Pequenos penalizados

Pequenos penalizados

Exigências normativas, logísticas e mercadológicas, entre outros fatores, impõem a necessidade de qualificação e escala, o que tem afastado muitos produtores de leite, sobretudo os menores, da atividade. Em apenas seis anos, o número deles caiu 52% no Rio Grande do Sul, de 84,1 mil para 40,8 mil, segundo levantamento da Emater/RS-Ascar

Por
Nereida Vergara

A vida das famílias que fazem da produção de leite sua principal fonte de renda vive um processo de transformação, não apenas no Estado, mas também no Brasil e em vários países do mundo. O Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no Rio Grande do Sul 2021, divulgado pela Emater/RS-Ascar durante a 44ª Expointer, indica que só vão subsistir os produtores capazes de acompanhar quantitativa e qualitativamente as exigências do mercado. O documento mostra que o número de gaúchos na atividade caiu 52,28% entre 2015 e 2021, de 84,1 mil para 40,8 mil.

Coordenador do estudo, o assistente técnico regional da Emater, Jaime Ries, reconhece que, para aqueles que não conseguem avançar na escala, fica cada dia mais difícil manter a produção. Segundo Ries, há uma projeção apontando que 23% dos agricultores que coletam entre 50 e 100 litros de leite por dia tendem a abandonar o ramo nos próximos anos e apostar em outros afazeres.

Os motivos para a debandada são muitos, a começar pelo alto custo de produção, que somente no último ano ultrapassou os 40% no Estado, por conta dos preços do milho e da soja, que são componentes das rações, e de outros insumos, como adubos e energia elétrica. Quem entrega pouco leite ganha menos, já que a indústria alega que, nestes casos, a logística de captação acaba sendo mais cara e o enfrentamento dos custos se complica. Mas Ries destaca que as razões para a desistência vão muito além disso. “São fatores internos da propriedade que estão determinando a migração de pessoas para atividades mais fáceis e economicamente mais atrativas, como o plantio de grãos e a suinocultura, por exemplo”, analisa. Falta de mão de obra, dificuldades na sucessão familiar e aposentadoria rural, quando a renda recebida mensalmente supera a obtida pela venda do leite, também estão entre as principais motivações.

Ao mesmo tempo em que diminui o número de produtores, a profissionalização daqueles que ficam eleva a produtividade. Em 2015, a Emater apurou que a média diária de produção de leite por propriedade era de 136 litros por dia, volume que em 2021 é 103% maior, chegando a 277 litros por dia. Graças a isso, no mesmo período, a coleta anual caiu apenas 3,15%, de 4,212 bilhões de litros para 4,079 bilhões de litros, embora 44 mil propriedades rurais tenham desistido dela. “Não estamos dizendo que a produção de leite vai deixar de ser atividade presente na agricultura familiar, mas o fator de remuneração, neste caso, é o volume”, complementa Ries.

Especialista em Economia Leiteira, o pesquisador Paulo do Carmo Martins, da Embrapa Gado de Leite, de Minas Gerais, confirma que a evasão de produtores de leite é um fenômeno que não se limita ao Rio Grande do Sul e nem mesmo ao Brasil. Ele observa que isso ocorre em várias partes do mundo e quase sempre pelos mesmos motivos: custos altos, dificuldade de sucessão nas propriedades e falta de assistência técnica que proporcione aos produtores ferramentas de gestão. O pesquisador cita cinco países como exemplo disso. Entre 1997 e 2016, o número de propriedades voltadas à produção leiteira caiu 10% no México, 14% no Chile, 35% no Brasil e no Uruguai e 49% na Argentina. No mesmo período, observa Martins, a produtividade aumentou 70% no México, 112% na Argentina, 139% no Uruguai, 172% no Brasil e 358% no Chile.

“Somente no Brasil, entre 2005 e 2020, os 14 maiores laticínios do país diminuíram de 6.035 para 2.446 o número de fornecedores, ao passo que a produção desses fornecedores saiu de 200 litros por dia em 2005 para 597 litros por dia no ano passado”, compara. Ou seja, o número de fornecedores foi reduzido a quase um terço, enquanto a produção praticamente triplicou. “Se pegarmos os 100 maiores produtores de leite do país, outra medida corrobora o aumento de produtividade: em 2009, este grupo produzia cerca de 11,4 mil litros por dia, quantidade que hoje chega a 23 mil litros por dia”, indica.

Se por um lado a evasão de produtores preocupa a cadeia leiteira, por outro os níveis de produtividade e qualidade alcançados nos últimos anos são motivos de comemoração. O vice-presidente do Conselho Paritário de Produtores/Indústrias de Leite do Estado do Rio Grande do Sul (Conseleite), Rodrigo Rizzo, ressalta que as Instruções Normativas 76 e 77, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), implantadas a partir de 2018, introduziram melhorias importantes na produção, embora penalizando os produtores muito pequenos. “Estes não tiveram condições de atender as exigências, como por exemplo entregar o leite a uma determinada temperatura, com resfriadores específicos, às vezes em regiões onde até a energia elétrica é ruim”, comenta. Ele também atribui a decisão de saída do ramo à valorização da soja e ao preço atrativo que passaram a ter nos últimos anos os arrendamentos. “Arrendar um hectare de terra pela saca de soja, em alguns casos, passou a ser muito mais rentável que o leite”, acrescenta.

Saída para a incerteza

Quem deixa a atividade tem futuro preocupante porque vai enfrentar dificuldades tanto para investir em outros segmentos quanto para voltar, se um dia quiser fazer isso

O entendimento de que o plantio de grãos é muito mais atrativo, menos penoso e mais rentável que a produção de leite tornou-se um dos principais impulsos para a troca de atividades, segundo o vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag), Eugênio Zanetti. Além disso, fatores como as dificuldades de sucessão na propriedade e de fixação dos jovens no campo também reduzem o tamanho do segmento. A entidade tem uma comissão do leite, composta por três representantes de cada uma das suas 23 regionais, que se reúne sistematicamente para discutir a situação.

“Uma das grandes razões para o desestímulo é a diferença de preço pago pelo leite para quem produz pouco e quem produz mais”, prossegue Zanetti. O dirigente diz que a diferença seria aceitável se o pequeno produtor recebesse 10% menos, mas observa que o desconto pode ser bem maior. “O argumento dos laticínios, de que custa muito buscar pouco leite em locais mais distantes, é duvidoso”, afirma. “Raramente um caminhão se desloca para ir buscar 50 litros de leite num lugar isolado; as indústrias planejam trajetos e passam pelos locais onde tem pequenos, médios e grandes produtores.”

Zanetti demonstra preocupação em relação ao destino de quem saiu ou está deixando o ramo, tanto pela dificuldade de retornar à atividade, caso venha a querer isso no futuro, quanto de investir em outros segmentos. “Há os que vão conseguir trocar gado leiteiro por gado de corte, ou investir no plantio de grãos, mas alguns vão para a cidade trabalhar em outra coisa e não se sabe como vão se sustentar”, comenta.

Paulo do Carmo Martins, pesquisador da Embrapa e especialista em Economia Leiteira, observa que a atividade exige grande empenho e tem um custo muito alto por litro, que muitos produtores só percebem quando estão empobrecidos. “Mas há saída para o Rio Grande do Sul nesta questão, pois os produtores são organizados e podem pensar em como agregar valor ao leite”, admite, destacando a importância de o Estado fazer a contabilidade das perdas, o que, segundo ele, dá uma noção de realidade que o restante do Brasil não tem. Martins sugere como estratégia para manter as famílias na atividade leiteira a criação de grupos de trabalho que estratifiquem as tarefas. Nesse sistema, alguns participantes se dedicariam à cria e recria, outros à produção de ração e outros ainda à produção do leite, por exemplo.

"Não digo nunca, mas se depender de mim, não volto a produzir leite"

Durante 10 anos, Adelar Koetz insistiu na produção de leite. Em Boa Vista, interior de Horizontina, ele começou o negócio com cinco vacas. Há dois meses, tinha 33 animais e entregava 18 mil litros de leite por mês para o laticínio Piracanjuba. Hoje, este movimento está parado e o foco está na criação de outros animais e plantio de grãos.

Os custos de produção altos, principalmente os relacionados à alimentação e aos preços do milho e da soja no último ano, fizeram com que Koetz desistisse do leite para sair do vermelho. Do plantel, 30 vacas foram vendidas em um único lote e três ficaram na propriedade para garantir o abastecimento da família. Equipamentos como resfriadores, ordenhadeira, ensiladeira e desensiladeira (usadas para preparar a silagem de milho) ainda estão aguardando compradores.

Koetz e a esposa, Denise, vão se desfazer dos equipamentos e concentrar apostas na criação de suínos e cultivo de grãos. Foto: Arquivo Pessoal

“Passamos anos sempre esperando melhorar, mas isso nunca ocorria e ultimamente (a renda) não estava nem empatando com o custo para produzir”, relata o agricultor, ao lado da esposa, Denise.

Além dos 10 hectares onde mantinha a criação de gado leiteiro, Koetz usa mais 20 hectares arrendados para a produção de grãos e voltou suas expectativas para isso. “Agora vamos nos dedicar aos suínos e ao plantio de trigo, milho e soja, que são trabalhos mais fáceis”, prevê.

Segundo o produtor, nos 10 hectares cultivados com trigo, a colheita deve chegar a um volume próximo de 50 sacos por hectare. No milho, recém plantado, e na soja, em preparação, as perspectivas também são boas. “Não vou dizer que nunca, mas se depender de mim não volto mais a produzir leite”, sentencia.

Redução de 42 para 4 vacas e de 750 para 50 litros por dia em cinco anos

Eloi Kollmann, de Lajeado Seco, também do interior de Horizontina, chegou a coletar 780 litros de leite por dia em uma área de oito hectares, num cenário econômico bastante diferente do atual. Na ocasião, tinha 42 vacas, 30 das quais em lactação, e todo o equipamento necessário para entregar a produção dentro dos padrões de qualidade exigidos pelo mercado. Depois de investir R$ 50 mil em animais e maquinário para as adequações técnicas, a família enfrentou as oscilações de preço e o aumento constante de custos, não conseguiu ter lucro e passou a operar no prejuízo. “Há cinco anos vendemos as vacas e os equipamentos para pagar parte do financiamento, mas ainda hoje eu devo ao banco por causa da produção leiteira. Devo menos, mas ainda devo”, admite o produtor rural. 

Eloi Kollmann e a esposa, Darli Terezinha, cuidam sozinhos da propriedade. As filhas optaram por trabalhar no meio urbano. Foto: Arquivo Pessoal

Para enfrentar o endividamento e equilibrar as contas, Kollmann também vendeu 2,8 hectares de terra, ficando com os 5,2 hectares que usa hoje prioritariamente para a suinocultura.

O produtor e a esposa, Darli Terezinha, cuidam sozinhos da propriedade. As duas filhas do casal não querem suceder os pais nas atividades rurais e decidiram procurar vida profissional no meio urbano. Atualmente, com apenas quatro vacas da raça Jersey, o produtor vem entregando cerca de 50 litros de leite por dia para a Cooperativa Agropecuária dos Agricultores Familiares Sete Voltas, especializada na região em captar leite de pequenos produtores para entregar a laticínios da vizinha Três de Maio. “É uma quantidade pequena, para ganhar um dinheirinho”, define Kollmann. “Não tenho condições de produzir novamente em escala”, reconhece.

Ajustes contra os custos

Mesmo que impactem pelo número significativo de famílias que deixaram a atividade entre 2015 e 2021, os dados levantados pela Emater também revelam que as que ficaram fizeram investimentos importantes na propriedade, para qualificar a produção. Em 2015, 72,3% dos produtores tinham na propriedade os resfriadores de expansão direta, percentual que chegou a 98,76% em 2021. O uso de aquecimento de água para limpeza de equipamentos, que era adotado por 38,70% das propriedades em 2015, saltou para 77,14% em 2021.

Na localidade de Passo do Guedes, em Sant'Ana do Livramento, Liliane Terezinha da Rosa Guedes está na parcela de produtores que resistem no segmento e buscam a agregação de valor para o leite. “Tudo ou quase tudo que nós temos é graças ao tambo”, diz Liliane, que administra o negócio junto com o pai, Edgar Braz, e o marido, Gilson Reppetto. Com 87 hectares de terra e em torno de 100 vacas em lactação, o estabelecimento produz diariamente 1,4 mil litros de leite. Em torno de 5% da produção vai para uma agroindústria implantada pela família em 2015, a Agrobraz, para elaboração de queijos e iogurtes, vendidos sob encomenda na região. O restante é entregue à Cooperativa Central Gaúcha Ltda (CCGL). Os investimentos, garante Liliana, são permanentes, para que a propriedade assegure a qualidade de seus produtos e a clientela.

Liliane Terezinha da Rosa Guedes e o pai, Edgar Braz, participam de negócio familiar que inclui agroindústria de queijos e iogurtes. Foto: Gilson Reppetto / Divulgação / CP

“No nosso caso, que estamos mais para médios produtores, o leite tem rentabilidade. Mas se entende a falta de ânimo do pequeno porque difícil está para todos nós”, diz a administradora, que já participou da associação de produtores da região e conhece os problemas do setor. Segundo Liliane, tem sido necessário um esforço permanente no ajuste dos processos de trabalho para fazer frente à escalada dos custos. “Aqui na nossa propriedade, por exemplo, passamos a fazer adubação orgânica das pastagens, mais barata que a adubação química”, revela.

Durante a pandemia, Liliane conta que sofreu de síndrome do pânico, sendo obrigada a parar para tratamento e dedicação às filhas pequenas, o que interrompeu o trabalho de experimentação de novos produtos para a agroindústria. “Graças a Deus, agora estou recuperada e com planos para os queijos. Estamos começando a produzir o nosso parmesão", orgulha-se, avisando que o primeiro lote deve ficar pronto em dezembro, após 100 dias de maturação.

Sucessão com entusiasmo

Casal de jovens de Pelotas quer elevar a produção de 7 mil para 15 mil litros de leite por mês nos próximos anos

Um casal de jovens de Colônia Osório, distrito de Pelotas, chama a atenção pelo entusiasmo com que se coloca na contramão da tendência apontada pelo Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite 2021, que identificou que 39,73% dos produtores que saíram da atividade reclamaram do desinteresse dos descendentes em prosseguir, o que gera uma deficiência crônica de mão de obra, sendo esta a causa principal das desistências. Desde que a mãe, Rita Emília Schwanke Neitzke, de 56 anos, decidiu se aposentar, após 38 anos de atividade, o filho mais novo, Murilo Schwanke Neitzke, e sua esposa, Lavínia Timm Schneider, passaram a administrar a propriedade e apostam no crescimento baseado no comércio do leite.

“Se está difícil para os outros, não sei, mas aqui conseguimos manter a margem de lucro. As vacas estão pagando as contas”, brinca o produtor. Neitzke tem apenas 21 anos, mas desde os 13 anos ajudava a mãe nas lidas do empreendimento, após o falecimento do pai. Junto com Lavínia, de 20 anos, maneja 15 vacas holandesas em lactação, que produzem, em média, 300 litros de leite por dia. “Entregamos um leite de excelente qualidade para a Coopar/Pomerano, de São Lourenço do Sul”, diz ele, estimando a produção mensal da família em 7 mil litros.

Murilo Schwanke Neitzke e Lavínia Timm Schneider criam animais com pasto irrigado e pensam em arrendar uma área para aumentar o número de vacas. Foto: Arquivo Pessoal

Os dois jovens trabalham em uma área de seis hectares, na qual cultivam pastagem irrigada em uma parcela de um hectare, o que garante o alimento dos animais mesmo em tempos de estiagem. A ração complementar das vacas também é produzida pelo casal, o que barateia os custos. Segundo Murilo, o suplemento feito na propriedade custa centavos, enquanto que no mercado o quilo da ração passa de R$ 3,00.

O casal revela que tem planos de arrendar mais área para poder aumentar o número de vacas e aumentar a produção, atingindo os 15 mil litros por mês. “Nosso objetivo é crescer cada vez mais”, ressalta Murilo.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895