O brasileiro é ‘gamer’, mas não sabe

O brasileiro é ‘gamer’, mas não sabe

Pesquisa revela que 74,5% dos brasileiros são considerados entusiastas aos olhos de um mercado que movimenta mais de R$ 2 bilhões ao ano no país

Por
Carlos Corrêa

Vamos começar esta matéria de forma diferente. Em vez de eu lhe apresentar uma informação, façamos um teste bem rápido: por um breve momento, você aí do outro lado, tente criar uma imagem do que pensa ser o perfil do usuário de jogos eletrônicos. Não precisa pensar muito, deixe apenas vir à tona suas impressões gerais e como você descreveria alguém que consome games. Pronto? É bastante provável que a sua resposta coincida com uma imagem comum: a de um adolescente, muito provavelmente um menino, que passa horas em frente à televisão jogando videogame em casa. É ainda mais provável que, caso eu pergunte se você por acaso se identifica como gamer a resposta seja “não”, talvez seguido de um sorriso como quem diz: “Eu? Imagina, bem capaz”. Pois bem, agora podemos chegar à parte da informação: existe uma tendência bem grande de que, desculpe, você tenha errado as respostas. Inclusive a que diz respeito a você. É, isso mesmo.

Desenvolvida desde 2013 pelo Sioux Group e Go Gamers, em parceria com a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e a Blend New Research, e obedecendo aos mesmos padrões do IBGE (este ano foram mais de 13 mil entrevistados entre fevereiro e março de 2022), a Pesquisa Game Brasil anualmente divulga o perfil do usuário de jogos eletrônicos no país. E, ano após ano, o resultado desmitifica a imagem do nerd solitário escondido atrás de uma tela. A começar pelo fato de que 74,5% dos brasileiros consomem jogos eletrônicos, o maior índice dos últimos quatro anos. Na prática, isso significa que, aos olhos do mercado, três quartos da população brasileira é gamer. Este é o momento em que você talvez pense: “Tudo bem, pode ser, mas ainda assim, isso não me inclui”. Talvez de fato não, se você fizer parte dos 25,5% que não se interessam pelos games. “Nem videogame tenho”, pode ser o argumento seguinte. Mas aí será a minha vez de perguntar: “Nem um joguinho de celular para passar o tempo em casa? Nem uma jogadinha em um Candy Crush enquanto está no ônibus, na sala de espera ou na fila do banco?”. Joga, né? Pois então, aos olhos do mercado, você também é gamer. “Nem todo mundo se assume gamer, mas todo mundo joga. E, para a indústria, todos são muito importantes. Metade tem um envolvimento maior, mas a outra parcela não é menos importante. São pessoas que dedicam horas, que consomem muito, mas sem tanto envolvimento, sem vestir a camisa. Esse é o público que potencializou os jogos no celular”, explica Carlos Silva, coordenador da Pesquisa Game Brasil.

O ponto de virada que possibilitou a massificação desta indústria, que, somente no ano passado, movimentou 2,3 bilhões de dólares (R$ 11 bilhões) no Brasil e 183 bilhões de dólares (R$ 881,9 bilhões) no mundo, passa necessariamente pela popularização e evolução tecnológica dos aparelhos celulares. E, de quebra, desmitifica mais estereótipos. O primeiro é que a plataforma mais utilizada para jogos eletrônicos são os consoles, como Playstation e Xbox, ou os computadores. Não são. Hoje, no Brasil, os smartphones lideram com folga, sendo os preferidos de 48,3% dos entrevistados, mais do que o dobro dos consoles (20%) e dos PCs (15,5%). Os números casam com os dados de faturamento. No ano passado, os games para mobile foram responsáveis por 47% do valor movimentado no país no setor de jogos eletrônicos, seguido de 29% dos consoles e 24% dos PCs. Neste aspecto, são dois os motivos principais. O primeiro, claro, é financeiro. Os consoles de ponta da última geração - Xbox Series X e Playstation 5 - não saem por menos de R$ 4,5 mil no Brasil, mas mesmo os da geração anterior estão na faixa de R$ 2 mil ou mais. Já os celulares, mesmo alguns modelos mais simples, conseguem dar conta da maioria dos jogos para eles projetados, até mesmo pelo perfil de serem games mais casuais, sem tantas especificações técnicas. “O smartphone mudou muito o cenário. Democratizou o consumo de jogos, tem muita coisa gratuita e é um aparelho que todo mundo tem na mão. O mesmo aparelho que você usa para se comunicar também usa para jogar”, observa Silva.

Ao expandir as possibilidades de público, o celular distribuiu os jogadores em grupos que antes eram inimagináveis. Os dados da Pesquisa Game Brasil na divisão por classes sociais evidenciam isso: o maior consumo se dá na Classe C (38,6%), seguida da B (36,4%), A (13,5%) e D e E (11,6%). Não é difícil imaginar que a distribuição seria outra caso dependesse apenas de consoles ou computadores que partem de R$ 2 mil. Outro índice que evidencia a democracia propagada pelos smartphones no cenário dos games é a divisão por faixas etárias. O estereótipo de que se trata de diversão apenas de adolescentes cai por terra quando se percebe o equilíbrio entre as idades (ver gráfico na página seguinte). “Há cinco anos, minha mãe não jogava nenhum tipo de game. Hoje, aos 79 anos, ela é gamer. Se ela se considera ou não, não sei, mas ela é, joga todos os dias”, aponta Gláucio Marques, CEO da Level Up, empresa que atua no desenvolvimento de produtos e na negociação com canais alternativos para a distribuição de jogos. “O mercado não olha apenas para aquela fatia do gamer hardcore. Hoje, todo mundo é jogador em potencial.”

O segundo aspecto está ligado à facilidade. Os primeiros videogames, nos anos 1980, tinham um controle que consistia em um manete e um botão. Com o tempo, consoles e jogos ficaram mais complexos. Os controles, por óbvio, também. Os modelos atuais têm 12 botões, dois pequenos manetes (que também podem servir de botão) e mais um direcional em forma de cruz. Ótimo para os jogadores mais habituados, péssimo para quem procura diversão casual. “Quando os controles ficaram mais complexos, meu avô já não jogou mais”, exemplifica Everton Vieira, presidente da Associação de Desenvolvedores de Jogos Digitais do RS (ADJogosRS). “Quando surgiu o Nintendo Wii (console da Nintendo, lançado em 2006), se quebrou um paradigma da interface e trouxe meu avô de volta, porque eram jogos simples, mais acessíveis. Em paralelo, o celular fez um serviço absurdo quando surgiram os jogos por meio do toque na tela. Ali deu um salto, quadruplicou. O que o Wii e os smartphones revelaram é que existia um público muito maior do que a indústria podia imaginar, que tinha muito mais gente jogando”, explica ele, citando ainda o surgimento da App Store, a loja digital de jogos da Apple, em 2008, como outro marco na expansão dos games.

O sucesso dos jogos casuais não significa que quem joga no smartphone não é contemplado por games mais complexos. Ciente de que há uma demanda para vários gêneros, as empresas investem e tem sido comum a adaptação de sucessos para a plataforma mobile. Marcas conhecidas como Call of Duty, Fortnite e Fifa estão disponíveis para quem procura um nível de desafio maior. Há também aqueles casos de jogos mais complexos e lançados apenas para celular. No Brasil, o exemplo mais famoso talvez seja o Free Fire, game gratuito de tiro que se popularizou justamente por ter especificações técnicas compatíveis mesmo com modelos mais simples de celular. As constantes ações de marketing incluem a recente participação da cantora Anitta, que se tornou personagem jogável, lançou uma música exclusiva para a parceria e ainda será a madrinha da Taça da Patroa, campeonato voltado ao público feminino que começa neste final de semana, vai até junho e distribuirá R$ 10 mil às vencedoras.

Para além da interpretação da indústria, há outros motivos que talvez expliquem por que a Pesquisa Game Brasil indica que 74,5% dos brasileiros sejam gamers aos olhos do mercado, 84,4% admitam que jogos eletrônicos estão entre suas principais formas de diversão, mas somente 50,4% se considerem entusiastas. “A gente tem um problema complicado, porque os meios de comunicação contribuíram para reforçar alguns estereótipos. Se a gente para e pensa, sempre o nerd teve essa imagem negativa, então parte do público reforça isso. Prefiro não chamar ‘o’ gamer, porque são vários públicos dentro de um público. Infelizmente, o nerdão que fica atrás da cadeira gamer vira o cara do pôster, quando na verdade têm públicos mais representativos", afirma o professor e pesquisador da PUCRS André Pase.

Mulheres são a maioria entre o público dos jogos eletrônicos


Diversidade nos jogos ainda está longe do ideal e número de personagens femininas ainda é pequeno na comparação com protagonistas masculinos. Foto: Warner Bros. Home Entertainment / Divulgação

Há outro dado da pesquisa que vem se repetindo ano após ano, mas que ainda gera um estranhamento para quem não é afeito, digamos, à bolha gamer. Trata-se do percentual de mulheres que consomem jogos eletrônicos: 51%. Para quem sempre teve como imagem padrão do jogador um menino adolescente, é mais um estereótipo que cai por terra baseado em fatos, não suposições. O índice é ainda maior (60,4%) quando falamos apenas de jogos para smartphones. “O público feminino não está de passagem, é sólido, consistente e está crescendo também em outras plataformas como console e PC. Mas no celular potencializou esse aumento e essa potência de consumo é muito sólida. As mulheres realmente gostam e consomem. A indústria precisa entender esse público e ter um conteúdo mais representativo para entregar”, avalia o coordenador da Pesquisa, Carlos Silva.

E aí talvez comecem alguns problemas que, se melhoraram nos últimos anos, ainda estão longe do ideal. A começar pela questão da representatividade, seja nos jogos, seja nos estúdios. “Eu jogo há 25 anos e sempre que tinha uma personagem feminina, é com ela que eu jogava. No Mortal Kombat, por exemplo, eu sempre jogava com as lutadoras. Sempre que tiver a alternativa feminina, eu pego, é o que está me representando”, afirma a produtora de jogos Luísa Cecília da Silva Pinto. De acordo com ela, que trabalha no Hermit Crab Game Studio, em Porto Alegre, é possível perceber um aumento na diversidade entre quem trabalha no meio, ainda que, por exemplo, seja mais difícil encontrar professoras no ambiente. Luísa explica que só com uma variedade maior de perfis dentro dos estúdios é que isso vai reverberar nos games. “Eu gosto de ver o Kratos (personagem de God of War), não fico chateada nem nada. Mas quanto mais gente diferente tu colocares nos estúdios, mais olhares vamos ter, isso se reflete no teu produto”, lembra. Luísa participa de ações de fomento à entrada de meninas no mercado de jogos eletrônicos, como a Women Game Jam, uma maratona de desenvolvimento de jogos voltada apenas ao público feminino. A ideia do evento surgiu justamente do pouco número de mulheres na comparação com homens em encontros do gênero. “Tendo uma versão feminina era um ambiente mais seguro. Isso serve de porta de entrada, isso é representatividade, ver outras pessoas iguais a ti”, observa a produtora, que também é uma das coordenadoras da edição gaúcha do Women Game Jam.

Mas ainda há o problema da toxicidade da comunidade. Bruna Penilhas joga videogame desde pequena. É jornalista e trabalha na área, tendo passado por alguns dos principais veículos especializados do Brasil. Tem, portanto, experiência de sobra. O que não significa que, ao fazer determinada crítica de um jogo, não sofra contestações que seus pares masculinos provavelmente não sofreriam. Neste aspecto, diz ela, a comunidade mais tóxica está nos jogos de computador. “Jogo mais nos consoles e quando vou para o multiplayer, é com meus amigos. Mas acompanho relatos horríveis de amigas, de jogadoras, publicando todo o machismo que elas sofrem jogando videogame, principalmente no ambiente on-line. Sempre somos questionadas se gostamos mesmo de jogar. Para muitos caras, as mulheres ou só jogam games casuais como Candy Crush ou então porque querem pagar de descoladas”, revela. O ponto positivo, segundo Bruna, é que cada vez mais as empresas têm se empenhado em combater o preconceito e o machismo.

A visão de que o ambiente de jogadores on-line no Brasil é tóxico e machista talvez encontre mais respaldo nos gritos do que nos números. “Têm coisas que a comunidade negativa é muito vocal e muito tóxica. Tem muita coisa boa acontecendo também, mas essas pessoas falam menos, por isso que sempre que tiver uma oportunidade de falar de games, vou falar. Sempre que puder servir de ponto de entrada para as meninas, de referência, de ver que é possível entrar ali, vou falar”, aponta Luísa. Logo depois, ela mesmo conta como a visão de que mulheres não gostam dos games ainda povoa o imaginário geral. A produtora lembra que procurava um determinado tipo de teclado para comprar quando chegou a uma loja e ouviu do vendedor: “O único que eu tenho aqui é gamer, acho que tu não vais gostar”. Justo ela, que não só gosta, como participa da produção de jogos.

Mercado de games cresceu durante a pandemia de Covid-19


Lançado em 2015 pelo estúdio Aquiris, Horizon Chase mantém atualizações constantes do jogo, incluindo uma pista inspirada em Porto Alegre, com direito a Kleiton & Kledir como trilha. Foto: Reprodução / CP

O impacto da pandemia da Covid-19 foi avassalador ao redor do mundo em uma série de setores. O isolamento social alterou padrões e atingiu igualmente mercados tão díspares como construção civil e cultura. Para outros, no entanto, o saldo foi diferente. Restritas a suas casas, muitas pessoas começaram a utilizar os jogos eletrônicos mais do que antes. Para a Pesquisa Game Brasil, 41,7% dos entrevistados disseram ter jogado mais durante este período. Outro número, contudo, é ainda mais importante para a indústria: 49,4% admitiram ter gasto mais dinheiro com jogos digitais durante o período de isolamento social. Para a surpresa de ninguém, à medida em que as restrições de circulação ficaram mais brandas, alguns índices apresentaram queda. Ainda assim, a curva indica não só consolidação do mercado, como tendência de crescimento. E, de novo, os smartphones têm papel decisivo. “A quantidade de jogadores vai continuar crescendo a médio prazo e aumentar progressivamente. Existe um ponto importante aí que é o advento do 5G. Não se sabe quanto tempo vai demorar para a população em geral ter acesso, mas estimamos que em dois anos vai crescer muito, vai melhorar a conexão, taxa de download. E também porque as empresas de games estão trabalhando cada vez mais em jogos de celular”, afirma Gláucio Marques, da Level Up.

Há um indicativo bem recente que corrobora essa última afirmação. A Take-Two é uma das maiores desenvolvedoras e distribuidoras de jogos do mundo. Basta dizer que em seu catálogo está a Rockstar, o estúdio por trás de GTA 5, o jogo que é o produto mais rentável da história do entretenimento, superando qualquer filme, livro ou show. Lançado em 2013, o game já faturou cerca de 6 bilhões de dólares. Para efeitos de comparação, a maior bilheteria da história do cinema é “Avatar”, com 2,7 bilhões de dólares. Pois bem, nesta semana, a Take-Two desembolsou 12,7 bilhões de dólares e concluiu a compra da Zynga, outra gigante do setor, especializada em... jogos para mobile. 

Já que estamos falando de números, cabe uma outra comparação para que se tenha ideia dos valores que circulam nesta indústria. Há poucos dias, o mundo viu com os olhos arregalados o bilionário Elon Musk oferecer nada menos que 44 bilhões de dólares pelo Twitter, uma das redes sociais mais difundidas no planeta. Bem, no ano passado, empenhada em aumentar sua cartela de estúdios, a Microsoft (que desenvolve o Xbox) ofereceu a bagatela de 68,7 bilhões de dólares pela Activision Blizzard, responsável por algumas das franquias mais lucrativas dos games, como a série de jogos de tiro Call of Duty. A negociação é tão gigante que ainda carece de aprovação nos Estados Unidos para que se assegure que ela não configura monopólio.

Ao citar cifras astronômicas, convém também lembrar que apesar de ser uma indústria em crescimento e que mesmo no Brasil já se mostra sustentável, ainda existem obstáculos a serem vencidos, principalmente para os pequenos desenvolvedores. Há alguns anos, lançar um jogo era um desafio por si só. Hoje em dia, é preciso ir além e a luta diária é para encontrar meios de monetizar o produto. “O grande desafio de um jogo é a retenção. O marketing traz pessoas, mas quantas continuam jogando?”, questiona Gláucio Marques. Ele segue: “Tudo vai depender de quanto você consegue criar elementos que o jogador se identifique naquele jogo. Trazer um megassucesso da China não significa que vai dar certo aqui. Agora, se trouxer esse jogo e fizer um calendário de atualizações com elementos que se identifique, tudo muda. Free Fire, por exemplo, vai ter a Anitta. Se tiver esses elementos, vai ser rentável. Se não investir e tiver esse engajamento, aí a possibilidade de se pagar é menor”.

A briga para reter o jogador é ainda mais acirrada quando se leva em conta que o modelo mais frequente de jogos de sucesso para mobile são os chamados free-to-play (grátis para jogar). Como o próprio nome indica, são jogos gratuitos que colocam à venda determinados elementos dentro do game, que podem variar desde a roupa ou a arma do personagem até um novo nível de dificuldade. O problema é que a imensa maioria dos jogadores fica na gratuidade mesmo. “O free-to-play requer um investimento muito maior do desenvolvedor porque ele precisa considerar que uma parcela muito pequena - entre 1% e 3% - dos jogadores que gostarem do seu jogo, vão efetivamente gastar dinheiro nele. Ou seja, você precisa conquistar uma audiência na casa dos milhões de jogadores para que a receita deste pequeno percentual comece a se tornar relevante. E conquistar essas audiências grandes é um dos maiores desafios na nossa indústria”, afirma Sandro Manfredini, sócio e diretor de negócios da Aquiris, o maior estúdio de games do Estado e um dos principais do país.

Perspectiva de inovação


Sucesso no Brasil, jogos como o Free Fire utilizam estratégias de marketing como o lançamento de atualizações. Uma das mais recentes tornou a cantora Anitta um personagem jogável. Foto: Garena / Divulgação

Da mesma forma que a Netflix e o Spotify revolucionaram, respectivamente, as indústrias cinematográfica e musical, é grande a possibilidade de que uma mudança de paradigma deste tamanho também já esteja em curso, ainda que inicialmente, no universo dos jogos. Em 2017, a Microsoft lançou o GamePass, um plano de assinatura de jogos à época voltado para o seu videogame, o Xbox. Além de ofertar quase 200 games, o atrativo era a certeza de que todos os lançamentos do console estariam garantidos, sem custo adicional, para os assinantes no dia do seu lançamento. Não demorou e expandiu o catálogo também para computadores. Logo a Apple e o Google seguiram o modelo e também implementaram assinaturas para os jogos mobile em suas lojas virtuais. Faltava ainda a Sony, fabricante do Playstation. Não houve como resistir e neste mês a empresa japonesa também lançou a sua assinatura, repaginando a PS Plus. Para os desenvolvedores, o caminho é inevitável. "É fato, vai consumir quase que por completo o modelo de distribuição. Não digo 100%, mas boa parte do mercado vai estar sob assinaturas. Agora, se isso é bom ou ruim, o mercado vai ter que se ajustar", pondera Everton Vieira. "É uma questão de tempo até todos se adaptarem a esse modelo", completa Ivan Sendin, sócio e fundador do estúdio gaúcho Epopeia Games.

Se até os anos 2000, a experiência do jogo eletrônico era individual ou dividida de forma presencial com os amigos, as últimas duas décadas testemunharam uma curva acentuada. A Internet possibilitou que um mesmo game fosse compartilhado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo. A evolução foi tamanha ao ponto que hoje há jogos de tiro que reúnem mais de 100 jogadores on-line numa mesma partida. Mas mais do que isso, o conteúdo dos games passou a ser consumido sem que a pessoa necessariamente esteja jogando. É cada vez maior a audiência em canais do YouTube ou de plataformas como o Twitch em que o jogador vira espectador, seja de algum jogo, seja de avaliações feitas por especialistas sobre os lançamentos mais recentes. Neste cenário, ganham peso os influenciadores. "É um ponto de contato muito importante. É ele quem está explorando o jogo em um primeiro momento, fazendo a análise, ajuda muito a formar opinião. Às vezes são jogos de R$ 300, então quem vai comprar quer saber a opinião antes para ver se vale a pena investir. Canais especializados também são importantes, mas o formador tem uma identidade, cria uma ligação. Ele pode ter um gosto parecido com o teu e essa opinião faz muita diferença", explica Carlos Silva.

O desenvolvimento da indústria de games no país não veio seguido de uma assinatura brasileira nos jogos. Em termos de qualidade, os estúdios brasileiros dão mostras cada vez maiores de que tem capacidade para competir com qualquer mercado. Os jogos na sua maioria, porém, ainda se parecem muito com os modelos de inspiração, leia-se os mercados norte-americano e asiático. O tema é justamente o que norteia um dos trabalhos do pesquisador André Pase, da PUCRS. Em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS (Fapergs), o professor analisa se existe uma identidade no jogo gaúcho. Os estudos indicam que, apesar de se produzir games no Rio Grande do Sul desde os anos 1990 - Guimo, da Southlogic, foi o pioneiro, em 1997 - faltam elementos que deem algum sentido de unidade ao que é produzido aqui. "Um fator que une muitos dos jogos brasileiros, mas não todos, é um humor autorreferente", cita Pase. "Não acredito que haja uma identidade brasileira (nos games desenvolvidos aqui), até porque a indústria de games é relativamente recente e todos nós, brasileiros, crescemos jogando os jogos desenvolvidos nos EUA e Japão, ou seja, nossas referências criativas são muito parecidas com a do resto do mundo", acrescenta Sandro Manfredini, da Aquiris.

Jogo traz como protagonista um gaúcho que quer voltar para os pagos


Para desenvolver o jogo Gaucho and the Grassland, equipe do estúdio gaúcho Epopeia Games estudou a obra do escritor Simões Lopes Neto, em especial o livro Contos Gauchescos, lançado em 1912. Foto: Epopeia Games / Divulgação

Se não unidade, ao menos identidade com a cultura local um jogo produzido no Rio Grande do Sul, e com previsão de lançamento para dezembro, promete ter. Gaucho and the Grassland, da Epopeia Games, como o nome sugere, terá como protagonista um gaúcho que viveu a infância nos campos, mas vai para a cidade e quando cresce, sente falta de algo e, segundo Ivan Sendin, fundador do estúdio, “percebe que tem que voltar para os pagos e suas origens, onde era feliz”. Ao retornar, o personagem percebe elementos da cultura mística gaúcha que vão fazer com que ele recupere as memórias com a natureza. Para transpor ao jogo a ideia original, os desenvolvedores estudaram a obra do escritor Simões Lopes Neto, em especial o livro “Contos Gauchescos”, lançado em 1912. Personagens como o Negrinho do Pastoreio e a Salamanca do Jarau devem aparecer. “O Brasil ainda consome muito a cultura dos outros, a gente ainda está aprendendo como lançar a identidade brasileira nos jogos”, conta Sendin, sobre como teve início o processo. “Queríamos fazer um jogo da cultura do nosso Estado, mas também pensando no consumidor final. O nosso desafio é pegar a cultura daqui e comunicar de uma forma universalizada para que os outros entendam”, prossegue, adiantando que por mais que o game tenha tradução para o inglês, expressões como “tchê” e “bah” serão mantidas.

Grande parte de Gaucho and the Grassland foi viabilizada por meio de um edital da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. À verba de R$ 100 mil, que corresponde a 40% dos investimentos, foram adicionados valores da própria Epopeia. Aproveitando o lançamento de games anteriores, o estúdio acredita ter adquirido conhecimento suficiente para metrificar as vendas. Baseado nesta experiência, Sendin adianta que é preciso vender 5 mil unidades para que o projeto passe a ser lucrativo, o que é esperado. O jogo sai para consoles e PC em dezembro, mas a ideia da Epopeia é disponibilizar uma versão prévia já durante a Semana Farroupilha - e depois do lançamento oferecer o jogo em escolas gaúchas, juntamente com um livro que aborde tanto a produção do game como as figuras místicas da nossa cultura.

A Epopeia Games, que conta com 11 profissionais espalhados entre Porto Alegre, Vale dos Sinos e a Serra, é um dos exemplos de como os estúdios gaúchos têm se desenvolvido e trabalham com metas ousadas para o futuro. “Queremos ser uma referência em desenvolvimento de games para a América Latina até 2030”, adianta Everton Vieira, presidente da ADJogosRS. Os números indicam que convém não duvidar do objetivo. Em 2013, os empregos diretos gerados pela indústria de games no Estado eram 133. No ano passado, foram 1..231, um salto de 825%. As receitas seguiram um caminho semelhante, indo de R$ 3,2 milhões para R$ 78,5 milhões. Em 2021, sete estúdios gaúchos tiveram faturamento superior a R$ 2 milhões. "Existe uma troca de informação absurda entre os estúdios aqui. A Aquiris, que é o maior estúdio do RS, troca informações com os menores direto. Todos estão preocupados em aquecer o mercado como um todo", garante Vieira.

A Aquiris, diga-se de passagem, é um case de sucesso por si só. Fundada em 2007, conta atualmente com um time de 184 profissionais. A sede principal é em Porto Alegre, mas há um time remoto espalhado por vários outros lugares do mundo. Inicialmente voltada para jogos do mercado publicitário, a empresa passou a produzir conteúdo para lançamento direto e desenvolveu games para marcas de renome internacional como Cartoon Network e Looney Tunes. Tem no currículo ainda um tremendo sucesso chamado Horizon Chase, um game de corrida que remete aos jogos de fliperama dos anos 1990. Lançado em 2015, segue com bons números de venda até hoje graças às sucessivas atualizações do jogo, que incluem uma pista inspirada em Porto Alegre - com direito a “Deu Pra Ti”, de Kleiton & Kledir como trilha - e uma expansão baseada na carreira de Ayrton Senna. Não por acaso, em abril deste ano, a empresa recebeu um polpudo investimento da Epic, uma das gigantes do mundo dos games, que deve colocar a Aquiris em outro patamar. “Essa parceria representa, em primeiro lugar, um reconhecimento a uma história de 15 anos e à qualidade dos jogos que desenvolvemos neste período. Em segundo lugar, representa uma nova etapa, em que vamos poder contar com a estrutura multinacional da Epic para lançar nossos futuros jogos, e atingirmos uma audiência ainda maior”, comemora Sandro Manfredini, sócio e diretor de negócios do estúdio.

A aposta alta dos desenvolvedores gaúchos também é resultado de uma estrutura que vem se consolidando com o tempo. O Rio Grande do Sul foi pioneiro em disponibilizar um curso universitário sobre jogos digitais, com a Unisinos, em 2008, o primeiro a ter uma pós-graduação relacionada em tema, com a PUCRS, em 2009, e também o primeiro a ter um projeto em parceria com o governo estadual por meio da Secretaria de Inovação e Cultura, o GameRS. Em 2021, com a presença do ex-governador Eduardo Leite, o projeto foi apresentado, focado na capacitação de profissionais. De lá para cá, um edital voltado para universidades já foi aprovado, contemplando a Feevale e a Universidade de Caxias do Sul (UCS), que iniciaram a construção de laboratórios de testes para os jogos, uma carência no cenário nacional. “Precisa ter essa cultura, a comunidade saber que é uma profissão. Parece bobo, mas muitos pais visitam as universidades com os filhos para saber se dá dinheiro, se é uma profissão séria. Sim, é uma indústria nova, mas já tem sustentabilidade bem significativa", explica Vieira.

Mais do que sustentável, a indústria de games no Estado (e no país) vai na contramão de vários outros setores da economia nacional. Se muitas profissões sofrem com os altos índices de desemprego, no meio de desenvolvimento de games, o que falta é mão de obra. "É uma coisa maluca: enquanto em vários setores tem escassez, sobram vagas na indústria de jogos, tem muita vaga aberta, mas precisa de um certo nível de conhecimento", afirma Pase. 

Curiosamente, o crescimento do mercado de games no país e de outras áreas ligadas aos jogos eletrônicos, como os canais de influenciadores e criadores de conteúdo independentes, não significou a alavancada de um mercado jornalístico especializado no tema. Não que não existam, mas atualmente é possível contar nos dedos de uma mão os sites relevantes sobre o assunto, todos eles localizados no centro do país. “Apesar do jornalismo de games ter crescido, ainda é limitado. Chega uma hora da carreira em que você já vai ter passado por todos os veículos, não tem mais pra onde correr. É muito fechado porque as redações ainda são muito pequenas”, explica a jornalista Bruna Penilhas.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895