O ano dos dois desejos

O ano dos dois desejos

Produtores gaúchos sonham com colheita farta e cotações iguais as de 2020

Por
Cíntia Marchi

Se existem dois desejos que o produtor rural pediu para 2021 é que haja uma reprise dos preços praticados pelo mercado no ano passado e que o clima, desta vez, colabore. Atravessando neste final de janeiro o período crucial para o desenvolvimento das lavouras de verão, os agricultores torcem para que não falte chuva e para que possam colher um volume de grãos adequado neste ciclo, enquanto o mercado vem sustentando cotações remuneradoras. Apesar de ter havido certo enfraquecimento dos preços de alguns dos produtos agropecuários nesta largada de ano, como no caso do arroz e da carne de suínos, outros segmentos, como a soja, milho, trigo e boi gordo, se mantêm em uma escalada de valorização.

Segundo indicadores da Emater/RS-Ascar, o preço médio da saca de 60 quilos de soja alcançou os R$ 156,00 no Rio Grande do Sul em alguns dias de janeiro. O milho atingiu R$ 77,00 e logo abaixo aparece a saca de trigo, a R$ 73,00. No caso do arroz, mesmo a saca tendo recuado para R$ 93,00, a cotação está 88% acima da praticada há um ano.

Desta vez, os produtores gaúchos esperam aproveitar preços a estes níveis, ou muito próximos a eles, o que não foi possível no ano passado. A maioria dos agricultores já tinha vendido grande parte da colheita antes da disparada surpreendente de preços ou sequer tinha um volume razoável de grãos para negociar, em função da quebra de safra provocada pela estiagem. “Em 2020, os preços altos só aumentaram a dor do produtor que não colheu”, comenta o economista-chefe da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz.

Se as condições climáticas ainda preocupam – meteorologistas alertam que o fenômeno La Niña segue ativo e poderá provocar tempo seco entre fevereiro e março –, alguns fundamentos básicos de mercado têm apontado para horizontes favoráveis. “De modo geral, a perspectiva é que teremos preços agropecuários altos novamente em 2021”, afirma a pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/Esalq/USP), Nicole Rennó Castro.

Segundo Nicole, basicamente três fatores explicam a tendência da manutenção de cotações remuneradoras neste ano, depois dos reveses provocados pela pandemia do coronavírus no primeiro semestre de 2020. O primeiro fundamento tem a ver com a recuperação da economia e do nível de comércio global. O Banco Mundial previu um crescimento de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial e de quase 8% da atividade econômica da China, o principal destino dos produtos brasileiros. Nicole explica que esta recuperação deve influenciar positivamente os preços internacionais das commodities alimentares e a demanda pelos produtos do agro brasileiro.

Outro fator, segundo a pesquisadora, é que o real continuará desvalorizado em 2021. Relatório Focus, divulgado pelo Banco Central no início do ano, apontou a tendência da moeda norte-americana seguir na casa dos R$ 5,00. Caso este cenário se confirme, os grãos e carnes produzidos no país se manterão competitivos para exportação. Por fim, Nicole destaca que há previsão de melhora no consumo doméstico, na medida que a vacinação contra o coronavírus avança e se flexibiliza o isolamento social. “A retomada do mercado de trabalho deve favorecer as famílias de menor renda que gastam uma boa parte dos seus salários com alimento”, prevê. O Boletim Focus apontou que a economia brasileira deve crescer 3,4% neste ano.

Custos e preços

A pesquisadora acrescenta que, no caso da soja e do milho, os estoques baixos e a alta demanda, dentro e fora do país, também contribuirão para cotações elevadas. Por outro lado, esta situação inquieta os setores de proteína animal, consumidores do cereal e do farelo de soja. Embora haja boas perspectivas de demanda por carnes e leite, os altos custos de produção afetarão essas cadeias. “Em alguma medida, estes custos altos devem ser repassado aos preços”, acredita Nicole.

Para o economista-chefe da Farsul, a variável que mais preocupa neste momento é a das condições climáticas. Ele observa que já está confirmada quebra da safra de milho por ter faltado chuva na primavera. “Mas o produtor tem esperança. Ele investiu e aumentou a área plantada porque acredita”, destaca. Caso os cenários transcorram bem daqui para frente, Da Luz orienta o agricultor a ter cautela em relação a novos investimentos. “Um negócio precisa ser feito quando é viável economicamente e não por impulso motivado por um ano bom de preços”, alerta.

O economista lembra que, depois da grande estiagem que encolheu a safra 2011/2012, muitos produtores fizeram boa colheita no ciclo seguinte e conseguiram baixar em 80% o tamanho das dívidas contraídas durante a frustração da colheita. “O produtor, primeiro, tem que reduzir o seu passivo para só depois pensar em investir”, recomenda.

 

À espera de bom tempo

Produtor de soja depende de chuvas adequadas para conseguir uma colheita cheia e aproveitar a conjuntura mundial que mantém as cotações do grão elevadas

Se a chuva for a esperada, safra deve render 19,8 milhões de toneladas em 2021, com média de 54 sacas por hectare, e proporcionar lucratividade inédita. | Foto: FERNANDO DIAS/ DIVULGAÇÃO CP

Ainda marcados pela perda de 42% da produção do ciclo passado – segundo levantamento da Emater –, os produtores de soja do Rio Grande do Sul avançam nos trabalhos da lavoura deste ano com a expectativa de que a estiagem não se repita para poderem aproveitar uma conjuntura de mercado altamente favorável, com baixo estoque do grão e demanda global aquecida.

Estimativa da Federação da Agricultura (Farsul) apontou que o Estado poderá colher 19,8 milhões de toneladas de soja em 2021, média de 54 sacas por hectare. Se este número se confirmar, o vice-presidente da Farsul e coordenador da Comissão de Grãos da entidade, Elmar Konrad, acredita na recuperação plena do setor. “Teríamos uma margem de lucratividade que nunca tivemos”, calcula. O presidente da Aprosoja, Décio Teixeira, concorda que 2021 poderá ser o “ano de recuperação”. “Que o produtor possa aproveitar e que o resultado possa circular no Estado, gerando bastante emprego”, deseja.

Segundo Konrad, o mercado tem dado sinais de que as cotações se manterão firmes, como a alta do bushel na Bolsa de Chicago, os estoques mundiais baixos e a tendência da taxa cambial seguir valorizada. O presidente da Aprosoja acrescenta que o grande apetite dos chineses pelo grão brasileiro continuará um fator de sustentação dos preços e, ao mesmo tempo, admite que o clima poderá atrapalhar uma safra cheia no Brasil.

Os dois dirigentes lembram que nem todos os produtores conseguiram usufruir os valores recordes de 2020 por terem comprometido parte da colheita com contratos futuros e terem feito vendas antes da cotação disparar. “O pequeno e o médio produtores fizeram uma média de R$ 90,00 por saca, enquanto que o grande conseguiu vender acima dos R$ 100,00”, estima Konrad.

Em 2020, segundo o Cepea, a saca bateu em R$ 170,97 no Porto de Paranaguá, em 11 de novembro, depois de sucessivos recordes nos meses anteriores. A cotação rompeu a casa dos R$ 100,00 em 30 de março e, sem nunca mais ter retrocedido para valores menores de três dígitos, fechou o ano em R$ 153,90. Na largada de 2021, voltou a alcançar os R$ 170,00.

 

Estiagem da primavera prejudicou milho, que mantém preços em alta

Com lavoura irrigada, Edigard Monteiro, de Bossoroca, revela expectativa de obter maior rentabilidade que em 2020, quando vendeu parte da safra antes do preço disparar. | Foto: Marlene Monteiro / Divulgação

As perdas da safra de milho 2020/2021, que passaram a ficar evidentes com a colheita em andamento no Rio Grande do Sul, trazem dois cenários para o Estado: o déficit anual do grão se agravará ainda mais e os preços do produto disponível tenderão a se manter altos. Nas três primeiras semanas do ano, a cotação da saca se elevou 8,11%, chegando a R$ 85,03 no dia 21 de janeiro, segundo o indicador Esalq/BM&FBovespa.

O presidente da Associação dos Produtores de Milho (Apromilho/RS), Ricardo Meneghetti, acredita que a cadeia de proteína animal instalada no Estado terá que comprar de outras praças algo em torno de 4 milhões de toneladas. Estatísticas vêm indicando uma produção estadual de até 3,5 milhões de toneladas, reflexo da estiagem que atingiu as lavouras na última primavera.

Enquanto isso, as exportações do grão nacional devem seguir favorecidas pelo dólar valorizado, elevando a disputa pelo produto. Segundo o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária, até metade de dezembro, 62,7% da produção 2020/2021 do Mato Grosso, maior produtor do país, já havia sido comercializada, um recorde para o período.

Diante da conjuntura, Meneghetti espera que, ao longo de 2021, o agricultor consiga fazer boas vendas daquilo que colher, com valores acima da média dos últimos anos, diferentemente do que ocorreu no ano passado, quando se desfez da maior parte da produção sem aproveitar os picos da cotação.

O dirigente lembra ainda que muitos agricultores acabaram fechando contratos futuros em 2020, para entrega do produto em 2021, antes do valor ter rompido a barreira dos R$ 60,00 em agosto.

Foi o caso de Edigard Monteiro, de Bossoroca. Ele vendeu antecipadamente parte da sua safra 2020/2021, a R$ 43,00 por saca, em maio do ano passado, quando não imaginava que os preços bateriam os R$ 80,00.

Monteiro conta que, de qualquer forma, tem expectativa de fechar este ano com maior rentabilidade do que no ciclo passado. Sua lavoura lhe proporcionará uma colheita próxima de 200 sacas por hectare, volume que só não será maior porque a seca da última primavera reduziu a produtividade, mesmo contando com pivô central para irrigação da área.

 

Hora da consolidação

Marcos Gomes da Silva, de Santa Vitória do Palmar, pretende escalonar a venda do arroz para aproveitar os melhores momentos indicados pelo mercado. | Foto: Mateus Silva

Depois do ajuste do preço do arroz ocorrido em 2020, após anos seguidos de valores defasados em relação aos custos de produção, entidades ligadas à cultura acreditam em cotações firmes ao longo de 2021. A saca se mantém hoje próxima de R$ 89,00, depois de ter atingido o pico histórico de R$ 106,34 em outubro do ano passado, segundo o Cepea. Com o início da colheita, em fevereiro, o preço poderá recuar diante da maior oferta de produto disponível no mercado, mas ficará longe dos R$ 49,00 praticados há um ano, avaliam especialistas do setor. “Não existem motivos para que o arroz baixe de preço”, acredita o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Estado (Federarroz), Alexandre Velho.

A afirmação do dirigente está baseada no patamar de preços internacionais do grão, que vêm se sustentando acima dos R$ 100,00; na valorização cambial, que promove a competitividade do arroz brasileiro; e também no fato de o produtor não ter ampliado a área plantada nesta safra.

A diretora executiva da Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), Andressa de Sousa e Silva, acrescenta que há baixos estoques no âmbito do Mercosul e que países que até então não demandavam arroz brasileiro passaram a fazer boas compras, como o México. “Temos que aproveitar o momento para consolidar novos mercados, até porque nosso produto é de alta qualidade”, destaca Andressa.

Com preços firmes, Velho explica que todos os produtores poderão aproveitar as cotações remuneradoras, uma situação que não foi possível em 2020. O dirigente estima que 80% dos arrozeiros comercializaram toda a safra 2019/2020 a cotações inferiores a R$ 70,00. Marcos Gomes da Silva, de Santa Vitória do Palmar, foi um dos produtores que negociaram a colheita passada a valores próximos de R$ 70,00. Mas, neste ano, pretende aumentar esta média, escalonando a venda durante os melhores momentos indicados pelo mercado. “Acredito em um ano mais promissor”, destaca. No atual ciclo, Silva decidiu não aumentar a área plantada e relata que continuará cauteloso em relação a novos investimentos, mesmo estando organizado em suas finanças.

O presidente da Federarroz defende esta precaução dos produtores. Lembra que, mesmo que a venda desta safra seja feita em cima de outro patamar de preço, a maioria dos arrozeiros ainda precisará de pelo menos mais três anos de boa rentabilidade para resolver seus problemas de endividamento. “Somente depois que isto acontecer é que voltarão a investir”, acredita Velho

 

Boas cotações e procura por sementes indicam nova expansão da área do trigo para o próximo inverno

A cotação da saca de trigo, que nos últimos quatro meses não baixou de R$ 76,00, se mantendo bem acima do preço mínimo de R$ 43,00, leva entidades do setor a projetarem um novo incremento da área plantada com a cultura em 2021. “O cenário é muito interessante, é de otimismo”, afirma o coordenador da Comissão do Trigo da Federação da Agricultura (Farsul), Hamilton Jardim. Em 2020, foram semeados 915 mil hectares, com acréscimo de 20% sobre a área cultivada em 2019 no Rio Grande do Sul.

Jardim estima que, neste ano, o trigo ocupará 1 milhão de hectares, tendência detectada a partir da alta procura por sementes neste momento. A explicação se dá pelos preços. Em 22 de janeiro, a saca chegou a ser negociada a R$ 83,00 no Estado, segundo o Cepea/Esalq/USP.

O presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias (Fecoagro/RS), Paulo Pires, compartilha da opinião de Jardim e lembra que os produtores têm condições de triplicar a área de trigo no Estado, tendo em vista a diferença da extensão da lavoura com a dos grãos cultivados no verão. “Temos um vasto campo para expandir, dentro das recomendações agronômicas”, destaca o dirigente. Pires acrescenta que a demanda global por alimentos e a valorização cambial, que “vem refletindo a realidade econômica”, tem favorecido a produção de grãos de forma geral. “A indefinição é o clima”, pontua, ao lembrar que, no ano passado, fortes geadas em agosto e a estiagem na reta final da safra prejudicaram a colheita, que estava estimada inicialmente em 3 milhões de toneladas pela Fecoagro e acabou com um volume de 2,2 milhões de toneladas, segundo a Conab.

 

De olho no custo e no consumo

Cadeia produtiva do leite enfrenta o desafio de equilibrar as despesas altas com a possível oscilação da demanda dos consumidores que ficarão sem o auxílio emergencial

Plantel de vacas foi renovado com o abate das mais velhas, puxado pelo preço do boi gordo, e entrada das mais jovens em lactação. | Foto: BRUNA KARPINSKI / DIVULGAÇÃO / CP

A cadeia leiteira, que inicia 2021 com preços melhores do que os registrados na largada de 2020, mas que é penalizada com altos custos de produção, está na expectativa para saber como se comportará o consumo das famílias brasileiras ao longo deste ano. Este ponto de interrogação surge a partir do fim do auxílio emergencial dado pelo governo federal, que ajudou a elevar o consumo de leite UHT e queijo muçarela entre as pessoas com menor poder aquisitivo, fator que pesou para firmar os preços da cadeia no ano passado. Mesmo com a entrada dos lácteos importados em volumes expressivos a partir de setembro de 2020, as cotações internas não despencaram. O valor projetado para o litro de leite em janeiro, pelo Conseleite, é de R$ 1,4391.

De forma geral, o secretário-executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados do Estado (Sindilat), Darlan Palharini, avaliou 2020 como um ano de recuperação de margem de rentabilidade para o produtor de leite médio e grande e também para as empresas, apesar dos valores que tiveram que despender para se adequarem aos protocolos sanitários impostos pela pandemia do coronavírus.

Para 2021, Palharini imagina que a cadeia continuará impactada pelos custos produtivos. Por outro lado, diz enxergar mudanças na estrutura do setor, com a entrada de vacas mais jovens para lactação, depois de muitos produtores terem encaminhado para o abate animais com mais idade, um movimento puxado pelo preço do boi gordo. “Acredito que este descarte de animais, que aconteceria nos próximos anos, foi antecipado, e isto é positivo para melhoria do plantel”, aponta Palharini.

Para o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag/RS), Eugênio Zanetti, a preocupação continua sendo com os custos de produção e a baixa disponibilidade de alimentação para o rebanho leiteiro, em função das estiagens de 2020, que reduziram a produção de silagem e pastagens.

Zanetti diz acreditar em estabilidade de preços ao produtor nos primeiros meses deste ano, já que uma redução não seria suportada pelos pequenos, que não tiveram uma boa margem de rentabilidade no ano passado. “Sobrou menos renda em 2020 do que em 2019”, calcula. Além de torcer para que o consumo de lácteos no Brasil seja favorável neste ano, Zanetti diz que a cadeia espera menos importação de produtos e políticas de proteção aos agricultores familiares, a exemplo do que ocorre nos principais países produtores de leite.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895