O tempo e a soja

O tempo e a soja

Estudo da Esalq/USP aponta que mudanças climáticas planetárias podem tornar maior o risco de quebra de safras, mas também aumentar a produtividade com consumo menor de água

Por
Danton Júnior

Na ordem do dia das lideranças globais, as mudanças climáticas contam com potencial para provocar transformações em diversos aspectos da vida humana. Não é diferente com a produção de alimentos, que deve sofrer as consequências do aumento da temperatura do planeta e da emissão crescente de gases do efeito estufa. No entanto, o cenário poderá trazer tanto mudanças negativas quanto positivas para o principal produto agrícola produzido pelo Brasil, a soja. É o que aponta uma recente pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), que teve seu resultado publicado no European Journal of Agronomy.

Intitulado “Avaliação do Impacto da Produtividade da Soja e da Água no Brasil Devido às Mudanças Climáticas”, o trabalho traçou uma estimativa para a produção da oleaginosa no país entre 2040 e 2069. “Os resultados indicam maior risco de quebra de safra, mas, ao mesmo tempo, observamos aumento de produtividade com consumo menor de água pela planta”, ressalta o agrônomo Evandro Silva, pesquisador do Grupo de Experimentação e Pesquisa em Modelagem Agrícola e Agrometeorologia (Gepea-Agrimet) e coautor do artigo.

O estudo foi conduzido por meio da instalação de nove experimentos em diversas regiões do país, com o objetivo de calibrar os modelos agrícolas, o que permite traçar uma estimativa do desenvolvimento da cultura em um determinado ambiente. Em seguida, foram selecionados 20 modelos de circulação global (GCMs, do inglês General Circulation Model), desenvolvidos por institutos internacionais, que projetam cenários de mudanças climáticas. A isso acrescentaram-se as estimativas de concentrações futuras de dióxido de carbono (CO²). Na sequência, foram feitas mais de 120 milhões de simulações para todas as regiões produtoras de soja do país, utilizando-se uma série de datas de semeadura recomendadas pelo Ministério da Agricultura. Por meio de um algoritmo, a semeadura virtual da soja ocorreu somente nos casos em que, por três dias consecutivos, houve um acumulado de chuvas superior a 20 milímetros.

O cenário mais provável aponta para o aumento na produtividade da soja em todo o país, apesar da elevação da temperatura e da redução do volume de chuvas. A conclusão da pesquisa é de que a concentração de CO² na atmosfera pode ocasionar um incremento de 1% a 30% na produtividade da soja, dependendo da região do país. No caso do Rio Grande do Sul, esse índice é calculado em 10% a 26%. “A elevação do CO² pode ter um efeito benéfico no sentido de otimizar a planta em termos de uso da água”, explica Silva. Isso se deve ao fato de que, por haver mais CO² na atmosfera, a planta consegue economizar água através da redução da condutância estomática, movimento de abertura e fechamento de estômatos. “Toda vez em que a planta abre e fecha estômatos, ela abre para absorver o CO² da atmosfera e libera vapor d’água. Então, uma vez que isso é diminuído, ela passa a liberar menos vapor d'água e se torna uma planta mais eficiente”, resume o pesquisador.

Já o efeito negativo está relacionado à menor disponibilidade de água, concomitante ao aumento da temperatura global. Com isso, a estimativa é de elevação no risco de quebra em diversas regiões do país. “Você passa a ter uma maior produtividade, mas um maior risco de quebra de safra”, observa Silva. Isso significa que, em alguns anos, a produção média de soja ficará abaixo de 2 toneladas por hectare - a produção média do Rio Grande do Sul, na última safra, foi de 3,4 toneladas, segundo a Conab. Porém, para o Estado, a projeção é de uma redução do risco, em torno de 5%, já que o território gaúcho não deve sofrer o mesmo impacto provocado pelo estresse hídrico em outras regiões do país.

A pesquisa também identificou mudanças no processo produtivo da soja. Ao mesmo tempo em que pode gerar maior volume de grãos, a lavoura deve ter o seu ciclo encurtado em cerca de dez dias, devido ao aumento das temperaturas. O estudo não chegou a analisar se haverá redução no uso de insumos.

Embora o risco para o Rio Grande do Sul seja considerado menor em relação a outras regiões, o Estado sofreu nos últimos anos com a falta de chuvas no verão, o que comprometeu a produção de grãos – especialmente na safra 2019/2020, quando a quebra da soja chegou a 45%. De acordo com Silva, os últimos eventos meteorológicos podem até ser uma consequência das mudanças climáticas, mas para confirmar isso seria necessário avaliar um período de pelo menos 30 anos. Embora lembre que “estiagens são fenômenos que ocorrem com ou sem mudanças climáticas, estas passariam a atenuar e intensificar mais esses eventos extremos, tornando-os mais frequentes”, acredita o responsável pela pesquisa. Ainda assim, fica o alerta para outras culturas que são ainda mais sensíveis ao estresse hídrico, como é o caso do milho - no ciclo 2019/2020, as lavouras apresentaram uma quebra de 30% no Rio Grande do Sul. Um outro estudo, direcionado ao grão, chegou a ser conduzido, apontando que, apesar do incremento de CO² na atmosfera, a tendência é de diminuição da produtividade de milho no Brasil. “Então apesar do efeito benéfico de CO² na redução da condutância estomática, o milho apresenta sensibilidade muito maior”, observa o agrônomo.

O resultado da pesquisa não significa que o impacto das mudanças climáticas seja inevitável. Silva ressalta que as práticas conservativas de solo podem agir no sentido de diminuir o risco de quebra. Porém, ele alerta para o fato de que, mesmo quando há um bom perfil de solo, com cobertura e raízes bem desenvolvidas, esse manejo pode não ser suficiente para fazer frente a períodos prolongados de estiagem. Uma alternativa é acrescentar a irrigação a estas práticas, o que, somado ao desenvolvimento de cultivares mais resilientes a períodos de estiagem, pode contribuir para alcançar a redução de insumos no sistema produtivo. “Quando você tem um sistema de irrigação e tem essas práticas conservacionistas, você passa a demandar menos água”, exemplifica.

Impactos diferentes

Produtor pode aproveitar as consequências positivas das mudanças climáticas, mas deve se preparar para as negativas com manejo mais preciso e inovação tecnológica

Embora o aquecimento global traga consequências positivas e negativas para a agricultura, os pontos positivos hoje levam uma ligeira vantagem. Quem afirma é o professor Alencar Junior Zanon, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que coordena a equipe Field Crops e é coautor do artigo publicado no European Journal of Agronomy. A universidade gaúcha participou da pesquisa avaliando o desempenho de lavouras de soja e traduzindo-o para modelos matemáticos.

Zanon explica que, no momento em que temos mais CO² na atmosfera, aumenta-se o substrato primário da fotossíntese, o que é bom para o cultivo da soja, mas pode ser ruim para outros grãos. A parte ruim é que, quanto maior a concentração de CO² na atmosfera, maior é a temperatura, por ser um gás de efeito estufa – o que por sua vez pode reduzir a produtividade da oleaginosa.

“Se intensificarmos nossos sistemas de produção, conseguiremos reduzir significativamente a parte ruim do aquecimento global”, acredita. As práticas recomendadas incluem semear a lavoura na época correta, escolher a cultivar certa, compreender a fisiologia da planta, fazer a adubação dos diferentes nutrientes no melhor período e executar a intervenção com herbicidas somente quando necessário, e não mais como um pacote tecnológico. “Ou nós tomamos jeito e fazemos uma agricultura mais ambientalmente amigável, ou vamos ter sérias complicações”, alerta Zanon.

Em termos de risco de quebras, o Rio Grande do Sul está em uma situação mais favorável, já que na maior parte das regiões produtoras a previsão é de redução no volume de chuvas. “Então se tivermos ‘caixa d'água’ para a armazenagem, o impacto vai ser menor”, observa Zanon, ressaltando que a tendência é de chuvas mais intensas e mal distribuídas. Uma das práticas que devem ser adotadas de modo a minimizar esse impacto é o uso de plantas de cobertura. Porém, o impacto do clima pode ser diferente conforme a área do Estado. O especialista explica que, em razão da sua constituição, o solo da Metade Norte consegue armazenar até 100 milímetros, enquanto o da Metade Sul não retém mais de 40 milímetros.

Se a concentração de CO² pode beneficiar a soja, outros cultivos agrícolas importantes no país não estão na mesma situação. No caso do milho, planta mais sensível ao estresse hídrico, o sinal vermelho está ligado, segundo Zanon, uma vez que as chuvas tendem a ter uma pior distribuição. “Na atualidade, 50% da perda de produtividade da lavoura de milho no Brasil é oriunda de déficit hídrico. Realmente é muito preocupante”, resume. Já o arroz – cultivo em que o Rio Grande do Sul é responsável por 70% da produção nacional – também deve ser beneficiado.

​Coordenada pelo professor Alencar Junior Zanon, da UFSM (à frente na foto), equipe Field Crops participou da pesquisa avaliando o desempenho de lavouras de soja e traduzindo-o para modelos matemáticos. Foto: Alencar Junior Zanon / UFSM / Divulgação / CP

Para o agrometeorologista Gilberto Cunha, da Embrapa Trigo, dois eventos recentes demonstram que a outrora discutida participação da ação humana no aquecimento global não é mais passível de questionamento. Uma delas é o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que mostrou que a influência humana é responsável por uma alta de 1,07°C na temperatura global e que isso poderá crescer até a 2°C se não houver redução nas emissões de gases de efeito estufa. O outro é a escolha de três cientistas que trabalharam na construção de dados e projeções climáticas futuras para o Prêmio Nobel de Física 2021.

No Brasil, país de dimensões continentais, o aumento da temperatura é um fato já assegurado, porém o funcionamento do regime de chuvas pode variar de região para região. De acordo com Cunha, as projeções sinalizam um ambiente mais úmido, especialmente na primavera, no Sul, enquanto que a tendência é de redução de chuvas no Centro do país, o que não significa que o Sul esteja livre do risco de estiagens. Segundo o pesquisador, com temperaturas mais altas “há uma tendência de aceleramento do ciclo das plantas”, provocando maior precocidade. Já a ocorrência de um volume de chuvas maior, especialmente na primavera, traz preocupação para a produção dos cereais de inverno, principalmente no que se refere a doenças de espiga.

“A mudança no clima não pode estar ligada necessariamente a uma catástrofe para a agricultura, mas há a necessidade de inovação tecnológica para suportar as novas condições de ambiente”, detalha Cunha. Segundo o agrometeorologista, os impactos não foram tão sentidos nos últimos anos em razão da grande evolução obtida na tecnologia de produção, tanto na genética das cultivares quanto em práticas de manejo e conservação de solo. Para fazer frente às mudanças climáticas, Cunha ressalta que ainda é necessário investir cada vez mais em inovação tecnológica e na ampliação da seguridade rural. 

Sustentabilidade e segurança

O agricultor Geovano Parcianello, de Alegrete, foi um dos primeiros a receber o Selo Ambiental do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), iniciativa que visa reconhecer práticas que promovam a sustentabilidade e a produção de alimentos seguros. Produtor de soja e arroz e criador de bovinos de corte no Condomínio Agropecuária Parcianello, do qual participam também seu pais, Arlindo e Carmem, e os irmãos, Joacir e Maristela, ele acredita que o equilíbrio entre produção e meio ambiente é a chave para o sucesso na atividade. “Se fizermos uma agricultura simplesmente exploradora, não vamos ter viabilidade econômica num curto período de tempo”, resume.

Desde que se estabeleceu em Alegrete, em 2002, Parcianello passou a desenvolver práticas como o plantio direto, rotação de culturas com a soja (que foi introduzida em 2012), cultivos de inverno, integração lavoura-pecuária e armazenagem de água.

Engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal de Santa Maria, com mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Parcianello acredita que os insumos biológicos estão entre as grandes tendências do futuro, de modo a reduzir a carga de agroquímicos e fertilizantes nas lavouras. “Vamos ter que começar a trabalhar em cima disso para tentar otimizar os recursos que temos, não perder a qualidade e ampliar a sustentabilidade”, prevê.

Geovano (à esquerda), Joacir, Maristela e Arlindo trabalham em condomínio familiar que adota práticas como plantio direto, rotação de culturas, cultivos de inverno e integração com a pecuária. Foto: Arquivo Pessoal.

Apesar da estiagem recente, Parcianello acredita que o cenário climático hoje é melhor do que no passado. Uma mudança neste sentido, segundo ele, é o fato de que a região conta com uma cobertura verde cada vez maior. Até mesmo as secas prolongadas, de até 60 dias, diminuíram – com exceção do ano passado. “Talvez o hemisfério subtropical tenha uma melhoria”, diz, referindo-se ao impacto das mudanças climáticas no campo.

As intempéries deixaram marcas na propriedade de Parcianello. A estiagem de 2019/2020 provocou uma perda de 20% no volume de produção da soja e do arroz. Para o ciclo 2021/2022, ele destinou 1,1 mil hectares para a orizicultura e 550 hectares para a sojicultura – dos quais 250 contam com irrigação por pivô. Outros mil hectares são ocupados por bovinos das raças Angus e Brangus. Nos últimos dias, o problema tem sido o excesso de chuvas, em plena época da semeadura. O nível dos reservatórios está em 100%, mas as precipitações recentes já estão provocando atrasos na semeadura. Até a metade de outubro, o plantio da soja ainda não havia iniciado.

Conservacionismo mitiga os efeitos das mudanças

Quando se estabeleceu em Cacequi, vindo de São Gabriel, há sete anos, o agricultor Paulinho Meneghetti ouviu comentários de que a região era muito seca, o que o deixou assustado. Mas o temor não se confirmou e a produtividade tem sido cada vez maior, tanto no arroz quanto na soja. O produtor acredita que, adotando práticas conservacionistas, é possível mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas.

Lavouras de soja e arroz de Meneghetti seguem os preceitos de uma agricultura de baixo impacto ambiental. Foto: Arquivo Pessoal.

Na propriedade de cerca de 420 hectares, Meneghetti procura fazer um bom manejo de solo, melhorando sua fertilidade e evitando o desperdício de água. Soja e arroz são cultivados em sistema de rotação, com metade da propriedade destinada a cada cultura. O trabalho na lavoura segue os preceitos de uma agricultura de baixo impacto ambiental. O objetivo é utilizar o mínimo de fungicidas e inseticidas possível. “As pragas da lavoura têm os seus inimigos naturais”, justifica Meneghetti.

No arroz, a produtividade tem ficado acima de 9 mil quilos por hectare – acima da média estadual, que é de 8,4 mil quilos. Na soja, são mais de 50 sacas por hectare. O desejo de Meneghetti é que o poder público “atrapalhe menos” quanto às regras para reservação de água nas propriedades. “Para ter agricultura forte, tem que ter irrigação. Onde tem água, tem vida”, resume.

Agro manda propostas à COP

Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) considera importante chegar a definições objetivas sobre o mercado de carbono. Também defende a adoção de mecanismos focados em “adaptação” e que a produção e a preservação sejam pautadas pela ciência e pela legalidade

Considerada crucial para o meio ambiente mundial, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) começa hoje e vai até 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. Líderes de todo o planeta irão discutir alternativas para limitar o aquecimento global. O encontro ocorre sob o impacto do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), lançado em agosto, que apontou que as mudanças recentes observadas no clima não têm precedentes, com a ressalva de que o cenário não é irreversível.

O posicionamento do setor agropecuário do Brasil para a conferência foi entregue pela Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) ao Ministério da Agricultura no início de outubro. Cinco temas foram citados como os mais importantes para o segmento: definições objetivas sobre o mercado de carbono; adoção do plano de ação que trata da inserção da agropecuária frente ao Acordo de Paris; financiamento para que se cumpra o Acordo de Paris; adoção de mecanismos focados em “adaptação”; e produção e preservação pautadas pela ciência e pela legalidade.

Produtores rurais entendem que lavouras e pastagens bem conduzidas mais sequestram do que geram carbono. Foto: Evandro Silva / ESALQ / Divulgação / CP.

O coordenador da Comissão de Meio Ambiente da Farsul, Domingos Velho Lopes, afirma ter expectativa positiva para a COP26, pois, segundo ele, pela primeira vez a agropecuária vai ser abordada como um princípio da conservação. “Vamos ver a atividade agrossilvipastoril também como uma forma de sequestro de carbono. Uma lavoura ou uma pastagem bem conduzida mais sequestra do que gera carbono”, observa. Uma das frentes em que o setor trabalha é a implementação do pagamento por serviços ambientais, ferramenta que irá possibilitar que o produtor seja remunerado pela preservação. A recente criação da Cédula de Produto Rural (CPR) Verde, segundo Lopes, foi um avanço nesse sentido.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895