O soro das cobras do RS

O soro das cobras do RS

Com a extinção da Fundação Zoobotânica, a atividade de coleta de peçonha para a produção de soro antiofídico foi paralisada.

Por
Gabriel Guedes

Opção de lazer de muitos porto-alegrenses antes da pandemia de Covid-19, o Museu de Ciências Naturais (MCN), situado dentro do Jardim Botânico, abriga o serpentário do Núcleo Regional de Ofiologia de Porto Alegre. No local, os visitantes conseguem ver de perto – e de forma segura – dezenas de cobras, muitas de espécies nativas do Rio Grande do Sul, como a jararaca-pintada-do-pampa, além de outras espécies semelhantes, como cruzeiras e cascavéis. Também há algumas não peçonhentas e de outros biomas, resultado de apreensões pelos órgãos ambientais ou repassadas por instituições de fora do Rio Grande do Sul. 

Quando foi criado, em 1987, o núcleo, também denominado pelo acrônimo Nopa, mantido pelo governo do Estado, não tinha finalidade de lazer e cultura. Além da pesquisa científica, o objetivo era realizar o pioneiro trabalho de extração da peçonha para fabricação de soros antiofídicos, em particular de espécies de serpentes presente no RS. Essa atividade foi executada até 2018, quando a Fundação Zoobotânica (FZB), extinta pela então gestão do governador José Ivo Sartori, teve as atividades incorporadas à atual Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema). Com a migração da gestão, alguns contratos foram encerrados, como o do convênio para processamento das substâncias fornecidas pelo Nopa. Desde então, as cobras já estão há mais de dois anos em “férias”. O descanso forçado, porém, pode ter prazo para acabar, uma vez que o serviço poderá ser retomado ainda em 2021.

Quando alguém é picado por um animal peçonhento, como uma cobra, para não morrer ou ficar com alguma sequela, a vítima precisa receber o quanto antes aplicação de anticorpo específico para anular o veneno inoculado pela serpente. Neste caso, o anticorpo é produzido com base na própria peçonha da espécie que provocou o acidente, que depois de processada, se transforma em soro antiofídico. No Brasil, o medicamento disponível na rede pública é produzido em pelo menos três locais: o Instituto Butantan, de São Paulo, o Instituto Vital Brazil (IVB), no Rio de Janeiro, e a Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Minas Gerais. Hoje, apenas a produção do instituto paulista é adquirida pelo Ministério da Saúde, que por sua vez, distribui a todos os estados. No RS, segundo a bióloga do Centro de Informações Toxicológicas do Rio Grande do Sul (CIT-RS), Kátia Moura, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) repassa os soros às coordenadorias regionais, que distribuem a cada um dos 19 hospitais que são referências para atendimento a acidentes ofídicos.

No início do Nopa, as substâncias extraídas das cobras tinham como destino o Butantan. Mas depois, no mais recente contrato de cooperação técnico-científica, firmado em 2008 e encerrado juntamente com o fim da FZB, a matéria-prima das cerca de 450 serpentes gaúchas, na época, respondiam por 50% da produção da Vital Brazil. Os animais eram de 13 espécies diferentes. Em 2017, uma tentativa de arrombamento no serpentário deixou o espaço da sala de exposições fechado ao público por aproximadamente um ano. Em 2018, eram mantidos cerca de 350 exemplares de 16 espécies e, atualmente, são apenas 175. 
A redução decorre de alguns animais que acabaram morrendo, outros que foram doados a instituições e alguns devolvidos à natureza. Mas há animais com bastante tempo de cativeiro, como uma jararaca-da-amazônia, que nasceu em 1997. Em uma ampla sala no subsolo do prédio do MCN, a maior parte da coleção fica abrigada individualmente em caixas, do tamanho de um forno micro-ondas e com tampa de vidro, e, algumas serpentes menores, em recipientes de plástico do tamanho equivalente a de duas caixas de sapatos juntas. Todas empilhadas como se fossem prateleiras. 

Cada “casinha” é forrada com papel-jornal e tem um pote com água. A exceção fica por conta das espécies maiores, como uma jiboia e uma cruzeira, que estão permanentemente em dois grandes espaços envidraçados na sala de exposições, que não estava recebendo visitantes em razão das restrições da bandeira preta do sistema de distanciamento controlado do governo do Estado. E, assim como gatos e cachorros, as cobras urinam e defecam e por isso é necessário limpar o espaço onde fica cada uma delas pelo menos duas vezes por semana. “Isso quando elas não viram o pote de água”, observa o biólogo Roberto Baptista de Oliveira, responsável pelos répteis. 

Os animais - não importa o porte - são alimentados a cada 15 dias com roedores de biotérios da Capital, como o do próprio Nopa e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), que doa os “alimentos” das serpentes. Porém, há exceções, uma coral-verdadeira, que na natureza se alimenta de outras serpentes e aqui tem alimentação especial. “Fazemos uma papinha com fígado batido, miúdos de frango e ovos”, acrescenta Oliveira. 

Desde o encerramento do convênio com a Vital Brazil, esta tem sido a rotina no serpentário do Jardim Botânico. “Temos bons tratos com os animais e eles recebem alimentação adequada. Todos os recintos foram reestruturados para que as cobras sejam mantidas vivas em boas condições”, defende o diretor do Departamento de Biodiversidade da Sema, Diego Pereira. 

Enquanto preparava uma demonstração da extração da peçonha de uma jararaca, o biólogo lembrava a razão da fundação do Núcleo Regional de Ofiologia de Porto Alegre. “No início dos anos 80, o Nopa foi demandado pelo Ministério da Saúde. Foi criado para uma estratégia de descentralização da produção do soro antiofídico”, recorda. A ideia do núcleo, de acordo com Oliveira, era obter o soro específico para agir contra picadas de cobras regionais. “Têm diferenças na peçonha entre cobras de uma mesma espécie, mas de regiões diferentes”, garante. Durante a vigência do contrato com a IVB, logo no início, chegou a ser iniciada uma análise da especificidade de soros antiofídicos frente aos venenos de espécies procedentes do Rio Grande do Sul, mas os resultados não foram amplamente divulgados na época. Porém, estudos em outras instituições do país confirmam que a composição do veneno pode variar de acordo com a idade do animal, distribuição geográfica e caráter individual das serpentes. A identificação de substâncias ativas nos venenos de serpentes e sua utilização na indústria farmacêutica também era outro objetivo no Nopa. Princípios isolados do veneno já eram utilizados naquela época, por exemplo, na fabricação de remédios reguladores de pressão e em colas biológicas. Mas ainda havia estudos indicando a possibilidade de sua utilização em remédios para o combate a alguns tipos de câncer e para problemas de coagulação sanguínea.

Pereira, diretor da Sema, afirma que a lei que extinguiu a FZB deixou como uma das obrigações a transferência das funções para a secretaria, entre elas manter o acervo do serpentário, os animais e também o armazenamento de amostras de peçonha, em líquido, que se encontram armazenadas em freezers. Mas ele lamenta, que durante o processo de transição, com a absorção das funções, processos e projetos tiveram que ser conduzidos de forma diferente e alguns foram cancelados por causa da diferença institucional entre a antiga fundação e a administração direta do estado. “O termo de cooperação com a Vital Brazil (IVB), na gestão anterior, não foi renovado. Mas agora estamos em tratativas com o mesmo instituto, para repactuar compromissos e ver de que forma podemos contar com o retorno destes trabalhos”, assegura Pereira. Conforme o diretor, a Sema ainda está estruturando os termos e não determinou um prazo preciso, mas ele espera que até o final deste primeiro semestre o governo gaúcho encaminhe o contrato à instituição, que pertence ao governo do Rio de Janeiro. “Isso é apenas para processamento do veneno, mas não há um custo para esta extração”, completa. 

CUIDADO ONDE SE PISA 

Dados do Centro de Informações Toxicológicas do RS, mostram que em 2019 houve 669 acidentes por serpentes no Estado. Entre as identificadas, 88%, ou 595 das ocorrências, foram causadas pelo gênero Bothrops, que compreendem as jararacas e cruzeiras, quatro foram por coral-verdadeira (gênero Micrurus) e uma por cascavel (gênero Crotalus). Seis espécies destes gêneros são as mais comuns, começando pelas próprias jararacas, cujo veneno pode causar coagulação do sangue ou hemorragia, necrose no local do ferimento e até levar a pessoa a sofrer amputações de membros e à morte. A jararaca-da-mata costuma ser bastante encontrada em matas fechadas, como na região da Serra Geral, no Litoral Norte. Já a jararaca-pintada-do-pampa tem distribuição mais restrita, sendo localizada nos campos da metade sul do RS e no Uruguai. A cruzeira também é uma espécie de jararaca encontrada em todo Estado, mas em áreas abertas e úmidas. Nas regiões mais montanhosas do Estado, ainda é possível encontrar a cotiara, mais uma variação de jararaca, mas de pequeno porte e que vive nas matas de araucárias. Ainda nestas regiões de campos pedregosos e secos do RS, há a cascavel. O veneno dessa serpente apresenta ação anti-inflamatória prolongada e os sintomas de envenenamento observados nas primeiras horas são mal-estar, suor excessivo, vômitos, sonolência ou inquietação. Por último, há a coral-verdadeira, comum no RS, Argentina, Uruguai e Paraguai, que é muito perigosa, pois o veneno inoculado na vítima se propaga rapidamente pelo organismo, atingindo o sistema nervoso. Como efeito imediato, a mordida causa formigamento no local do ferimento e em seguida, por causa da paralisia muscular, que afeta, por exemplo, o diafragma, pode levar uma pessoa à morte dentro de poucas horas. A recomendação geral do CIT, para se evitar acidentes com cobras, é usar botas de borracha até o joelho ou botinas com perneiras ao andar no campo ou mata. 

ORIENTAÇÃO DE PROFISSIONAIS 

Em junho de 2017, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o envenenamento por mordida de cobra em sua lista de doenças negligenciadas por causa do aumento de acidentes com serpentes, com mortes, e o fato de cada vez menos empresas farmacêuticas produzirem o soro antiofídico, gerando escassez do medicamento.

No entanto, no Rio Grande do Sul, conforme as estatísticas de 2019, não houve mortes causadas por animais peçonhentos. Apesar da constatação de diferenças entre as peçonhas de exemplares de uma mesma espécie, mas de regiões diferentes, Kátia, do CIT, garante que o Estado não sofre com falta de soro antiofídico e que todas as espécies presentes na fauna gaúcha e que mais causam acidentes estão devidamente representadas no estoque atual. “E temos uma ponta de estoque aqui (na sede do CIT), caso seja necessário, mas não somos nós que fornecemos regularmente às instituições”, acrescenta.

Instituído há 46 anos, o Centro de Informações Toxicológicas do Rio Grande do Sul (CIT-RS) é uma divisão do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), vinculada à SES, criada com a proposta de prestar assessoria e orientação frente à ocorrência de acidentes tóxicos no RS. Possui uma equipe multidisciplinar de profissionais – como médicos, médicos veterinários, farmacêuticos, biólogos e administradores - e de estudantes das diversas áreas biomédicas, que prestam auxílio a profissionais e instituições que precisam saber como proceder em caso de um acidente toxicológico. Desde quando começou a registrar os atendimentos, em 2005, até 2019, o CIT já prestou mais de 350 mil auxílios envolvendo também acidentes com outros animais, como aranhas, fungos, plantas, medicamentos, entorpecentes e produtos químicos. “Temos um plantão de emergência 24 horas por dia para casos de intoxicação. Funciona mais ou menos assim: no hospital tem, por exemplo, uma pessoa em coma por algum destes acidentes, o médico liga para o 0800-721-3000 para discutir o que fazer. Ele recebe a orientação de acordo com os sintomas ou identificação da fonte da intoxicação. Quem atende são estudantes de medicina ou veterinária, mas os procedimentos são validados pela equipe que supervisiona”, explica Kátia. 

Além do atendimento, o núcleo coordenado por Kátia, que é o de Toxinas Naturais, faz a identificação dos animais peçonhentos, conforme as características, e também por imagens. “Também mantemos animais vivos para treinamento com pessoal da saúde, no nosso laboratório de emergências”, destaca. Se há alguma dificuldade neste trabalho, nada impede o CIT de recorrer à equipe do Nopa. “Temos uma parceria informal com eles. Quando precisam identificar algum animal e não conseguem, eles nos contatam e tentamos fazer isso por aqui”, destaca o biólogo Roberto Baptista Oliveira, ligado à Sema. O CIT ainda auxilia os médicos veterinários nos procedimentos com animais também intoxicados ou vítimas de acidentes com serpentes. Em caso de problemas com cobras, a recomendação é lavar o local da picada com água e sabão e manter a vítima sentada ou deitada para não favorecer a circulação do veneno. Se a picada for na perna ou no braço, precisa mantê-los em posição mais elevada. Qualquer outra medida, como fazer um garrote, corte no local da ferida, aplicação de folhas ou colocação de pó de café no local é errado. Depois de levar ao atendimento médico, o contato com o serviço pode ser feito por qualquer pessoa e de qualquer lugar, bastando se identificar e relatar os sintomas da vítima. É necessário que se tenha uma ideia – ou, melhor ainda, a identificação - da fonte da suspeita de intoxicação. No caso de serpentes, é recomendável que se recolha o animal causador do acidente, para reconhecimento preciso. Isso é feito com um gancho ou um galho de árvore mais longo e resistente, para que se transfira o bicho para caixa de madeira ou de plástico, de tamanho adequado, com abertura (furos) para ventilação.

COMO É EXTRAÍDO O VENENO DE UMA COBRA

O biólogo Roberto Baptista de Oliveira, responsável pelo serpentário do Núcleo Regional de Ofiologia de Porto Alegre (Nopa), no Jardim Botânico da Capital, fez uma demonstração de como é o trabalho de extração do veneno de uma jararaca-pintada-do-pampa. 

1 | A cobra é retirada do seu alojamento por meio de uma haste com um gancho e colocada dentro de um grande recipiente, igual aos baldes utilizados como lixeira. O biólogo transporta o bicho e o põe dentro de um outro recipiente, de cor branca, que está preenchido com gás carbônico. A cobra permanece por cerca de 5 minutos e sai de lá sedada.

Foto: Ricardo Giusti

 

2 | Sobre uma mesa, Oliveira verifica se a cobra está adormecida. Com uma das mãos, ele segura o béquer - tipo de copo - e com a outra comprime as glândulas atrás da cabeça da serpente, posicionando os dentes dentro do béquer, que está coberto por um plástico-filme. Em seguida, ele faz uma leve pressão na mandíbula superior, para baixo, e as glândulas expelem a peçonha para dentro do recipiente. São coletados cerca de 10 mililitros (ml) por vez. 

Foto: Ricardo Giusti


3 | Encerrada a extração, o biólogo faz a higienização dos dentes e da gengiva do animal, além de verificar se não houve nenhuma lesão durante o processo. Em seguida, com a cobra já dando os primeiros sinais de que está despertando, a jararaca é devolvida ao balde utilizado no primeiro transporte. 

Foto: Ricardo Giusti


4 | Enquanto o animal fica sob observação após o efeito da sedação terminar, com o auxílio de uma micropipeta, Oliveira vai retirando a substância coletada do béquer e a transfere para um tubo eppendorf, ficando disponível para o laboratório processar a amostra. A cobra, já acordada, volta para sua caixa. 

Foto: Ricardo Giusti

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895