Na linha de frente

Na linha de frente

Profissionais da saúde falam sobre seus trabalhos nos hospitais em tempos de pandemia

Por
Christian Bueller

“Acabou o oxigênio! Vem todo mundo correndo para a UTI.” Imagine você, que dedicou boa parte dos seus 52 anos para cuidar da saúde de outras pessoas, tornando-se o responsável técnico de uma Unidade de Terapia Intensiva de um hospital e, em meio a uma pandemia, perceber que a matéria fundamental que faz o ser humano respirar está em falta na instituição. Isso aconteceu com o médico José Luís Toríbio Cuadra, na fatídica manhã de 19 de março de 2021, dia em que seis pacientes de Covid-19 morreram depois que o fornecimento de oxigênio do Hospital Lauro Reus, no município de Campo Bom, foi interrompido por cerca de 30 minutos. O pedido desesperado de ajuda que abre esta reportagem é de Toríbio, enviado por mensagem de áudio por telefone ao grupo de coordenadores do hospital, evidenciando um cenário que marcaria a carreira e a vida de todos que presenciaram os fatos transcorridos ali. “Estávamos chegando para trabalhar, 8h da manhã, tínhamos muitos internados. A capacidade era de dez pacientes, mas tinha 22, todos graves, recebiam ventilação mecânica. Todo mundo esgotado”, lembra o médico, que trabalha em outros três hospitais em Porto Alegre. A pandemia mal completara 12 meses no Brasil e já havia matado 270 mil brasileiros − um pouco mais da metade dos óbitos atuais −, dos quais mais de 1,4 mil eram profissionais de saúde (200 a menos do que os números mais recentes).

Os esforços para salvar vidas atingidas pelo novo coronavírus desde março do ano passado chegaram a render homenagens aos trabalhadores da saúde em todo o país, principalmente no primeiro semestre de 2020, entre salvas de palmas, frases em cartazes e flores entregues nos hospitais. Passado o impacto inicial, os aplausos rarearam, mas o trabalho só aumentou na linha de frente contra a Covid-19. Os meses de março e abril de 2021 foram os de maior registro de mortes em decorrência da doença no Brasil. Período que abrange a pior experiência de Toríbio. “Começaram a apitar os 12 alarmes de falta de oxigênio. A gente olhava o monitor e via a saturação baixando absurdamente rápido. Pedi ajuda, só tínhamos um respirador de transporte e alguns cilindros. Foi uma grande comoção, um desespero, um caos se instalou naquele momento, nunca tinha vivido uma situação como esta”, relata o médico, que pediu demissão do cargo de responsável técnico da UTI do Lauro Reus após o ocorrido. Dos 12 pacientes em hipoxemia (baixa concentração de oxigênio no sangue arterial) grave, cinco tiveram parada cardíaca. O tempo era curto para as equipes do hospital de Campo Bom. “Começamos a massagear, ventilar as pessoas. Em um momento, me vi sobre uma mulher, com dificuldade de se virar por ser obesa.

Aos poucos, o fluxo de oxigênio seria restabelecido, mas soubemos que duraria apenas duas horas. Quatro faleceram de uma vez. Outros dois estavam muito graves e faleceram depois. É uma situação que ninguém está preparado para enfrentar”, relembra o médico.

Toríbio olhava para os lados e via os colegas envoltos em lágrimas. “A farmacêutica que veio nos ajudar com a medicação para parada cardíaca me abraçou, aos prantos. Todos chorávamos. Fomos para a Emergência, uma situação caótica também”, conta. Para completar o cenário amplamente desfavorável e triste, ainda era preciso informar os familiares sobre as perdas. “Até hoje, ouço aquelas reações dos parentes, não sai da gente. É uma situação difícil e constrangedora explicar as causas. Mas fizemos o máximo, um esforço sobre-humano”, enfatiza.

O médico destaca a garra da equipe durante toda a pandemia, especialmente naquele dia, mesmo em um hospital fora da Capital, de menor estrutura. “A gente ouvia sobre a falta de oxigênio em Manaus, mas nunca imaginou que isso poderia acontecer aqui no Estado. Foi o pior momento da minha vida profissional. Horrível, me marcou para sempre. Até hoje escuto um alarme de oxigênio, o coração dispara”, revela Toríbio. Ele acredita que o sistema de saúde no país precisa melhorar muito para poder enfrentar essa pandemia com eficiência adequada. “Espero que a vacina faça esse paredão imunológico, que esse vírus entre em um ciclo como outras doenças, como gripe, prevenidas com imunizações, e que possamos seguir vivendo.”

Mas a carreira também tem momentos de alegria, como nos dias de alta dos pacientes. “Recentemente, no Hospital Conceição, comuniquei à família por telefone. Sabe quando a gente não encerra a ligação de imediato? Pude ouvir a esposa dele gritando de felicidade. Foi emocionante poder dar essa notícia. Covid não é só morte, também é vida”, suspira Toríbio, ressaltando a união das equipes e a experiência adquirida ao longo da pandemia. “As pessoas podem contar conosco, não deixamos ninguém para trás”, afirma.

Letra e melodia

O técnico em enfermagem Felipe Andriotti relata que, mesmo contando com estrutura de trabalho, os profissionais vivem um esgotamento físico e mental pelas perdas de pacientes e colegas. Foto: Fabiano do Amaral

Como em uma montanha-russa, o passar da pandemia apresentou, eventualmente, pontuais baixas no número de atendimentos, mas a apreensão nunca abandona um profissional de saúde, pois uma urgência pode bater à porta do setor a qualquer momento. Foi o que aconteceu com o técnico em enfermagem do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) Felipe Andriotti, integrante de várias unidades no combate ao novo coronavírus, incluindo a unidade piloto da instituição, e participando de corredores de aplausos aos pacientes que tinham alta no início da pandemia. “Com tempo, esse momento foi perdendo o sentido em virtude do número de dizimados.” Foi Pipo, como é conhecido, que atendeu o paciente zero do GHC do hospital, que ficou mais de 30 dias intubado. “Participei da alta dele também, o Lucas, que inclusive é cantor e entoou uma música para nós da equipe”, lembra. O que jamais o técnico poderia imaginar era a paciente que entraria pela porta do seu setor e que marcaria, ainda em 2020, sua história durante a pandemia. “Tive que atender a minha cunhada, Kelly, de 32 anos, uma jovem que veio a falecer e deixou uma filhinha de 7 anos, a Manuela, a Manu”, conta.

Comprometida por sua doença de base, um câncer, Kelly teve severas complicações pela Covid-19 e entrou em coma, mas, antes, conseguiu dizer ao profissional familiar que “a vida continua”. “É um sentimento de amargor total, de missão falha, de incapacidade. Porque, além de compartilhar a tristeza que está ao redor, vendo a situação das vítimas, ao perceber o que aconteceu com um dos teus, a dor é maior. A gente entende a melodia, mas quando sente na pele, a gente entende a letra da música”, diz Andriotti.

À pequena Manu, restaram a dor, a saudade e os questionamentos. “Várias vezes, ela me perguntou: ‘Quantas mãezinhas ainda vão ter que ir embora?’. Coisas que nos deixam em profunda reflexão.” Mesmo com a situação atípica, o técnico continuou seu trabalho diário, apesar do que denomina a “incerteza do amanhã”. “Caminhamos, todos os dias, com a vida e com a morte, lado a lado. Temos, no hospital, toda a estrutura necessária, mas vivemos um esgotamento físico e mental pelas perdas de pacientes e colegas. Alguns com sequelas do vírus, que não conseguiram voltar ao trabalho pleno. É um turbilhão de anseios, dentro de um bote, esperando aonde o mar vai nos levar”, explica Andriotti, com outra analogia.

O técnico em enfermagem vai ao encontro do que diz o médico Toríbio quanto à missão dos profissionais de saúde, apesar das perdas. “Somos guerreiros, jamais vamos desistir. A população jamais poderá dizer que um de nós tombou sem lutar. Podemos estar esquecidos, mas todo mundo, mesmo os que já estão em casa, já passaram por situação de estresse. Ninguém aguenta mais. E não podemos esquecer os pacientes de outras doenças, que precisaram se adaptar, buscar novas rotinas.” Como ele mesmo escreveu em um post nas redes sociais, o corredor por onde saiu Kelly foi sem palmas, mas a luta da cunhada o inspira a seguir com fé e esperança por dias melhores. “Esperamos que mais de 70% da população consiga se vacinar até o final de 2021. E que todos continuem cuidando do próximo.”

Depois do inverno

A médica Taiani Vargas diz que a experiência que vem passando no atendimento a pacientes com Covid ficará impregnada para a vida inteira. Foto: Guilherme Almeida

A médica intensivista Taiani Vargas é uma das coordenadoras da UTI do Hospital Nossa Senhora da Conceição e está na linha de frente no combate à pandemia desde março de 2020. Ela descreve a sensação que passa na sua cabeça sobre a vivência até aqui com um verbo: “Sobrevivemos”. Um arrefecimento no número de casos e óbitos ocorreu no final do ano passado, mas durou apenas um mês e meio. Logo, os pacientes voltaram a lotar as unidades, com mais força. “O que aconteceu entre fevereiro e abril foi o verdadeiro caos, com o colapso do sistema de saúde. Em março, chegamos a ter 48 pacientes em ventilação na Emergência, onde se poderia acomodar 20”, descreve, afirmando ter sido este o ápice de atendimentos na pandemia até o momento. Para Taiani, a experiência que vem passando com a Covid-19 ficará impregnada para a vida inteira. “O que passamos nesses últimos meses, espero que não se repita. Lidar com tudo isso é muito difícil. Manter a motivação em meio à exaustão de toda a equipe é um desafio diário. Temos sempre que lembrar que o paciente que está ali é único e é a primeira vez dele”, explica a médica.

Mesmo com a chegada do inverno, o momento é de diminuição de pacientes internados nas emergências e UTIs por Covid-19, segundo Taiani. “A situação se inverteu, a demanda é maior com outras doenças. Acredito que seja muito relacionado ao andamento da vacinação e nossa perspectiva é que continue assim”, projeta, ciente de que a estação comumente movimenta as internações no Rio Grande do Sul por conta de doenças respiratórias.

Em entrevista ao Correio do Povo em outubro de 2020, Taiani contou que, desde o início da pandemia, só não havia estado no hospital em sete dias. O distanciamento das pessoas que ama era necessário. Nove meses depois, a diminuição dos casos faz com que alguns aspectos da vida pessoal possam ser retomados. Mas, ela alerta, de forma taxativa: aos poucos. “Ainda mantenho o distanciamento, saio pouco, praticamente só nas UTIs que trabalho (a outra é no Hospital Pavilhão Pereira Filho na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre). Tenho visto meus familiares com um pouco mais de frequência”, diz a médica. O convívio, no entanto, se dá mais entre os profissionais que exercem a mesma atividade, ao se cruzarem entre os corredores e leitos durante a pandemia. “Tenho evitado a exposição a quem ainda não se vacinou. Mas é importante destacar que, mesmo tendo convívio social menos restrito, é essencial manter todos os cuidados, usar máscaras e evitar locais fechados. Quando visito meus pais, deixo eles comerem primeiro, ainda não consigo sentar com todos à mesa, comendo juntos, sem máscaras”, ressalta.

A expectativa de Taiani é de redução na transmissão e no risco de contágio assim que o inverno passar. A médica faz questão de mandar uma mensagem aos colegas da linha de frente contra a Covid-19. “Para quem está lá, há um ano e quatro meses, trabalhando nisso, eu digo para não desistirem. O trabalho é árduo, não é uma tarefa fácil, mas só é entregue a quem é capaz de carregar”, afirma.

Para ela, só quem vivencia diariamente as perdas durante o expediente tem, de fato, a noção do que significa o profissional de saúde durante esta crise. “A gente tem que ter esperança de que isso vai passar. Vacinem-se! Não escolham vacinas, pois elas é que podem nos tirar dessa”, frisa a médica.

Sequelas

A técnica em enfermagem do GHC Claudete Miranda, mesmo não trabalhando diretamente em um setor que trata da doença, acabou contaminada, em agosto do ano passado. “Trabalho com pacientes com problemas neurológicos e cardíacos. As pessoas costumam vir com uma demanda de infarto, mas podem estar contaminadas e infectam outros pacientes ou profissionais. Tínhamos precaução mesmo sem ser área Covid, mas ficamos expostos e me contaminei”, conta. Claudete enfrentou a doença por 13 dias até se recuperar e voltar a trabalhar, mesmo que por um período curto, já que entraria em férias. “Quando ia voltar, passei mal, tive uma dor no peito e nas costas muito forte e, ao buscar atendimento, vi que estava com 25% do pulmão comprometido e suspeita de um tromboembolismo que poderia provocar coágulos no sangue e afetar o coração”, lembra.

Passado o susto e a não confirmação de tromboembolismo, ela saiu do hospital, mas as férias não foram como o esperado. Debilitada pela recuperação da Covid-19, a técnica percebeu sequelas. “Elas provocam efeitos piores do que a doença de fato.” Durante três meses, a sensação de quem respirava como se subisse escadas constantemente impossibilitava qualquer tipo de conversação, antes costumeira. “Em novembro, foi diagnosticada uma trombose na perna esquerda, outra sequela da Covid-19. Precisei me internar para tratar. Mesmo voltando a trabalhar, em dezembro, a respiração continuava sendo difícil”, recorda. Além de todos os problemas, Claudete demorou cinco meses para recuperar o paladar e o olfato, mesmo curada da doença. “Emagreci quase 20 quilos. Parece que estamos comendo sola de sapato. Esteticamente, as mulheres acham bonito, mas foi às custas da Covid-19. Só voltei a sentir gosto quando comi um brócolis”, comenta a técnica.

Outro profissional que precisou se afastar temporariamente do trabalho foi o enfermeiro assistencial Ismael Rosa, 52 anos. Ele trabalha no Hospital São Camilo, em Esteio, e na UPA 24 Horas de Sapucaia do Sul e contraiu Covid-19 no final do mês de junho de 2020. “Quando aconteceu, estávamos, os trabalhadores da saúde, em momento de grande fragilidade. Havia falta de materiais e alguns protocolos comprometiam nosso trabalho. Éramos repreendidos se usássemos equipamentos de proteção individual (EPIs) em áreas chamadas ‘limpas’. Hoje sabemos que isso não existe, o prédio todo pode estar contaminado.” Muitas vezes, Rosa precisava atender emergências com uniformes e máscaras inadequados, o que, segundo ele, potencializou a contaminação que o acometeu.

O enfermeiro que nunca havia passado por um processo de adoecimento, se viu em meio ao turbilhão clínico e emocional. “Sentia bastante falta de ar e isso era muito impactante. Respirar é algo que fazemos sem pensar, no automático. Fiz uma tomografia que apontou comprometimento de mais de 50% dos meus pulmões”, relembra. Cinco meses se passaram e Rosa ainda tinha dificuldade com a respiração que o enfraquecia. “Me sentia muito cansado e indisposto”, pontua Rosa, que também é vice-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do RS (Sergs).

Recusa em desistir

A médica Lisangela Preissler conta que, por mais que os profissionais estivessem atentos, em março de 2020 não se tinha a menor ideia do que viria pela frente. Foto: Mauro Schaefer

Tanta coisa aconteceu desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia que a médica do serviço de Medicina Interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) Lisangela Preissler precisou parar para lembrar de março de 2020. “Por mais atentos que estivéssemos, não tínhamos a menor ideia do que vinha pela frente. Vivemos a pandemia do H1N1 em 2009, mas não se pode comparar em nada com o que vimos neste quase um ano e meio. Quando se falava que a coisa seria feia, eu pensava ‘ah, não vai ser tudo isso’”, admite. A Covid-19 se apresentou com força e Lisangela tomou para si, quase como lema, que “a única certeza era fugir de quem tinha certezas”. Ela continua pensando assim. “Quem está muito convicto não entendeu muito bem o que está acontecendo. No início, havia aquela preocupação de lavar superfícies, trocar roupas. Mudou rápido. Nossa preocupação tem que estar na via respiratória.”

Os momentos negativos são incontáveis. “Tantas pessoas jovens que vão para a UTI. Um caso de um pai que recebeu um desenho feito pela filha e me pediu que eu garantisse que ele voltaria para casa bem para vê-la fazer outros desenhos. A gente tem que sorrir, confortar, dar suporte, mas não podemos garantir essas coisas”, relata. Já os casos de alta são as boas marcas desta pandemia. “Os momentos felizes foram todas as vezes em que pudemos ver eles voltando aos seus amores, suas vidas, com toda a desabilidade, toda a morbidade que longos dias de internação agregam a essas pessoas”, diz a profissional, que também é consultora da Superintendência Médica do Hospital Moinhos de Vento. Um episódio vem à sua lembrança. “Tivemos um caso de um homem de 40 anos, saudável, sem comorbidades, que foi para a UTI, ficou bastante tempo intubado e saiu traqueostomizado. Ficou meses internado, precisando de aparelho para respirar. Lúcido, mas com uma fraqueza muscular infinita. Um paciente emblemático para todos. Pois, depois de quase um ano, ele está fora dos aparelhos e respirando sozinho pela traqueostomia. Todos se recusaram a desistir dele e esse investimento em saúde incalculável se deve ao SUS”, se emociona.

Lisangela é a única pessoa que sai de casa, o marido, Marco, trabalha em home office e o filho tem aulas remotas. O distanciamento se tornou lei logo de cara. “Tivemos que dispensar a diarista, nossa rotina passou a ser nós três. Os avós entenderam que deveriam ficar em suas casas no início da pandemia. E passamos a pedir muita tele-entrega de produtores locais, o que melhorou até nossa qualidade de vida”, conta a médica. O pequeno Fernando, de 5 anos, vez por outra confessa “pequenas contravenções”. “Tu não sabe, mas abracei a vó pelas costas, mãe!”, ela lembra. Usuária da máscara PFF2 (peça facial filtrante) para praticamente tudo, Lisangela saúda o privilégio de não ter tido casos da Covid-19 na família até agora. “Não vou ao elevador sem máscara. O cuidado obsessivo com a via respiratória me fez chegar até aqui sem ficar doente.”

Separados pelo vírus

Enfermeira há 18 anos, Jaqueline Sangiogo Haas trabalha há 15 anos no HCPA e na linha de frente desde que a Covid-19 apareceu. Em março de 2020, não havia informações de como a doença se comportava, enquanto os pacientes não paravam de chegar. “Com o passar dos meses, triplicamos nossa equipe, o que demandou coesão e entrosamento. A segunda onda foi mais leve quanto à carga emocional”, lembra. Nascida e criada em Ijuí, Jaqueline nunca cogitou cursar algo que não fosse na área da saúde. “Pensava em que lugar da sociedade eu poderia fazer algo que poucas pessoas conseguem. Isso vem junto com a gente. É bom saber que somos úteis, gosto de ser desafiada. Não tem um dia de trabalho igual ao outro. Me especializei em Terapia Intensiva, área em que posso ser extremamente humana, mas também técnica, com um caminho de descobertas”, conta a enfermeira, que se diz uma pessoa fascinada pela ciência.

Uma cena muito vista por Jaqueline é a de casais internados na mesma UTI, em estado grave. “No início da pandemia, teve um caso muito comovente, em que levamos a esposa, na cadeira de rodas, para ver o marido de perto. No fim, ele faleceu e ela voltou para casa. A gente se envolveu muito com aquela família. Foi bem triste”, relembra. Uma situação atual é bem similar. “É uma esposa que se internou dois dias depois do marido. Deixaram o filho de 11 anos em casa. Ambos foram intubados. Ele, agora, está lúcido, mas a esposa não. De um lado, a felicidade da melhora e, de outro, um caso grave, pior que ele. O marido revelou para mim que gostaria que ela estivesse bem: ‘Pai é legal, mas mãe é mãe’, ele falou. Aquilo foi de uma profundidade que me deu um nervoso. São faces do nosso trabalho”, se emociona. As ligações por videochamada pré-intubação também marcaram o cotidiano de Jaqueline. “Às vezes, podem ser a última conversa antes da morte. Mas existem momentos muito lindos, de muita luz, que nos revigoram todos os dias”, conta a enfermeira, ressaltando que “a única porta de saída deste caos são os dados científicos e a vacina”.

Vai passar!

A técnica em enfermagem Roberta Campanas (acima) e a enfermeira Jaqueline Sangiogo Haas destacam a apreensão das equipes no começo da pandemia frente a uma doença até então desconhecida. Fotos: Ricardo Giusti

Técnica em enfermagem no HCPA, Roberta Campanas começou sua carreira há 15 anos por uma necessidade pessoal. “Meu marido é cardiopata e estava internado no Instituto de Cardiologia. Eu queria tentar fazer a diferença para os pacientes. Se a gente gosta do que faz, faz a diferença. Eu faço com amor”, afirma. Quando chegaram os primeiros casos em decorrência do novo coronavírus, uma apreensão chegou à equipe. “Mas com um time bom, conseguimos controlar nossos medos de contaminar família, colegas e pacientes. O desconhecido é o medo maior”, conta. A chegada em casa era um evento. “Não abraçava meus filhos, dormia com meu marido, mas com muito cuidado. Fiquei quase um ano sem ver meus pais. Visitas na minha casa não acontecem até hoje. A maior falta foi o carinho do contato com meus filhos”.

Roberta se emociona ao lembrar situações que testemunhou. Como de uma mulher com cerca de 30 anos que relutava em ser intubada, mas que precisou passar pelo procedimento. “Infelizmente, veio a falecer”, rememora. Logo surge em sua mente uma história com final feliz. “Um jovem chegou, também teve que ser intubado, mas logo foi para o quarto e teve alta. Nem sempre podemos vencer, mas pelo menos damos um conforto para eles e fazemos nosso melhor”, relata. Alguns chegam muito fragilizados porque já perderam pai ou mãe para o vírus. “Tentamos tranquilizar, mas sempre esclarecer o que está acontecendo.”

Outro tipo de situação é o momento em que o familiar deixa o paciente no hospital. “Eles dizem: ‘por favor, cuida muito dele porque é tudo o que a gente tem’. Deixam nas nossas mãos. É aí que temos que dar esse carinho, como se fosse nosso familiar. Isso enche nossos olhos de lágrimas. Mas temos que seguir, pois temos que dar forças para os dois, o paciente e o familiar. Ficar sem contato é um dos piores momentos”, revela. Roberta acredita que tudo vai passar, desde que todos façam a sua parte. “Distanciamento social, higiene, vacina. Logo, logo, voltaremos à vida normal. Vai passar!”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895