Pandemia agrava situação de desalento no Brasil

Pandemia agrava situação de desalento no Brasil

País vive uma crise sanitária que afeta a economia e o mercado de trabalho. Muitos estão em busca de emprego, mas outros até desistiram de procurar

Por
Henrique Massaro e Taís Teixeira

Durante 11 anos, Andréa, de 47 anos, direcionou ligações externas para os ramais internos e deu informações ao público que ligava para um órgão federal onde trabalhava como telefonista. Depois de perder o emprego, em 2019, passou mais de um ano tentando formas de se recolocar no mercado de trabalho. Todas sem sucesso. Há cerca de seis meses, desestimulada, ela desistiu de encontrar uma ocupação. Com a decisão, passou a ser o que o IBGE define como desalentada: uma pessoa que não possui emprego, gostaria de estar trabalhando, mas, por diversos fatores, deixou de procurar. No primeiro trimestre de 2021, o total de brasileiros nessa situação chegou próximo dos 6 milhões, um reflexo direto da crise que afeta todo o mercado de trabalho.

O fenômeno do desalento acompanha outros que são agravados durante crises econômicas, como o desemprego. Diferentemente do desempregado, o desalentado sequer é considerado parte da População Economicamente Ativa (PEA), porque não exerce nenhuma pressão sobre o mercado de trabalho. No caso de Andréa, o primeiro momento nessa situação se deu nos meses seguintes à demissão, que, conta, utilizou para assimilar e se recompor. Mas, já em janeiro de 2020, saiu em busca de um novo ciclo profissional. Com uma carta de recomendação da chefe anterior e experiência em outras áreas, ela acreditou que tinha um currículo diferenciado, mas se deparou com um cenário de muitas dificuldades.

Nos meses que se seguiram, houve diversas tentativas. Ciente da atuação dos canais digitais na divulgação de vagas, procurou na Internet possibilidades alinhadas ao seu perfil. Enviou currículos várias vezes, mas a resposta não vinha. Com a chegada da pandemia, percebeu que a dificuldade se tornava ainda maior. De fato, do primeiro trimestre de 2020 para o primeiro trimestre de 2021, o número de desalentados aumentou em mais de 1,18 milhão, um dos maiores crescimentos da série histórica iniciada em 2012. “Fui percebendo que houve muitas demissões, negócios fechando e tudo isso foi me deixando cansada”, relata Andréa, que continuou tentando novas formas de encontrar uma ocupação. “Eu, literalmente, fiz panfletagem de currículos”, destaca.

A falta de retorno substituiu a obstinação por um novo emprego por outro sentimento. “Comecei a sentir uma grande desmotivação e fiquei esgotada”, conta Andréa, que ao longo de todo esse tempo teve apenas dois contatos. Em um deles, chegou a ser chamada para uma entrevista, mas não foi selecionada. No outro, ficou aguardando uma conversa presencial que seria marcada, mas que nunca ocorreu. A rotina se tornou exaustiva e foi acompanhada da desistência. Ela avalia que, se for para conseguir uma ocupação, será por um dos tantos currículos distribuídos. Enquanto a situação do país não melhora, conta com a estrutura familiar – vive com o marido, que está empregado, dois filhos e uma prima – para não esmorecer. “Essa falsa expectativa começou a me fazer mal e decidi viver um dia de cada vez.”

Andréa perdeu o emprego em 2019 e passou mais de um ano tentando formas de se recolocar no mercado de trabalho. Há cerca de seis meses, desestimulada, ela desistiu de encontrar uma ocupação. Foto: Alina Souza

Pandemia agrava desalento

Os momentos de crise econômica são os principais agravantes da situação do desalento no Brasil. É o que se pode dizer com base nos nove anos de dados disponibilizados pelo IBGE. “A série começa em 2012, então, não tem um histórico de crises econômicas muito grande para poder comparar, mas me parece ter uma clara tendência de que, quando tem crises econômicas, há um aumento do número de desalentados”, explica o economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE) Rodolpho Tobler. Segundo ele, o termo desalentado acabou ganhando força entre os estudiosos da economia devido ao crescimento expressivo nos últimos anos.

No primeiro trimestre de 2012, 1,99 milhão de pessoas estavam nessa situação. O número apresentou pequenas variações, para mais ou para menos, nos semestres e anos seguintes, chegando, inclusive, a cair em mais de 500 mil no primeiro trimestre de 2014. Nos dois anos seguintes, marcados pela grande instabilidade econômica, a quantidade de desalentados aumentou expressivamente, chegando a mais de 4,1 milhões de brasileiros, semelhante ao que ocorre com o desemprego, que dobrou de número, passando de 7 milhões de cidadãos para 14 milhões. Depois deste período, os números se mantiveram altos, sempre acima de 4 milhões. A partir de 2020, em um contexto de crise não só econômica, mas também sanitária, ocorreu um novo aumento expressivo, até chegar ao recorde de mais de 5,9 milhões de desalentados.

“Esse tipo de crise, que necessita fechamento de estabelecimentos e isolamento social, acaba agravando ainda mais esse grupo dos desalentados, porque realmente acaba não tendo mais oferta de vagas. Isso faz com que aumente o número de pessoas que não estão trabalhando porque não têm onde procurar”, pontua Tobler. O economista explica que algumas variações trimestrais positivas não chegam a representar uma tendência de melhora considerável, como é o caso do terceiro para o quarto trimestre do ano passado, quando houve uma diminuição de 170 mil pessoas do desalento. “Pode ser por questões sazonais, quando têm um maior número de vagas no fim do ano, e também porque coincidia com o momento em que a pandemia dava sinais de que estava melhorando.”

No primeiro trimestre de 2021, contudo, o avanço da Covid-19 deixou grande parte do sistema de saúde do país à beira do colapso no mês de março, o que exigiu um aumento das medidas de restrição. O desalento e o desemprego bateram recordes. “O número é o mais alto que vemos na série, mas, estatisticamente, o IBGE considera uma estabilidade. Estamos nesse patamar muito elevado que não consegue ceder, justamente porque a pandemia piorou também”, contextualiza o economista, que também chama a atenção para o fato de que, do fim de 2019 – portanto, o último dado puro antes da crise sanitária –, para cá, a quantidade de pessoas ocupadas reduziu-se em mais de 8,9 milhões.

Na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), para classificar uma pessoa como ocupada, ou não, o IBGE questiona se ela trabalhou pelo menos uma hora na semana de referência em trabalho remunerado ou não remunerado ou se tinha algum trabalho do qual estava temporariamente afastada. Mesmo assim, no primeiro trimestre de 2021, 3,4 milhões de brasileiros estavam sem ocupação há dois anos ou mais. “Naturalmente, alguns podem insistir, continuar procurando, mas tem pessoas que vão para o desalento, porque realmente não enxergam nem onde procurar essa vaga”, observa Tobler.

O crescimento dos desalentados ainda chama a atenção no próprio grupo de brasileiros fora da força de trabalho, que, segundo o IBGE, são pessoas de 14 anos ou mais que não estavam ocupadas nem desocupadas. Neste contingente, entram, por exemplo, estudantes, aposentados, donas de casa, além dos desalentados, que, no primeiro trimestre de 2021, chegaram ao recorde de 7,8% dos cidadãos nessa situação. No terceiro trimestre de 2020, essa parte da população atingiu seu recorde, chegando a 76,4 milhões de pessoas.

Quem é o desalentado brasileiro

A crise econômica fez com que aumentasse o número de pessoas pedindo ajuda nas sinaleiras da Capital. Foto: Alina Souza

O desalento, segundo especialistas, é bastante presente entre os jovens brasileiros, manifestando-se consideravelmente também entre os idosos. A competitividade do mercado para os que têm pouca ou nenhuma experiência profissional acaba sendo mais determinante para a desistência, que, no entanto, tem diversos fatores associados. “A palavra é muito forte, o desalento é não ter perspectiva”, explica o economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Cássio Calvete. De acordo com ele, que trabalha com ênfase em mercado de trabalho, a dificuldade de encontrar o primeiro emprego no período de transição após a escola gera também um desgaste emocional e financeiro.

Enviar currículo, pagar a passagem de ônibus para uma entrevista e comprar uma roupa adequada, tudo isso tem um custo que pode ser um fator determinante para muitos brasileiros. “O desalento cresce na medida em que o desemprego cresce. Como o desemprego está crescendo, você percebe que é muito difícil conseguir emprego, então, nem procura”, comenta Calvete. “Isso é um problema muito sério para o país, que não utiliza sua força de trabalho quando tem mais energia, mais vontade e acaba jogando-a para uma condição horrível.”

Na visão do sociólogo Daniel Mocelin, professor no Departamento de Sociologia da Ufrgs, o fenômeno também está associado à sociedade digital. Nas classes menos favorecidas, os jovens normalmente acabam sendo mais impactados pela dificuldade de acesso à educação de qualidade e conhecimento tecnológico exigido pelo mercado de trabalho. “Tecnologias de educação são prestadas como serviço, dificilmente vêm políticas públicas para auxiliar as comunidades a acessar esses serviços. Só vai ter acesso a essas tecnologias quem tiver poder aquisitivo para isso”, comenta.

Não há, no entanto, como restringir as causas de um fenômeno como este. “Muitas vezes, a gente joga todas essas situações dentro de um conceito que pode ser um saco de gatos, mas tem situações muito individuais”, explica o sociólogo, apontando que também há uma dimensão emocional por trás. Comenta que o desalento ainda pode ser uma condição momentânea, sem relação com questões laborais. O maior risco, entende o sociólogo, é a estabilização desses números ou o crescimento contínuo a ponto de se tornar um problema ainda maior que o desemprego. “Não se trataria apenas de um déficit na oferta de trabalho, um problema de ordem econômica, mas um sinal de instabilidade emocional para o trabalho, um problema de ordem social.”

Como vive quem desistiu

Ao constatarmos que quase 6 milhões de brasileiros estão sem emprego e sequer procuram por um, é inevitável que surja a pergunta: do que sobrevivem as pessoas nessa situação? Segundo especialistas e pesquisadores que se debruçam sobre o mercado de trabalho, a resposta também é variada. Muitas vezes, a estrutura familiar – do salário dos pais à aposentadoria dos avós, por exemplo – ou até mesmo a ajuda dos amigos são fatores importantes. “Quando a gente vai para a realidade, sai do mundo dos conceitos, a gente percebe que existem meios”, contextualiza Mocelin.

Políticas públicas de benefícios sociais, como bolsa família e auxílio emergencial, também entram para a conta, embora, de acordo com o sociólogo, não exista uma relação direta entre acesso a essas medidas e a não busca por emprego. “Mas com certeza a existência desses benefícios pode impactar como algo que garante um mínimo de proteção que, de certa forma, pode fortalecer esse movimento de não buscar trabalho. É muito arriscado fazer uma afirmação causal, não é nesse sentido, porque não existem dados que relacionem esses fenômenos.”

O economista Rodolpho Tobler, da FGV, lembra que o valor do primeiro auxílio emergencial, em 2020 – de R$ 600, que depois foi reduzido –, já não era o que se imagina como suficiente para garantir o sustento de uma família, mas que grande parte da população brasileira vive com muito menos. Segundo ele, o benefício acabou contribuindo para que a busca por emprego diminuísse ainda mais, o que era, inclusive, um objetivo, já que era necessário diminuir a circulação de pessoas nas ruas por conta do coronavírus. “Virou 2021, acabou o auxílio. Agora, foi renovado por um valor mais baixo e a gente vê que volta uma grande parte da população a viver abaixo da linha da extrema pobreza.”

“Nem-nem”: Nem estudando, nem trabalhando

Quando limitado aos jovens, o desalento aproxima-se do conceito dos “nem-nem”, utilizado para definir aqueles que “nem trabalham, nem estudam”, ou seja, estão fora das instituições de ensino e também do mercado de trabalho. De acordo com Daniel Mocelin, o fenômeno é bastante característico do século 21 e está associado à sociedade ligada ao mundo virtual e suas desigualdades. Na visão dele, diferentemente do desalentado – que, apesar de ter desistido, quer trabalhar –, a situação de quem nem estuda e nem trabalha parece mais dentro do campo das escolhas.

Novamente, o sociólogo entende que, devido às desigualdades da sociedade tecnológica, o fenômeno acaba afetando mais os jovens de baixa renda, embora ressalte que existam inúmeras situações individuais que não podem ser descartadas. Há, inclusive, questões de ordem filosófica, de uma geração que constitui seus interesses e identidades não necessariamente em torno do trabalho. “Os conceitos de força de trabalho são de uma interpretação da realidade social baseada na sociedade industrial moderna capitalista”, comenta.

Doutor em Administração pela Université Pierre Mendè da França e professor da Ufrgs, Sidinei de Oliveira pesquisa inserção profissional de jovens egressos do Ensino Superior há 10 anos e entende que o chamado “nem-nem” pode ser considerado ainda mais grave que um desalentado, que, apesar de fora do mercado de trabalho, pode, pelo menos, estar estudando, o que é positivo. “O nem-nem é um perfil sério, porque está à margem da sociedade”, comenta. “É um grande risco, porque tem muito tempo livre, então existe o risco de cair na criminalidade.”

A diferença entre os jovens de baixa renda para os demais que também estão nessa situação, mas pertencem a classes sociais mais favorecidas, segundo Oliveira, está na perspectiva de sair dela em algum momento. Na classe média, explica, além da condição de se manter afastado do estudo e do mercado sem passar dificuldades, a tendência é que o cidadão, em algum momento, sofra a pressão para buscar algum desses caminhos. “Muitos dos jovens deixam de estudar porque não acreditam no retorno do estudo e não têm uma família e uma sociedade em torno para cobrar que ele siga adiante.”

O professor também chama a atenção para o fato de que, entre os chamados “nem-nem”, existe uma diferenciação entre jovens do sexo masculino e feminino. O número de meninas nessa situação, segundo ele, tem sido representativo devido a questões como gravidez na adolescência e cuidado dos filhos, por exemplo. “É uma coisa bastante séria, pois o avanço da tecnologia está agravando a desigualdade social e estamos com uma geração com um gap cada vez mais distante de quem entrou no mercado de trabalho em algum momento.”

Sinaleiras da pandemia

Por mais de 30 anos, Waldir trabalhou como representante comercial, mas a empresa para a qual trabalhava faliu. Agora, ele busca o sustento vendendo café e água na esquina das avenidas Érico Veríssimo e Ipiranga. Foto: Alina Souza

Por mais de 30 anos, Waldir, de 64 anos, trabalhou como representante comercial. Em 2018, no entanto, três anos depois que a empresa paulista na qual trabalhava faliu sem indenizar os colaboradores, as habilidades com vendas e no contato com o público tiveram que ser direcionadas para um lugar até então inimaginável. De segunda a sexta-feira, a partir das 6h30min, ele ganha a vida vendendo café e água na esquina das avenidas Érico Veríssimo e Ipiranga. Com a atividade, Waldir não é considerado um desempregado, tampouco um desalentado. Ele integra o grupo de pessoas ocupadas que o IBGE define como por “conta própria sem CNPJ”, realidade de mais de 17,9 milhões de brasileiros no primeiro trimestre de 2021.

No caso de Waldir, o desligamento do mercado formal implicou a perda de uma comissão e, antes mesmo da falência da empresa, o vendedor já vinha recebendo menos do que deveria e precisou se desfazer do carro. “Foi nesse momento, aos 57 anos, que percebi que minha vida ia mudar”, relata. A sensação se confirmou e, na tentativa de manter o padrão de vida, Waldir buscou se recolocar. Vendeu quadros no Parque da Redenção, mas não teve retorno, e acabou atuando como camelô no bairro Azenha, vendendo acessórios para celulares por dois anos. Em 2018, sem perspectivas, começou a notar a presença de vendedores nas sinaleiras da Capital e decidiu se arriscar. A chegada da pandemia, porém, afetou diretamente o trabalho. O fluxo de veículos nas ruas diminuiu drasticamente, reduzindo também as vendas.

O impacto observado pelo vendedor exemplifica por que o número de pessoas que estão por conta própria sem CNPJ vinha apresentando reduções ao longo do último ano. De março de 2020 a março de 2021, a diminuição foi de cerca de 4%. Conforme o economista Rodolpho Tobler, da FGV, a queda não ocorre apesar da crise, mas por causa dela. Segundo ele, não são apenas ambulantes que são considerados trabalhadores por conta própria sem CNPJ – pode haver, inclusive, microempreendedores com alto rendimento que são contabilizados no grupo da informalidade –, mas parte considerável deles são pessoas que estão na rua e dependem da circulação do público.

Os efeitos da crise também podem ser observados pelo fato de que a redução foi menor do que em outras formas de ocupação. Empregados do setor privado, com e sem carteira de trabalho assinada, caíram mais de 10% e 12%, respectivamente. Já os trabalhadores domésticos, com e sem carteira assinada, diminuíram quase 18% e 17%. “As pessoas que perdem seus empregos dos outros tipo de categoria podem estar vindo para esse grupo (de trabalhadores por conta própria sem CNPJ) ou até para o desemprego ou para o desalento”, explica o economista. Segundo ele, novamente por conta da Covid-19, os únicos grupos de trabalhadores em que se observa aumento são os do setor público – devido a contratações na área da Saúde – e o do trabalhador familiar auxiliar, que trabalha sem remuneração ajudando um membro do domicílio.

Na série histórica que contabiliza os informais diferenciando os com e sem CNPJ desde 2015, estes trabalhadores chegaram ao recorde entre o fim de 2018 e o início de 2019, passando de 19 milhões. Depois da redução mais expressiva, em junho do ano passado, este grupo voltou a apresentar crescimento, chegando a mais de 18,1 milhões no mês de abril, segundo o dado divulgado pelo IBGE na última quarta-feira. O economista da FGV explica que o crescimento reflete diretamente o movimento da economia, que dá sinais de melhora. “A informalidade acaba puxando a recuperação do mercado de trabalho na saída de uma crise.”

Além da crise, a dificuldade de acesso ao mercado formal pode estar associada à reforma trabalhista de 2017. Segundo Tobler, é difícil precisar um sinal claro dela no mercado em função da pandemia vinda pouco tempo depois, mas é possível afirmar que a medida tem reflexos no aumento da informalidade. O economista cita que o ponto positivo é que as pessoas conseguem sair com menos dificuldade do desemprego para algum tipo de trabalho. Ao mesmo tempo, o aspecto negativo é a precarização. “Quando vemos uma recuperação muito pela informalidade, estamos tendo uma recuperação do mercado de trabalho com menos produtividade e menos salário, com menor poder de compra pela população.”

Para Cássio Calvete, professor da Ufrgs, as alterações na legislação trabalhista foram conduzidas de forma atropelada, retirando direitos e criando um ciclo vicioso que em nada ajuda no crescimento econômico. “O mercado brasileiro está definhando, derretendo. Vemos um aumento da informalidade, da ‘plataformização’ [trabalho por meio de plataformas digitais como aplicativos de transporte ou de entrega de refeições], das condições mais precárias, diminuição das formas mais seguras. O que percebemos, desde a Reforma Trabalhista de 2017 e agora com a pandemia se agravando, é que o mercado de trabalho se esfarela”, avalia. Segundo ele, mesmo o crescimento de empregos com carteira assinada se dá da forma mais precária, nos regimes de trabalho intermitente e teletrabalho, que substituem um vínculo com mais segurança.

De volta às sinaleiras da pandemia, antes de cair na informalidade, Waldir tentou se recolocar no mercado como representante comercial. Fez contatos, procurou oportunidades, mas não teve sucesso. A idade acabou contando na decisão de desistir de procurar por uma ocupação na área que identificava como a sua e da qual gostava. “Eu viajava do Oiapoque ao Chuí, tenho muita saudade da estrada”, recorda o vendedor, que pretende continuar no semáforo até conseguir vender o apartamento. Com o dinheiro, pretende se mudar para Garopaba, em Santa Catarina, e tentar investir no turismo. “Olhando tudo que eu tive, é uma humilhação estar aqui.”

Solução

Prefeituras, instituições de ensino e entidades como Sesi, Senai, Senac e Sesc costumam oferecer cursos de capacitação e qualificação, além de bolsas para atividades técnicas, de forma presencial ou à distância. Nenhuma iniciativa, no entanto, parece ter força para, isoladamente, reverter o quadro. “Não podemos dizer que não existem algumas possibilidades, no entanto, se a pessoa não tem instrução para isso, não está frequentando uma escola, se está limitando o acesso dela a algo que a estimule a buscar esses cursos, ela não vai ter conhecimento sobre isso”, comenta o sociólogo Daniel Mocelin. “Muitas vezes, a pessoa supõe que não existe trabalho e cursos que possa fazer, ou não tem disponibilidade.”

Para Calvete, há a necessidade de uma série de políticas públicas de postos de trabalho e de incentivo à criação de emprego, atualmente inexistentes. Segundo ele, porém, o mais urgente é a retomada da economia através do fim da pandemia. Na mesma linha, Rodolpho Tobler, da FGV, afirma que o crescimento econômico é a única saída para reduzir o número de desalentados no Brasil. Ele explica que existe uma tendência de redução na virada do ano, mas pontua que, enquanto isso não ocorre, é urgente alguma medida protetiva, como o auxílio emergencial, para que essas quase seis milhões de pessoas não fiquem desamparadas.

Especialistas entendem que há a necessidade de políticas públicas de incentivo à criação de emprego, mas o mais urgente é retomar a economia ao fim da pandemia. Foto: Alina Souza

“Muito se fala de reforma do Bolsa Família para conseguir incluir mais famílias, isso pode ser uma medida positiva, mas não tem jeito, precisamos voltar para o caminho de desenvolvimento econômico até mais forte do que vínhamos observando antes da pandemia”, avalia. Tobler lembra que, apesar de problemas fiscais, desigualdades históricas e mais de 10% da população desempregada antes da chegada do coronavírus, o Brasil vinha apresentando crescimento próximo de 1%, que, agora, precisa ser ainda maior para que possam ser abertas mais vagas de trabalho e contratações, principalmente para os trabalhadores que entraram no desalento em função da Covid-19.

O economista avalia que o país vem recuperando parte do que foi perdido no ano passado, mas que é necessário um cenário mais claro de retomada. E não há como vislumbrá-lo sem o fim da pandemia. “Tem uma expectativa positiva para os próximos meses, mas tem risco de novas ondas, novas cepas, isso realmente é um risco muito grande. O cenário para os próximos meses parece positivo, mas ainda tem muita incerteza. A gente precisa ter uma certa cautela e conseguir combater essas incertezas com ampliação e aceleração do programa de vacinação.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895