto ao local. Logo começou a trazer o filho Gabriel, que passou por diversas funções dentro do estabelecimento – caixa, atendente e gerente – e o viu ser um dos pioneiros no Rio Grande do Sul a comercializar o pescado em São Paulo.

Foi ao acompanhar as vendas fora de Porto Alegre que Gabriel percebeu o crescimento da culinária japonesa e teve a ideia de inovar. Para que a Temakeria Japesca desse certo e chegasse às atuais 15 lojas entre Capital e região Metropolitana, foi fundamental que o primeiro ponto fosse dentro do Mercado Público. A grande sacada foi não só investir no local onde as peixarias e a realização da Feira do Peixe são referências culturais, mas na oferta de produtos de qualidade a preços competitivos.

“Nos apropriamos justamente dessa característica do Mercado, porque na época os restaurantes japoneses eram caríssimos. Quando resolvemos implementar, tivemos em mente que tínhamos que fazer isso a preços populares”, afirma o permissionário de 45 anos, que hoje toca o negócio. Desde 2009 com a primeira temakeria em funcionamento, ele avalia que o projeto poderia não ter evoluído se não fosse pela aposta no potencial do local em se renovar. “As coisas estão mudando muito rápido, tem que estar atento e preparado.”

Reinventar-se é característica do bom mercadeiro. Como tantos comerciantes, Adriana Kauer, hoje presidente da Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc), cresceu no lugar onde ainda trabalha. Seu pai, Tércio Kauer, comercializava plásticos e, como à época não era permitido um ponto fixo somente de itens não alimentícios, resolveu abrir uma banca com um freezer de picolés, que em seguida virou uma pequena fábrica em um canto da loja de 30 metros quadrados. A solução criada para poder abrir o estabelecimento logo tomou proporções maiores. Em 1984, em um verão de temperaturas acima da média, a fila era grande para se refrescar com o picolé mais barato das redondezas.

 

O mercadeiro é muito visionário, só que também tem muito carinho pelo lugar

 

O tino para negócios que se reflete em tantos comerciantes do Mercado Público começou a funcionar e, ao perceber que muitas pessoas compravam o produto para revender, Tércio resolveu começar a comercializar o pó que utilizava na fabricação para que os clientes pudessem fazer seus próprios picolés e sorvetes. De acordo com Adriana, atualmente responsável pelo ponto, o Comercial Martini então se tornou a primeira loja do Brasil a vender o ingrediente para o consumidor final.

Passado o verão, a sacada de comercializar um produto para que os clientes fizessem o picolé se repetiu e foi a vez de introduzir a venda de chocolates. Em seguida, a ideia foi de trabalhar com produtos de confeitaria de maneira geral. O pai mandou Adriana, então com 18 anos, estudar na Argentina e o estabelecimento, sempre no mesmo local e tamanho, acabou se tornando referência no setor. “O mercadeiro é muito visionário, só que também tem muito carinho pelo lugar”, conta a permissionária. “Continuo achando que meu ponto é esses 30 metros quadrados em que eu sempre vivi."

Resistente - De pé após diversas ameaças

O Mercado Público não havia chegado a meio século de existência e acabara de inaugurar seu piso superior quando o primeiro de seus tantos incidentes se abateu sobre a estrutura. Era madrugada de 5 de julho de 1912 quando as chamas surgiram de uma das barracas internas. No dia seguinte, o Correio do Povo noticiou: “Foi uma scena commovente e desoladora a que se passou hontem” (reprodução conforme a grafia da época). Segundo a reportagem, a população chorava ao ver as bancas reduzidas a cinzas. “Quando, dentro da noite fria e escura, se elevaram aquellas chammas vermelhas, vivas, resplandecentes, dominando uma altura consideravel do espaço, pensava-se ao longe que todo o edifício do Mercado ardia, e que o fogo, na sua faina de tudo destruir, se alastrava, lambendo e devorando os edifícios próximos.”

A causa do incêndio, com o passar dos anos, chegou a se tornar folclórica. Um vigia que fumava um cachimbo na banca 17 teria visto o início das chamas em bancas vizinhas, que, por sua vez, teriam sido provocadas quando um gato derrubou uma garrafa com querosene sobre um fogareiro ainda em brasa. O caso desastroso e curioso é narrado pelo jornalista Rafael Guimaraens no livro “Mercado Público: Palácio do Povo”. Dificuldade de acionar os bombeiros, demora na abertura dos portões e a predominância de madeira nas tendas são algumas das situações que acabariam por aumentar o tamanho do incidente. Apesar de alguns danos à estrutura, os maiores problemas foram os prejuízos dos permissionários, que, sem seguro, tiveram que arcar com as despesas. 

Enchente marcou o ano de 1941 em Porto Alegre e atingiu o Mercado. Fotos: CP Memória

Matérias mais atuais de diferentes veículos de imprensa e informações disponíveis no site da prefeitura divergem quanto ao ano do segundo incêndio da história do Mercado Público. Segundo alguns registros, foi em 1972, mas, conforme outros, ocorreu em 1976. Conforme Fabrício Scalco, diretor do Jornal do Mercado, publicação gratuita que circula no local e em espaços culturais de Porto Alegre desde 2007, as duas datas estão corretas. No aniversário de 140 anos do Mercado Público, o periódico mensal consultou fontes secundárias e documentos reunidos pelo programa Monumenta, que continha diversas documentações únicas sobre a história do lugar, mas que acabaram sendo destruídas pelo último incêndio, em 2013. Segundo essas pesquisas, em julho de 1972, o fogo acabou consumindo diversas bancas e, em 1976, o que aconteceu foi um incêndio de menores proporções, o que pode explicar por que uma das datas acaba sendo esquecida quando se tenta recordar os desastres daquela década.

No livro “Mercado Público: Palácio do Povo”, contudo, nenhum desses anos é mencionado, mas sim o dia 30 de dezembro de 1973. No arquivo histórico do Correio do Povo, onde também não há registros fotográficos de incêndios em 1972 e 1976, há notícias e fotos sobre a data mencionada pela publicação. Na penúltima madrugada de 1973, dois incidentes ocorreram muito próximos. No primeiro, iniciado ainda no dia 29, o prédio das Lojas Americanas, também no Centro, ficou destruído e cinco funcionárias morreram. Já no segundo, um provável curto-circuito ocorreu na banca 13 e destruiu 13 bancas do Mercado. “Várias autoridades estiveram no Mercado Público. Entre elas, o prefeito Telmo Thompson Flores, que disse aos proprietários das bancas queimadas da sua intenção de dar todo o apoio, para que as mesmas sejam imediatamente reerguidas”, diz a reportagem, que também informou que o funcionamento deveria ocorrer normalmente já no dia seguinte.

Outro sinistro na década de 1970, no entanto, não costuma encontrar divergência em nenhum dos registros. Foi em 1979, próximo às 22h de 15 de julho. No dia seguinte, a Folha da Tarde noticiou: “Incêndio no Mercado. Prejuízo de milhões”. De acordo com a reportagem, não fosse a agilidade dos bombeiros, todo o prédio teria sido destruído. Novamente, a causa apontada foi um curto-circuito, desta vez iniciado na banca 34, onde foram registradas as maiores perdas. Pelo menos 20 estabelecimentos acabaram incendiados. “As chamas consumiram quase toda a ala sudeste e foram combatidas com seis carros-bomba, dois carros-pipa e uma Magirus pequena.” Em dezembro do mesmo ano, o Mercado foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre.

Além de ter sofrido com o fogo, o tradicional ponto de abastecimento porto-alegrense sobreviveu às águas. Como toda a Capital, o Mercado foi fortemente abalado pela enchente de maio de 1941. A maior inundação registrada na cidade fez com que o volume de água acumulada chegasse a, pelo menos, um metro de altura no estabelecimento, devastando bancas e rendendo diversos prejuízos. A marca da altura da enxurrada pode ser vista até hoje em um dos portões.

Mas nem só de ameaças acidentais é feita a história do Mercado. Em seu livro, Guimaraens cita algumas das vezes em que a imprensa noticiou sentenças de morte dadas ao local pelo poder público. “Não há outra alternativa: o Mercado será demolido”, diz manchete do Correio do Povo de 27 de junho de 1945, quando a prefeitura anunciou que o prédio daria lugar a um edifício administrativo e um novo mercado seria construído na Praça Assis Brasil, junto ao porto. Conforme a publicação, o processo foi engavetado devido à atuação da Sociedade dos Amigos da Cidade.

 

Tentativas de demolição foram uma constante 

 

O livro cita que, no fim dos anos 1950, o prédio se viu ameaçado pelo novo Plano Diretor, que previa, no terreno do Mercado, uma avenida perimetral que ligava a Siqueira Campos com a Júlio de Castilhos. A ideia era evitar que motoristas precisassem fazer a curva na esquina das avenidas Borges de Medeiros e Júlio de Castilhos, economizando um tempo calculado em nove segundos. Ainda conforme a publicação, em 1966, um laudo do Executivo municipal afirmou que o prédio sofria com a deterioração e abandono, e o prefeito Célio Marques Fernandes anunciou que o restante da área daria lugar a um estacionamento. 

Em 1969, a Folha da Tarde noticiava: “Perimetral, a avenida pede passagem ao velho mercado”. A prefeitura, então na gestão de Telmo Thompson Flores, contava com 2,2 milhões de cruzeiros novos para aplicar em projetos e desapropriações e anunciou que o novo mercado seria instalado entre a Júlio de Castilhos e a Mauá, do outro lado da rua, onde o Mercado Livre funcionava. “O prefeito tem pressa”, divulgou o periódico. Em 1972, a previsão para a construção era para os próximos seis meses.

A reação, desta vez, veio de clientes, permissionários, intelectuais, jornalistas e escritores como Mário Quintana, que se posicionaram contra a possibilidade. Entre as resistências, destacaram-se reportagens do Correio do Povo, que viria a receber agradecimentos de permissionários. Após diversas alternativas serem cogitadas, as tentativas de retirar a tradicional edificação da paisagem da Capital começaram a desaparecer a partir da segunda metade da década de 1970.

Para o autor do livro que resgata a história do Mercado, as sucessivas tentativas de colocar o local abaixo faziam parte de uma visão tecnocrata muito presente principalmente na década de 1970. “Isso é dentro de uma lógica que existia na época, de que prédio histórico era prédio velho”, comenta Guimaraens. Ele explica que a própria desistência da prefeitura se deu influenciada dentro dessa corrente de pensamento. De acordo com o jornalista, um cálculo mostrou que centenas de milhares de pessoas passavam diariamente pelo local para se abastecer, o que deu um argumento econômico para a permanência do Mercado.

Entre as resistências de mercadeiros, destaca-se também a força arquitetônica do prédio, que Guimaraens chama de fortaleza devido ao processo de construção, ocorrido ainda durante o período Imperial. O projeto, originalmente alinhado à escola neoclássica alemã, é do arquiteto e engenheiro Friedrich Heydtmann, contratado pela Câmara de Vereadores. A previsão inicial era para o ano de 1867, prorrogada por dois anos e meio. Em 1869, a cidade tem um Mercado Público, construído devido à necessidade de substituir um prédio antigo. Localizado onde hoje fica a Praça XV de Novembro, o Mercado anterior surgiu em 1844 para organizar o comércio popular que havia começado a tomar conta das imediações ainda em meados do século 18. O prédio, consideravelmente menor que o atual, foi derrubado em 1870.

Em 1972, permissionários vieram ao CP agradecer por reportagens sobre o Mercado. Foto: CP Memória

Toda a trajetória está contada em “Mercado Público: Palácio do Povo”, que, originalmente, no entanto, tinha por objetivo narrar apenas a principal reforma feita até hoje no local, durante os anos 1990. A restauração envolveu o resgate visual dos arcos e das circulações internas, criação de novos espaços e redes de infraestrutura. O segundo andar passou a ter diversos estabelecimentos e, principalmente, a nova cobertura promoveu uma integração com o térreo, sem descaracterizar o prédio. As obras foram concluídas em 1997 e os arquitetos Doris Maria de Oliveira, Evaldo Schumacher, Octacílio Rosa Ribeiro, Teófilo Meditsch e Vera Maria Becker receberam o Prêmio 3ª Bienal Internacional de Arquitetura pelo trabalho. 

A restauração foi custeada com recursos do Fundo Municipal do Mercado Público (Funmercado), criado em 1987, e, principalmente, pela prefeitura. “Na minha opinião, é a maior obra que foi feita em Porto Alegre nesse sentido de recuperação de um prédio”, afirma Rafael Guimaraens, que começou a escrever o livro a pedido do economista e ex-secretário municipal José Luiz Vianna Moraes. Após a morte dele e diante da inexistência de obras sobre o Mercado, Guimaraens decidiu abranger a história como um todo. O livro foi lançado em 2012 e logo ficou esgotado.

Cronologia do Mercado Público. Arte: Alef Alencar.

Abalado - Último incêndio cobra seu preço

Reunido com funcionários em sua casa em Cachoeirinha, Jorcir de Almeida, o Juca, tirava o primeiro espeto da churrasqueira naquele início de noite de 6 de julho de 2013 quando viu as imagens pela televisão. O sábado era para ser de confraternização, mas terminou em desespero. O histórico prédio do Mercado Público, onde diariamente todos ali reunidos ganhavam a vida, era tomado por um forte incêndio. A carne foi deixada de lado e eles imediatamente saíram em direção à região central da Capital. 

De tão nervoso, o permissionário de uma banca de hortifrutigranjeiros não conseguiu sequer conduzir seu carro e pediu para um funcionário assumir a direção. A história de Juca com o Mercado havia começado há mais de 30 anos. Saído de Progresso, no centro do Estado, chegou ao local aos 16 anos. Adolescente do Interior acostumado ao trabalho, esse era o melhor currículo que se podia ter na época e logo conseguiu emprego. Trabalhou por oito anos com um tio, até que conseguiu abrir a própria banca. Atualmente, 11 de seus familiares são permissionários. Verduras, peixes, carnes, doces e cereais à venda no Mercado têm a marca da família de Almeida.

Em 2013, incêndio tomou conta do segundo piso do estabelecimento. Foto: Mauro Schaefer

“Eu achava que estava tudo perdido”, lembra Juca. Junto de outros permissionários, funcionários e público em geral que ficaram sabendo do incêndio, ele fez parte da multidão que se formou em frente ao prédio em chamas. Até então, ninguém tinha conhecimento do que havia sido atingido e o desespero fazia com que muitos comerciantes tentassem entrar no local na esperança de salvar documentos, mercadorias e qualquer coisa que, por sorte, não tivesse sido destruída. Demoraria mais de duas horas para que os Bombeiros conseguissem controlar o fogo.

“Minha vida foi aqui”

Juca de Almeida e seus funcionários só conseguiriam retornar para Cachoeirinha e sentar para jantar por volta da 1h da madrugada de domingo. O primeiro andar do Mercado, onde fica sua banca, não chegou a ser atingido e, por enquanto, não havia nada mais a se fazer. Mesmo assim, o estabelecimento ficaria fechado por 30 dias. Em todos eles, Almeida e outros trabalhadores se dirigiam até o local. A entrega dos mercadeiros, que diariamente conquista os consumidores, se replicava naquele momento de dificuldade. “Quem trabalha aqui há muitos anos tem amor ao Mercado”, conta. Hoje com 56 anos, ele já está aposentado mas segue no trabalho. “Minha vida foi aqui.”

Juca e 11 de seus familiares têm bancas no Mercado Público. Foto: Alina Souza

O incêndio começou por volta das 20h30min do dia 6 de julho de 2013. As chamas terminaram de ser controladas por volta das 23h. O espaço ficou fechado por 38 dias e as lojas localizadas abaixo da área queimada por quatro meses. O incidente foi causado por uma fritadeira elétrica que foi esquecida ligada.

Os mesmos sentimentos que deixaram Juca de Almeida e outros permissionários perto do Mercado mesmo com o espaço fechado fizeram com que Adriana Kauer se aproximasse ainda mais do local que já era um dos principais cenários de sua vida desde os 5 anos de idade, quando acompanhava o pai na venda de plásticos nas bancas. Há anos já era ativa na Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc), criada em 1969, mas, ao ver a destruição, sentiu que era hora de fazer mais. “Senti que o Mercado estava me chamando”, conta a permissionária, que em seguida assumiu a presidência da entidade. 

Para ela, assim como o cheiro dos produtos e a imponência arquitetônica, a força dos mercadeiros compõe a essência do lugar. Ao ver que, sob a administração do município, as mudanças necessárias custavam a ocorrer, a presidente e o restante da Ascomepc não tiveram dúvidas em começar, aos poucos, a chamar para si algumas das responsabilidades. Em setembro de 2017, mais de quatro anos após o incêndio, com as escadas rolantes e o segundo piso ainda fora de funcionamento, os permissionários buscaram a prefeitura para tentar viabilizar o Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI) por conta própria. Em maio do ano seguinte, o acordo foi homologado junto ao Ministério Público.

Após reformulações, a primeira etapa do projeto foi concluída em março de 2019 e a expectativa é de que a fase final termine em novembro, quando termina o plano provisório. Nesse meio tempo, a Associação providenciou restauro das escadas metálicas, sinalização, desobstrução de corredores e saídas de emergência, além de ter começado a instalação de um sistema de alarmes e detectores de fumaça. Todas as melhorias que ainda estão sendo implementadas foram bancadas pelos comerciantes, alguns deles inclusive assumindo dívidas para poder contribuir.

Segundo andar está interditado há mais de seis anos. Foto: Alina Souza

Uma frustração foi com relação à abertura do segundo andar, que a Associação pretendia realizar antes do aniversário de 150 anos. Além do simbolismo da data, se torna cada vez mais urgente realocar os permissionários que tinham ou estavam prestes a abrir lojas no piso. O objetivo, no entanto, teve de ser adiado. Ainda em março, quando a primeira fase do PPCI foi concluída, uma vistoria mostrou que toda a parte elétrica precisaria ser refeita.

Novamente, para não esperar pelo município, que deixou de destinar verba para obras o Mercado a partir de 2016, os permissionários começaram a se mobilizar para tentar viabilizar a energização do segundo piso. Uma das expectativas era a liberação de recursos do PAC Cidades Históricas, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que, em 2013, disponibilizaram mais de R$ 19 milhões para a restauração. R$ 9,6 milhões foram utilizados e o restante até hoje não chegou a ser repassado ao município.

Mesmo sem desistir da verba, os permissionários, começaram a se mobilizar. A Associação utilizaria seus recursos em caixa, previstos para escadas rolantes e elevadores, ainda que provavelmente não fossem o suficiente. Mesmo com um primeiro projeto rejeitado pela CEEE, a Ascomepc não desistiu de tentar bancar o processo. Segundo servidores da Secretaria Municipal da Cultura, o recurso do PAC continua disponível e, caso os permissionários viessem a arcar com as despesas nas obras, ajustes orçamentais poderiam ser feitos junto ao Iphan para que a verba fosse destinada para outras revitalizações necessárias no Mercado Público. A administração municipal, no entanto, tem outros planos.

Eterno e incerto - Incógnitas daqui para frente

“Todas as mudanças geram, talvez, alguma dor, mesmo que as dores sejam mais psicológicas do que reais.” Foi o que disse o prefeito Nelson Marchezan Júnior pouco mais de duas semanas antes do aniversário de 150 anos do Mercado Público sobre o futuro do local. No dia 18 de setembro, a prefeitura lançou uma consulta pública para que os porto-alegrenses possam opinar sobre o processo de concessão do mais antigo ponto de abastecimento da Capital. Apesar do período para a população se manifestar, o Executivo já está convicto: a gestão do Mercado deverá passar para a iniciativa privada.

O processo não deve demorar a acontecer. Após o período de consulta e da realização de uma audiência pública, a prefeitura prevê lançar o edital em novembro e assinar contrato com empresa em março de 2020. O gestor será responsável por investimentos, manutenção e limpeza do local ao longo de 25 anos e o valor total do contrato será de R$ 85 milhões. A principal justificativa do prefeito para defender a necessidade de concessão é de que o local precisa de melhorias para ser mais aproveitado, o que o Executivo não tem condições de fazer.

Durante o lançamento da consulta pública, a prefeitura mostrou um cronograma composto por três fases: transferência e assinatura de contratos, obras de drenagem, restauração e acessibilidade com duração de 30 a 36 meses e operação total do Mercado Público pela iniciativa privada. O Executivo, no entanto, procurou deixar claro que algumas regras terão de ser respeitadas. “Não vamos permitir que se torne algo semelhante a um shopping center”, disse o secretário de Parcerias Estratégicas, Thiago Ribeiro, ao afirmar que o edital vai garantir, por exemplo, direito de preferência aos atuais comerciantes. Ou seja, quando os contratos terminarem, eles poderão cobrir propostas de novos interessados.

 

Busca do lucro de administrador privado assusta comerciantes

 

A maior parte dos permissionários não se convenceu das garantias. Além do receio de o Mercado virar shopping, o maior medo é que, ao tornar a gestão privada, alcançar o lucro seja o maior objetivo e o futuro dos atuais estabelecimentos fique comprometido. Parte dos comerciantes, por exemplo, fez financiamentos para poder arcar com obras e melhorias que ainda estão sendo executadas, o que aumenta a sensação de insegurança.

A Ascomepc manifestou algumas vezes o interesse de assumir a gestão, mas, por lei, se vê impedida de participar do processo de concessão por ser uma entidade sem fins lucrativos. As únicas possibilidades seriam abrir ou se associar a alguma empresa, alternativas vistas como complexas.

O fato de o Mercado, segundo a Ascomepc, ser superavitário também faz com que permissionários questionem a prefeitura. A Secretaria de Desenvolvimento Econômico, porém, afirma que a arrecadação só seria superior ao gasto se não houvesse um déficit histórico e inadimplências mensais. De qualquer forma, para o secretário de Parcerias Estratégicas um superávit de nada adianta sem ser bem aproveitado pelo Executivo em meio às suas tantas responsabilidades diárias.

A lucratividade com um parceiro privado, segundo ele, será consideravelmente maior. Além dos R$ 85 milhões - R$ 41,5 milhões em investimentos e R$ 43,5 milhões nos 25 anos de manutenção – o valor mínimo de outorga será de R$ 28 milhões. Os cerca de R$ 9 milhões do Iphan, ainda disponíveis segundo alguns servidores, não são considerados pela prefeitura no processo de concessão. Ribeiro acredita que a maior chance é de que a verba tenha sido cancelada como outras do PAC e, caso contrário, a articulação será para que possa ser utilizada em outra área do município.

Projeto que torna Mercado Patrimônio Histórico do RS foi aprovado. Foto: Alina Souza 

Em meio ao momento de divergências, a Assembleia Legislativa aprovou no dia 24 de setembro projeto de lei que torna o Mercado Público de Porto Alegre Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul. De autoria do deputado Luiz Marenco (PDT), o texto não deve inviabilizar a concessão, mas uma das expectativas é de que possa tornar o processo mais difícil. A Secretaria Municipal de Parcerias Estratégicas, contudo, não acredita que isso vá ocorrer, pois o projeto já considerava, por exemplo, o local como tombado pelo município.

As celebrações pelos 150 anos se dividem com as inseguranças em relação ao futuro. Em meio ao ambiente de incertezas, no entanto, mercadeiros têm a convicção de que, independente do futuro, estarão unidos como tantas vezes no passado. “O Mercado é um prédio lindo, mas quem faz a alma dele somos nós”, ressalta a presidente da Ascomepc, Adriana Kauer. 

 

Correio do Povo
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