Pandemia e distanciamento social desafiam a saúde mental

Pandemia e distanciamento social desafiam a saúde mental

Trauma psíquico é um dos desdobramentos da Covid-19

Por
Mauren Xavier

Após mais de quatro meses de pandemia no país, os gaúchos passaram a ver os números de mortes pela Covid-19 e os índices de contaminação pela doença crescerem rápido, em especial, nas últimas semanas. Como reflexo, movimentos desconexos geram dúvidas. Ao mesmo tempo que ocorre um aumento de restrições, por meio de decretos ou pelo sistema de bandeiras, das atividades econômicas ou mesmo daquelas de lazer, como com o fechamento de áreas como a orla do Guaíba, na Capital, há uma baixa adesão ao isolamento social e medidas como a retomada do campeonato de futebol estadual. Afinal, a pandemia ainda é perigosa? Sinais opostos trazem preocupações sobre a saúde mental da população nesse período. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o trauma psíquico e a doença mental serão outros desdobramentos da pandemia de Covid-19. “Tais consequências não somente serão maiores, como durarão mais tempo”, alerta a associação. 

Especialistas das mais diversas áreas apontam que a pandemia representa uma situação traumática uma vez que agrega mudanças abruptas e que, ao mesmo tempo, está demorando para passar ou, mais precisamente, não tem previsão de término. “A pandemia é um fenômeno social. Não é só biomédico. Ela afeta as nossas relações familiares, culturais e sociais. E coloca uma lupa sobre outras aspectos, como as desigualdades sociais”, avalia a antropóloga da Universidade de São Paulo (USP) Denise Moraes Pimenta. Mais do que isso, a pandemia acarretará transformações definitivas mesmo quando terminar. “Sobretudo porque somos atingidos em todos os nossos eixos, corporal, psíquico e social. O trauma é como uma ‘teia’ com vários fios e que deixa o sujeito paralisado no meio”, explica a psicanalista Paula Daudt Sarmento Leite. 

Nesse panorama, o cidadão acaba por ser ameaçado por vários ângulos, adoecer, sofrer fisicamente, morrer, perder pessoas importantes. Associado a isso, pondera Paula, existem as mudanças. São alterações nas relações afetivas, isolamento, confinamento, escola em casa, convívio familiar mais intenso, sensações de tristeza, lembranças de momentos de tristeza anteriores, ansiedades, assim como as perdas laborais, econômicas e políticas. O indivíduo é impactado ainda pelas informações, algumas vezes excessivas, outras escassas ou oferecendo soluções mágicas, e o sofrimento ético, que resulta em várias ações solidárias. “Estudos apontam para um provável aumento nos relatos de sensação de medo, solidão, tédio e raiva entre pacientes submetidos ao isolamento e ao período de quarentena, bem como um aumento da ansiedade e da culpa pelos efeitos do contágio, da quarentena e estigma sobre seus familiares e amigos”, reforça documento da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Esse complexo panorama, atual e futuro, desafiará o desenvolvimento de novas estratégias para reduzir os prováveis impactos sobre a saúde mental. Neste contexto, as medidas de isolamento social atuam e colocam mais um item de complexidade sobre as formas de se lidar com pandemia. 

Ouça o podcast sobre a reportagem:

 

 

 

Coordenador de uma série de cartilhas para lidar como a pandemia, o professor de psicologia da PUCRS Wagner Machado ressalta que o isolamento é uma das principais fontes estressoras, pois recai sobre a ausência da “autonomia das pessoas de fazer escolhas”. Junto a isso, há a questão de competência, quando a pessoa acha que não consegue lidar com essa situação, e o suporte social. Uma das estratégias para fazer frente a esses impactos é que as pessoas tentem retomar habilidades e competências, ou até mesmo desenvolver novas. A manutenção dos relacionamentos é outro caminho, mesmo como distanciamento. “Talvez reservar um momento na semana, conversar e falar sobre medos e aflições. Um espaço para cultivar essas relações”, aponta Wagner Machado. O psicólogo aponta a importância de encontrar estratégias para “contrabalançar” a situação de isolamento. “Se temos que ficar mais distantes, podemos aumentar o contato de outras formas, como ligar mais vezes”, aconselha Machado. “Muitas vezes as pessoas seguem estratégias antigas para solucionar problemas novos. Se antes socializava na roda de chimarrão, e hoje não tem mais como, então deve-se criar outro ambiente para socializar. Uma sala virtual, um espaço de conversa, por exemplo”, afirma. 

Dicas de cuidados com a saúde mental 
- Procure manter rotinas, como horários de acordar, de fazer as refeições, trabalhar e descansar.
- Se exponha ao sol, para auxiliar ao bem-estar psicológico. 
- Cuide da alimentação, cozinhe mais.
- Faça atividade física, mesmo um alongamento ou ioga.
- Viva o presente.
- Cuide dos outros. Solidariedade ajuda. 
- Busque informações de fontes que contenham conteúdo sérios.
- Mantenha contato virtual com familiares e amigos.
-Esteja alerta aos sinais de estresse e de raiva. Busque ajuda se necessário. 
-Ajude as crianças a se expressarem com atividades lúdicas e criativas. Isso alivia o estresse. 
- Faça terapia 
-Medite. Há vários aplicativos disponíveis para auxiliar. 
-Pense em novos projetos. 
-No ambiente doméstico, busque desenvolver atividades em conjunto, como ler o mesmo livro ou ver o mesmo seriado.

A diferença sobre como sentimos esse momento também depende da forma como o encaramos. “Entender o autoisolamento como uma atitude altruísta pode funcionar como um escudo, enquanto percebê-lo como uma imposição proibitiva pode agravar a sensação de perda de liberdade e sintomas associados”, explica a Associação Brasileira de Psiquiatria, em cartilha produzida recentemente. O documento traz uma série de orientações e recomendações, como “trazer a atenção do futuro para o aqui e agora e focar no que você pode fazer nesse momento”. Cita pequenos e simples movimentos, como prestar atenção à própria respiração ou tentar identificar quais aromas você sente ao preparar uma refeição.

Sobre a dificuldade em lidar com distanciamento social, a antropóloga Denise Moraes Pimenta faz algumas considerações. “O isolamento, como ele se propõe, não é uma realidade para todos e todas. O isolamento tem um corte de classe. Aquele de ficar em casa, trabalhar em home office não é para todas as pessoas. Não são todos que têm Internet, televisão, espaço na casa para dividir. Além disso, a rua, para muitas pessoas, especialmente as pobres, sempre foi um espaço de convivência e segurança. Porque muitas vezes as mulheres vivem em um cubículo com um companheiro agressivo. Essas condições precisam ser levadas em conta”, ressalta. 

Essa reflexão também recai sobre o pensar em relação àqueles que estão nas ruas. Há os que precisam trabalhar, que representam a massa de trabalhadores da base, mas também aqueles que estão em uma posição de proteção. “A pandemia não é um caso único. A gente vê as pessoas andando nas ruas e shoppings e precisamos pensar que elas têm quase certeza de que o vírus não chegará até elas e que, se chegar, elas terão assistência”, provoca. Denise acrescenta ainda que, se a pandemia estivesse atingindo mais “pessoas brancas e da elite”, talvez a preocupação fosse diferente. “A pandemia precisa de respostas ordenadas. Precisa do aparato do Estado”, afirma.

 

 

Cartilha produzida pelos profissionais da PUCRS traz dicas e orientações para enfrentar o estresse na pandemia. Acesse aqui.

CEDO DEMAIS?

Uma crítica comum às medidas de isolamento social é que elas foram adotadas cedo demais. Em um país com dimensões continentais, a verdade é que a doença avançou e segue afetando diferentes regiões de maneira diversa. Alguns especialistas reconhecem, mesmo com discrição, que o isolamento começou cedo demais em algumas localidades, o que atualmente acaba por tornar o discurso de defesa ao distanciamento limitado. Um exemplo é a baixa adesão nas cidades gaúchas. Ao mesmo tempo, foi benéfico por segurar o crescimento da curva, que poderia esgotar os recursos de atendimento médico, como ocorreu em Manaus, no início da pandemia. 

“As medidas foram adotadas muito precocemente no país, no primeiro momento. E isso foi muito bom”, defendeu o diretor presidente do Instituto Butantan, de São Paulo, Dimas Tadeu Covas, em live promovida pela Escola de Saúde La Salle/Santa Casa, recentemente.

Médico infectologista do Hospital Santa Casa, Cláudio Stadnik considera relevante o questionamento para compreender o cenário atual. “(A adoção de medidas cedo) nos deu tempo. Abrimos leitos. Ampliamos a rede. Imagina isso (elevação de casos) em abril? Com certeza a gente teria sido pego despreparado e, não tenho dúvidas, que teríamos mortes nas portas de emergências. Esse tempo foi valioso”, assegura o infectologista. “Graças a elas (as medidas adotadas cedo) é que chegamos atéaqui com este resultado”, aponta Bruno Miragem, secretário extraordinário de Enfrentamento do Coronavírus de Porto Alegre, ao defender que as medidas mais duras de restrição são para que não ocorra o esgotamento das condições de atendimento, mesmo com a ampliação.

Mesmo com os pontos positivos, essa postura trouxe outros desgastes. E um deles é a própria defesa irrestrita do distanciamento. “As pessoas ainda não têm muita ideia da gravidade da epidemia. Não teve gente morrendo nas ruas por falta de leito. Isso dá uma sensação de que o distanciamento das pessoas não é relevante”, pondera o diretor do Instituto Butantan. A negação se reflete em ações. “Há ruídos. No meio de uma epidemia dessa gravidade, existe um grupo que descredencia a epidemia, descredencia as ações contra a pandemia e até a própria vacina em análise”, avalia Covas.

Ao reconhecer as dificuldades em ampliar a adesão ao distanciamento social neste momento, o secretário extraordinário Bruno Miragem cita dois fatores que contribuem: uma certa “fadiga” das pessoas, pois muitas já estão há mais de 100 dias nessas condições, e a condição econômica. Uma demonstração disso são os protestos mais constantes contra a prefeitura e a favor da retomada das atividades. Para se ter uma dimensão dos efeitos da pandemia sobre a população, 11,8 milhões de pessoas estavam desempregadas no final de junho, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE. Na comparação com o mês anterior, foram 2 milhões a mais de desempregados. “As pessoas estão fazendo um sacrifício. E há diferentes limites desse sacrifício na questão econômica. É uma condição social”, avalia Miragem. 

Movimento na Orla do Guaíba, no 21 de abril, cerca de um mês após o avanço na pandemia no Estado. Foto: Fabiano do Amaral/CPMemória

Paisagem da Orla do Guaíba no dia 12 de julho, após as medidas mais rigorosas da prefeitura de Porto Alegre para conter as aglomerações em áreas de lazer. Foto: Alina Souza

Segundo a psicanalista Paula Daudt Sarmento Leite, presidente do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre (ITIPOA), o negacionismo pode ser compreendido pela perda da capacidade de controle, da onipotência e o revelar da finitude que o indivíduo se depara no momento da pandemia. “Todos nós precisamos nos defender do sofrimento produzido por esta condição traumática. Algumas defesas são mais maduras e saudáveis, outras mais frágeis e rígidas. Por isto, surge o negacionismo em vários níveis. Pessoas que fingem que o vírus não é tão perigoso e desconsideram as medidas de cuidado, por exemplo. Por outro lado, há aqueles que, de tão assustados, não conseguem abrir as janelas da casa”, analisa a psicanalista. 

Nessa mesma linha, o professor Wagner Machado aponta que essa é uma forma de enfrentamento do estresse, mas de maneira disfuncional, assim com o abuso de substâncias como drogas, remédios ou álcool. “Ao longo do tempo, essa pessoa vai acumular mais estresse, porque ela não está lidando com o fator estressor. Está tentando bloquear parcialmente”, alerta. “A verdade é que a pandemia mudou tudo. Todo mundo tinha planos e um planejamento para 2020. Perdemos e temos que replanejar. E como ainda não estamos conseguindo perceber um fim, gera o desconforto”, aponta professora Éllen Cristina Ricci, do curso de terapia ocupacional da UFPel, que tem estudado os impactos da pandemia na saúde mental da população. 

A comissária de bordo Amanda Borba vivenciou essa mudança de planos na pele. Morando em São Paulo, onde dividia apartamento, e com escala de voos sempre cheia, ela viu tudo mudar de uma hora para outra. No final de março, fez o último voo. “Parece que faz muito tempo que isso aconteceu”, confessa ela, ao recordar da escala em que dormiu em Confins (Minas Gerais) e voltou para São Paulo. Após três semanas acompanhando os desdobramentos e o aumento das restrições relacionadas aos voos, ela retornou a Porto Alegre. “Eu preferi voltar para a casa dos meus pais. Tenho muitos colegas que optaram por ficar lá, na expectativa. Optei voltar porque saí de licença não remunerada por três meses. E esse mês estou, tecnicamente, em escala de voo”, explica. Ela recorda que os últimos voos não foram fáceis. “A gente pegou bem o começo da pandemia. Vimos os voos vazios. No final do mês (de março) tinha umas dez pessoas no voo. Era um cenário triste, ver um avião decolando praticamente vazio, todo mundo de máscara e com medo.”

Ela diz que neste período passou por várias fases. “Agora já estou mais adaptada. Mas foi uma troca de chave muito grande”, comenta. Para amenizar o impacto, buscou distrações. Inicialmente deu atenção às pinturas e agora são as plantas, mais especificamente uma coleção de suculentas, que têm sido o seu hobby. “Eu tinha três no início do ano. Agora são mais de 20”, comenta. Em isolamento com os pais, na Capital, as saídas têm sido pontuais, para o supermercado ou, no máximo, floricultura. “Não me encontro nesse mundo ainda de ir para a rua”, confessa.

O futuro, em especial para o fim do isolamento, tem sido um dos principais pontos de preocupação. Além das incertezas relacionadas à questão econômica, às atividades escolares, ao “novo normal’, as previsões compartilhadas pelos especialistas são que o “abre e fecha” será uma rotina. Dimas Covas, do Instituto Butantan, acredita que o caminho será seguir “calibrando” as ações de distanciamento social, conforme a evolução da doença. “O tecido social não aguenta o isolamento de seis meses, oito meses ou um ano. Usar conceito de circulação controlada do vírus e controle da capacidade de atendimento, até atingir um nível de proteção natural maior. É um exercício difícil, uma modelagem difícil, não é fácil, a sociedade nem sempre entende isso”, avalia Covas, que está à frente do desenvolvimento de uma das vacinas em estão em estudo no país.

Ruas vazias mudaram a paisagem da cidade no início da pandemia. Foto: Guilherme Almeida/ CPMemória

SITUAÇÃO TRAUMÁTICA

“Você não está sozinho.” A frase pode até soar inadequada no momento em que o mundo enfrenta uma pandemia e que, segundo as orientações das entidades de saúde, o isolamento social é a principal maneira de enfrentamento ao contágio. Mas ela é verdadeira. Pelo menos essa é a mensagem na qual diversas iniciativas têm investido. O intuito é ser mais do que uma frase positiva, é ser uma rede de proteção à vida. Nunca estivemos tão virtualmente conectados. Ao mesmo tempo, nunca quisemos tanto estar com as outras pessoas, em situações corriqueiras e simples, um encontro com os amigos para colocar a conversa em dia, um jantar em família, um abraço forte. Gestos e atitudes que têm sido colocado à prova durante a pandemia. Encontrar maneiras de ter amparo social, político e familiar pode auxiliar, detalha Paula Daudt Sarmento Leite, na capacidade de “tolerar a frustração, suportar a passagem do tempo e reconhecer os próprios sentimentos”. “Este é um momento no qual pedir ajuda pode fazer toda a diferença. Ajuda fraterna ou profissional”, sentencia. 

Há também quem se coloca à disposição para ouvir. O simples desabafo ou o falar ganha conotação ainda mais importante neste momento. Em um trabalho de décadas no Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV) tem sido uma alternativa àqueles que precisam ser escutados. Sem preconceitos e julgamentos, e no anonimato, o serviço está disponível gratuitamente pelo telefone 188. “Identificamos que não houve um aumento na demanda desde o início da pandemia, mas sim um crescimento da disponibilidade”, explica Liziane Eberle, uma das coordenadoras do CVV no Rio Grande do Sul. Isso se deu porque muitos voluntários passaram a atuar de maneira remota. 

A justificativa para o fato de a demanda permanecer estável, na avaliação de Liziane, está associado a alguns fatores, como o fato de as pessoas, por estarem em isolamento, acabarem compartilhando mais suas emoções, e outras por não conseguirem ficar sozinhas para fazer as ligações. Ao mesmo tempo, destaca que esse período trouxe desafios que ficaram evidentes nos atendimentos, como o aumento da preocupação como a situação financeira, o medo dos reflexos da pandemia ou até a pressão gerada com os filhos dentro de casa. “O medo, com a pandemia, e as incertezas passaram a estar mais presentes”, ressalta Liziane. 

Alguns serviços  

ATENDIMENTO SOLIDÁRIO: O serviço é destinado a profissionais da saúde na linha de frente e população em geral. Além disso, envolve diversas entidades, como Associação de Psiquiatria do RS, Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, entre outros. Informações aqui 

PROJETO REVIRASAÚDE: Apoio profissional em um atendimento on-line (que pode ser feito por telefone, whatsapp, skype, facebook ou outro contato) gratuito, resultado de uma parceria entre a Secretaria de Saúde do Estado com outras instituições e universidades. Informações aqui  

CENTRO DE VALORIZAÇÃO DA VIDA (CVV): Realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone 188, e-mail e chat 24 horas todos os dias. 

PROJETO TELEPSI: É uma iniciativa do Ministério da Saúde que, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, oferece teleconsulta psicológica e psiquiátrica para manejo de estresse, ansiedade, depressão e irritabilidade em profissionais da saúde que estejam atuando no SUS e estudantes da área da saúde que estejam realizando qualquer prática profissional no SUS. Informações aqui  

Ela destaca que apenas o ouvir não soluciona o sofrimento, mas tem um poder importante de amenizar a ansiedade. O psicólogo Wagner Machado diz que falar ajuda, pelo menos, parcialmente. “Por muito tempo se acreditou que apenas o falar já tinha efeito reparador. O que a gente nota, na prática, é que tem um efeito de catarse. Descarrega. Traz um alívio. Porém, sozinho não é suficiente. O falar com um amigo, por exemplo, tem um limite. E neste ponto inserir um escuta especializada por ser importante”, avalia.
Ao mesmo tempo, os especialistas apontam uma mudança. “As pessoas têm falado mais. Até porque todos estão enfrentando as mesmas dificuldades. Então, está tudo bem falar. Se eu chegasse em uma situação normal e dissesse que não estava bem, ouviria algo como ‘pare com isso’. Hoje, a gente diz que ‘entende’ e isso faz muita diferença”, pondera Liziane Eberle, do CVV. Machado reconhece esse mesmo movimento. “As condições (de cada um) são diferentes, mas há uma normalização do sofrer”, avalia.

O psicólogo do Hospital Mãe de Deus, Matheus Quadros acrescenta que a sociedade atual tem muita dificuldade em lidar com o sofrimento. “É importante validar (o sofrimento). Agora as pessoas puderam parar. Conseguem ver o panorama de outra maneira. Podem falar porque o outro entende”, explica. Na sua avaliação, só o fato de dividir já é um movimento importante para auxiliar a aliviar o estresse. Assim, abre-se ainda mais espaço para o falar, o ouvir e o pedir e fornecer apoio. “São mecanismos que se ativam. A pandemia nos nivela”, ressalta Quadros. Segundo ele, manter essas relações de apoio é fundamental.

Mesmo que ainda não possa ser mensurado, exatamente por ser uma situação em andamento, a pandemia representará impactos em todos. “Do bebê que vai nascer e não pode receber a visita dos familiares, a gestante, a criança pré-escolar, escolar, adolescente, idoso. Cada qual com perdas específicas e marcas que, hoje, podemos considerar, mas ainda não prever por completo”, pondera Paula. Ao mesmo tempo, não é possível ignorar alguns ganhos, como a presença dos pais em casa, o autoconhecimento e até o teletrabalho. “Vivíamos uma cultura narcisista, do desempenho, da não falha, do consumismo, longe da intimidade, do autoconhecimento. Ainda pensando no impacto nas relações, elas podem ser aprofundadas”, acrescenta a psicanalista.

Levantamentos preliminares já apontam crescimento na demanda pelo atendimento na saúde mental. Recente pesquisa da Coordenação Estadual de Saúde Mental da Secretaria da Saúde (SES) confirmou o aumento da procura entre os gestores de mais de 400 municípios gaúchos. Ansiedade, nervosismo ou tensão, perturbação de sono e abuso de substâncias e bebidas despontam entre os principais sintomas. O maior desafio é que pela sua complexidade, a maneira e o grau de impacto nas pessoas são variáveis. Assim, uma mesma ação não atingirá a todos.

Buscando dimensionar ou até desenvolver estratégias de enfrentamento e acolhimento, existem diversas pesquisas em desenvolvimento na comunidade científica. Uma delas é fruto de parceria entre a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e busca avaliar o impacto emocional. Para tal, a população foi dividida em seis grupos: população em geral, pessoas com sofrimento psíquico que faziam algum tipo de acompanhamento e que estão em isolamento, trabalhadores da saúde que estão atuando, pessoas diagnosticadas com Covid-19, familiares de pessoas diagnosticadas e pessoas enlutadas em função da perda de um familiar, colega ou ente querido pela Covid-19. “A pandemia criou uma série de desconfortos emocionais que podem não necessariamente virar transtornos, mas que vão requerer atendimento”, aponta uma das coordenadoras da pesquisa, a professora Éllen Cristina Ricci, do curso de Terapia Ocupacional da UFPel, que realiza o estudo junto com Tatiana Dimov, do Departamento de Terapia Ocupacional da USFM. Saíba como participar da pesquisa aqui

A pesquisa também tenta analisar como os dispositivos virtuais podem ajudar ou servir de suporte a essas pessoas. “Verificada a validade dessas iniciativas, elas podem até vir a ser inseridas no serviço de saúde pública, com custos mais vantajosos”, detalha Éllen, acrescentando que também é importante mostrar a importância de antecipar essa procura. A preocupação se justifica. Alguns estudos já apontam que 50% da população pode entrar em um momento de sofrimento mais intenso em função da pandemia. “Sem planejamento para um acolhimento efetivo, que obviamente não vai atingir boa parte da população, o impacto será muito grande”, alerta Éllen.

MUDANÇAS NO ATENDIMENTO E A LINHA DE FRENTE

A pandemia e as ações de distanciamento social também já têm provocado mudanças no formato de atendimento. Os Centros de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (Caps) mantidos pela Associação Educadora São Carlos (AESC), em Porto Alegre, inseriram o monitoramento telefônico para aqueles pacientes que já integravam o centro e fazer os atendimentos nas ruas em um processo de busca ativa. “A estratégia é ir ao encontro dos usuários onde eles estão. É uma maneira de mapear os usuários da rede e ampliar a articulação com as demais políticas públicas”, explica a coordenadora do CAPS Centro, Danara Rodrigues Dallagnol.

A realização desse tipo de atendimento nas ruas também tem o intuito de aproximação com esse usuário. Com uma avaliação mais próxima, é possível identificar e encaminhar determinadas solicitações para atendimento clínico e mental, buscando uma “integralidade do cuidado”. “A pandemia criou outras dificuldades, inclusive de chegar ao Caps. Iniciativas como ir em busca do paciente e ampliar esse monitoramento mostraram-se importantes”, destaca Arlete Fante, gestora dos Serviços de Saúde Mental da AESC. 

Se os atendimentos mudaram, a atenção em relação a alguns grupos também sofreu alterações, especialmente aqueles que estão na linha de frente. A pressão diária e contínua aos profissionais de saúde ganhou contornos mais fortes com o avanço da pandemia. E para dar suporte e apoio, instituições montaram estruturas de retaguarda. “Ter um momento para distensionar. Mostrar que o funcionário não está sozinho”, explica Matheus Quadros, que desenvolveu iniciativas de apoio aos profissionais no Hospital Mãe de Deus. As medidas foram as mais diversas, mas uma das principais foi a de criar um espaço de escutar. “A ideia era ajudá-los a lidar com a ansiedade. É importante mostrar que estamos juntos. É preciso deixar isso bem claro. Todos temos angústias, anseios e temos que encontrar formas de ação para ficarmos menos carregados.” Outra iniciativa foi o uso das redes sociais para compartilhar dicas de filmes e livros, entre outros. 

Os profissionais de enfermagem estão entre os que mais foram atingidos pela doença. Segundo o Observatório da Enfermagem, do Cofen, mais de 11 mil profissionais no país já foram contaminados pela Covid-19. Dados que colaboram para aumentar a pressão sobre a categoria e ampliar a pressão. Para ajudar, o Cofen disponibilizou, ainda em março, um serviço exclusivo e gratuito de apoio à saúde mental (www.cofen.gov.br). São profissionais da enfermagem, especializados em saúde mental que prestam esse serviço. Para se ter uma dimensão, nos primeiros dias em funcionamento foram mais de mil atendimentos. 

Diante do crescente impacto da pandemia, diversas entidades ligadas à saúde mental reforçaram seus atendimentos. Uma das medidas foi a decisão em relação ao teleatendimento ou consultas virtuais. Porém, a busca por serviços especializadas ainda está longe de ser acessível a todos. Elementos como custo dos serviços e preconceito são algumas barreiras que dificultam esse processo.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895