Parceiro do campo

Parceiro do campo

Caderno lançado pelo Correio do Povo no final dos anos 1950 acompanhou a evolução da agropecuária do Rio Grande do Sul e chega ao seu número 2000 como um dos únicos do país voltados exclusivamente ao assunto

Por
Nereida Vergara

Resultado de uma aposta da Companhia Jornalística Caldas Júnior em uma publicação específica para retratar e promover uma das principais vocações do Rio Grande do Sul, a agropecuária, o Correio do Povo Rural nasceu há 63 anos e comemora 2 mil edições neste 3 de outubro. Criado como suplemento semanal do Correio do Povo, o caderno foi o primeiro de uma série de publicações semelhantes que surgiriam anos mais tarde na imprensa brasileira, muitas das quais já desaparecidas, e se mantêm como espaço da reportagem com temática rural em suas edições semanais encartadas no jornal. Em suas páginas, o leitor pode encontrar análises periódicas das safras e da pecuária gaúchas, das inovações tecnológicas, do avanço da pesquisa e das transformações do campo.

Esta trajetória começou em 6 de setembro de 1958, já chamando a atenção pelo padrão gráfico diferenciado e pelo conteúdo. Na primeira fase, que durou 26 anos, até a suspensão temporária da circulação, chegou a ter edições com 40 páginas. A retomada ocorreu 25 anos depois, em 2009, quando o jornal já estava sob a gestão atual, do Grupo Record, que identificou o interesse dos assinantes em ter novamente os assuntos do campo em espaço amplo, além da página diária.

A origem do Correio do Povo Rural é contada com precisão pelo pecuarista e ex-ministro da Agricultura Luiz Fernando Cirne Lima, redator do caderno entre 1958 e 1968. Cirne Lima, hoje com 88 anos, recorda que, antes do lançamento do encarte semanal, o jornal já dedicava uma ou mais páginas aos “assuntos rurais” às sextas-feiras. Nelas eram publicados artigos técnicos de grandes nomes da Agronomia e da Veterinária, além de notícias factuais.

Segundo Cirne Lima, o impulso para ampliar a participação da agropecuária no jornal se deu com a decisão do governo do Estado, tomada em 1955, de fixar em Porto Alegre, no Parque de Exposições do Menino Deus, onde hoje funciona a Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr), a Exposição Estadual de Animais, que posteriormente se transformaria na Expointer. “Na época, o suplemento rural que existia era o do Estado de São Paulo, mas eminentemente técnico”, lembra Cirne Lima, que diz que a ideia de Breno Caldas, proprietário do Correio do Povo, era emplacar uma revista, com qualidade editorial e de imagem sem precedentes no país, “o que ocorreu desde do primeiro número”.

O ex-ministro, assim como outras lideranças agropecuárias, como o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira, e o presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (FecoAgro), Paulo Pires, reconhecem no Correio do Povo Rural um papel determinante no desenvolvimento do setor. “Com a entrada (do suplemento), a genética da pecuária gaúcha começou a ganhar projeção, diminuindo a necessidade de importação de reprodutores de países como o Uruguai e a Argentina”, recorda Cirne Lima. “A publicação teve um papel importantíssimo no registro da pecuária gaúcha, o jornal retratou uma trajetória muito marcante da pecuária em um tempo em que a agricultura era insignificante”, comenta Gedeão Pereira. Já Paulo Pires acentua o papel de parceiro do cooperativismo que o caderno teve em seus primórdios e ainda tem.

Para Glauco Schultz, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural e Agronegócios, a existência de um veículo gerador de informações e de conteúdos como o Correio do Povo Rural é fundamental para o setor por três motivos principais. O primeiro é por permitir que os agricultores tenham possibilidade de se expressar e de serem lidos amplamente. O segundo é por registrar as histórias e trajetórias das famílias de agricultores, o que possibilita uma aproximação significativa com os consumidores nas cidades. E o terceiro, pontua, “é a contribuição do jornal para evidenciar a relevância entre os territórios, os agricultores e demais populações das diferentes regiões do Estado, o meio ambiente e a natueza".

Edição comemorativa marcou a volta do caderno à circulação em 2009. Foto: Reprodução

Testemunha e protagonista

Ex-ministro da Agricultura, pecuarista e sempre estudioso, Luiz Fernando Cirne Lima acompanhou muitas das transformações passadas pela agropecuária gaúcha desde a década de 1950, inclusive como redator do Correio do Povo Rural nos primeiros dez anos do caderno

Responsável pela criação da Embrapa, hoje o ex-ministro divide seu tempo entre a Fazenda da Pedreira, em Dom Pedrito, e a moradia na Capital. Foto: Beth Cirne Lima / Arquivo pessoal

Agrônomo, professor universitário, pecuarista, ex-presidente da Farsul, ex-ministro da Agricultura, ex-presidente da Copesul e incentivador de importantes projetos culturais do Estado, Luiz Fernando Cirne Lima tem sua vida diretamente ligada às transformações que o campo do Rio Grande do Sul passou desde a década de 1950, em muitos momentos como protagonista, em outros como analista. E também ao jornalismo, como redator do Correio do Povo Rural, cargo que assumiu em 1958, aos 25 anos – quando já ministrava a disciplina de Zootecnia na Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) havia três anos –, e no qual permaneceu durante toda a primeira década do suplemento. 

O ex-ministro relata que a publicação partiu de conceitos nunca aplicados pela imprensa até aquela época, como capas e páginas centrais sem anúncios, fotos em cinco colunas e textos que começavam e terminavam na mesma página. “Também nunca se aceitou conteúdo pago, tudo que era feito era estritamente editorial e o jornal publicava o que queria”, recorda.

Segundo Cirne Lima, o suplemento dedicado à agropecuária teve uma repercussão tão grande que passou a ter o centímetro coluna (pelo qual se calculava os espaços publicitários) mais caro da imprensa gaúcha. “Não era preciso sair em busca de anunciantes, havia uma grande disputa”, recorda. Nas exposições de animais, que até 1969 tiveram como palco o Parque Menino Deus, na Capital, o caderno facilmente atingia as 40 páginas, com nada menos que 20 páginas de anúncios.

“Era preciso escrever muito para preencher todo aquele espaço. Começávamos cada edição com antecedência, mas, para ter o ‘pão quente’, grande parte do trabalho era feito na quarta-feira e na quinta-feira, antes de (o jornal) rodar”, relata. O apuro editorial, acrescenta Cirne Lima, que deixou o Correio do Povo quando se tornou ministro da Agricultura do governo Emílio Garrastazu Médici, em 1969, era acompanhado do cuidado técnico, com o suplemento sendo todo impresso em papel importado.

EMBRAPA

O agrônomo deixou o governo Médici em 1973 por discordância na condução do processo de abertura democrática. Numa carta histórica ao presidente alegou que seus princípios em favor da verdade não permitiam que permanecesse no governo. Antes de renunciar, entretanto, Cirne Lima concretizou a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “O que trouxe a agropecuária ao que ela é, em grande parte, foi o trabalho de pesquisa e inovação desenvolvido pela Embrapa durante todos esses anos”, afirma.

Hoje, o pecuarista acompanha as notícias do setor pelos meios virtuais e segue atento aos fatos. Ele elogia a atuação da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, do ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e os gestores do Banco Central. “A economia brasileira vai bem porque o agro vai bem e a moeda está bem cuidada”, complementa.

O segredo para chegar aos 88 anos com a memória tão afiada, revela o ex-ministro, é nunca deixar de exercitar a mente. “Não há um dia sequer que eu vá dormir antes de pesquisar e estudar algum assunto que me agrade. As pessoas falam muito em cuidar do corpo, mas ele, sem a mente, não serve para muito”, conclui Cirne Lima, que além dos assuntos rurais tem apreço por cinema e literatura, entre outros temas.

Papel histórico na vida de leitores ligados ao campo

O diretor administrativo da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Francisco Schardong, de 74 anos, começou a ler o Correio do Povo Rural ainda na infância, em Triunfo, onde nasceu. Na juventude, quando acadêmico do curso de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), recorda que os artigos técnicos e entrevistas publicados no suplemento, alguns assinados pelo ex-ministro da Agricultura, Luiz Fernando Cirne Lima, serviram de subsídio para seus trabalhos.

Ex-vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag) e atual assessor da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), Nestor Bonfanti observa que a atenção dada pela imprensa como um todo à agropecuária ganhou corpo há pouco mais de duas décadas, o que realça o papel histórico do Correio do Povo Rural. Para Bonfanti é um privilégio ter um veículo que se dedique a esses assuntos. “Com aquilo que a imprensa divulga, o meio urbano tem condições de formar um entendimento mais próximo da realidade do que é a vida do agricultor, das dificuldades que enfrenta e do valor de seu trabalho para alimentar a população”, afirma.

Uma trajetória bem preservada

Num escritório com portas e janelas voltadas para o campo, onde os registros de trabalho ainda são feitos em uma antiga máquina de escrever Olivetti, estão guardados dezenas de prêmios da pecuária, inclusive três obtidos na 44ª Expointer, ocorrida em Esteio no início do mês passado, e uma bem conservada coleção de notícias extraídas do Correio do Povo Rural desde 1969.

O acervo pertence ao pecuarista e produtor de grãos Vasco da Costa Gama, de 88 anos, um homem cheio de energia para acordar às 5h e distribuir as tarefas a serem cumpridas na Fazenda Bom Fim, no município de Guaíba, onde cultiva soja, arroz e feijão e cria búfalos, cavalos da raça Quarto de Milha (entre eles Blue Onyx, grande campeão da raça na Expointer deste ano), pôneis, minivacas e gado holandês. A propriedade tem oito funcionários, alguns, conforme o produtor, com mais de 50 anos de serviço.

Com uma singeleza peculiar, Costa Gama conta que estudou apenas até completar o “curso ginasial” e que, atualmente, divide as tarefas de administração das Fazendas Bom Fim e Três Pinheiros, em Mariana Pimentel, com o filho Vasco Antônio. Ele afirma que o Correio do Povo esteve presente em sua família desde a infância, quando o pai, o pecuarista e dentista Ernesto da Costa Gama, tornou-se assinante do jornal. “Eu sou assinante há mais de 50 anos e meu pai, com certeza, seria há quase 100 anos”, ressalta.

Em sua propriedade, em Guaíba, Costa Gama exibe arquivo de reportagens sobre sua vida como pecuarista. Foto: Ricardo Giusti

Gama entende que o Correio do Povo Rural foi um impulso para que a agropecuária se desenvolvesse no Estado. Bem informado, o produtor diz acordar já com o jornal à sua disposição retratando, nos dias atuais, o bom momento do setor, com excelentes preços para a carne e para os grãos. “Na safra passada, tivemos ótimo rendimento para o arroz, mas problemas com a soja, por falta de chuva”, recorda.

Gama relata que seu arquivo de recortes do Correio do Povo Rural tem grandes reportagens feitas nas propriedades da família nos anos 1960 e todos os registros de sua atuação, inclusive como pioneiro na introdução no Rio Grande do Sul da raça equina Quarto de Milha, dos búfalos e das minivacas. Além disso, guarda as menções às honrarias que recebeu, como as medalhas Assis Brasil (concedida pelo governo do Estado) e do Mérito Farroupilha (entregue pela Assembleia Legislativa), além do troféu Destaque Correio do Povo. “Se considerarmos só as exposições de animais, desde o tempo do Menino Deus, o Correio do Povo Rural teve papel fundamental para demonstrar a evolução das criações”, comenta. Na atualidade, Costa Gama acompanha todas as reportagens especiais do Correio do Povo Rural, as quais, segundo ele, “atualizam o produtor”.

O andar do agro no tempo

Qualquer pesquisa que se faça nas 2 mil edições do Correio do Povo Rural acaba mostrando como a agropecuária evoluiu desde 1958

PRIMEIRA EDIÇÃO

O suplemento de 6 de setembro de 1958 tratava da inauguração da 22ª Exposição Estadual de Animais e Produtos Derivados, no Parque Menino Deus, em Porto Alegre, com material sobre os campeões.

EDIÇÃO 1.000

Em outubro de 1977, o Correio do Povo Rural comemorava a sua milésima edição. A capa foi ilustrada com um desenho do arquiteto, professor e artista plástico José Lutzenberger.

EDIÇÃO 1.500

Em 13 de maio de 2012, o caderno abordava as transformações que a produção do leite estava passando no Rio Grande do Sul e as oportunidades que havia da época para o crescimento da ovinocultura

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895