Peritos têm papel essencial na solução de crimes

Peritos têm papel essencial na solução de crimes

Peritos criminais do IGP contam detalhes sobre seu trabalho, especialmente os cuidados nos cenários de crimes, o que inclui etapas como isolamento do local, observação e coleta de evidências para poder auxiliar na elucidação dos casos

A equipe de profissionais da perícia criminal muitas vezes precisa trabalhar em áreas perigosas e em situações nas quais ocorreram cenas extremamente violentas

Por
Felipe Samuel

Um homem de 51 anos foi encontrado pela Polícia Civil sem vida dentro do imóvel onde residia, no Centro Histórico de Porto Alegre. Eram 21h34min de uma sexta-feira fria de junho, quando a equipe de plantão do Instituto-Geral de Perícias (IGP) foi chamada para apurar as causas da morte. Em menos de 20 minutos, os peritos criminais chegam ao local. Na entrada do prédio, policiais civis e amigos da vítima aguardam a perícia técnica. A suspeita é de mal súbito ou suicídio. É mais um dia normal de trabalho para os profissionais que atuam no plantão do IGP.

O atendimento de uma ocorrência em uma região de baixa periculosidade, e com as características da morte da vítima, confere um ambiente mais tranquilo para o trabalho da perícia. Uma hora e meia após acessar o apartamento e analisar o cenário onde o homem foi encontrado morto, a equipe de peritos e futuros peritos retorna para a sede do IGP, no bairro Floresta. À frente do grupo que atendeu a ocorrência, a perita criminal Juliane Lorencena Chassot, 44, destaca a importância da participação desses profissionais na elucidação de crimes.

“Muitas vezes, colocamos a pessoa dentro da cena do crime através de DNA, de digitais. Às vezes uma prova testemunhal pode falar, ‘olha, não estive aqui, não sei, ninguém me viu’, mas, se tem uma digital naquela cena, é uma prova irrefutável a prova técnica”, explica. Conforme Juliane, os plantões de sexta-feira, normalmente, são marcados por crimes mais violentos e que envolvem a disputa pelo tráfico de drogas. “São coisas de facções, com 50, 60, 70, 80 tiros, coisas mais trash”, explica. Crimes em que o agressor é um familiar também exigem atenção redobrada dos peritos.

Ela lembra de uma chacina em que um homem matou quatro pessoas: a namorada, o filho dela (fruto de outra relação), a sogra e a sobrinha da sogra, que tinha ido a uma festa. “Cheguei ao local e ele tinha cortado todos os pescoços com vidro. Ele foi dormir na casa da mulher e houve um desentendimento”, lembra. “Ele enlouqueceu, matou todo mundo, inclusive o filho dela, de 7 anos.” O criminoso armou uma emboscada para a sobrinha. “Ele pegou o celular da sogra, enviou mensagem para a garota dizendo que precisava falar com ela, como se fosse a tia chamando. Quando a menina chegou, ele a matou do mesmo jeito. E tentou colocar fogo na casa”, observa. 

O fogo, porém, se exauriu e não chegou até os corpos. Ao chegar ao local do crime, Juliane suspeitou da participação do namorado da vítima no crime. Mas o próximo passo era colocar o sujeito “dentro da cena do crime”. “Quando o agressor é familiar, quando está dentro da casa, vai ter digitais dele em tudo que é lugar, e isso não vai provar que foi ele”, salienta. Ao entrar em um dos quartos onde estavam os corpos das mulheres, Juliane notou uma caixa de cereal com a ponta chamuscada e avaliou que nada indicava o consumo do produto no local. “O olhar do perito também é para coisas, às vezes, não tão óbvias. Não é um sangue, não é um estojo, não é uma faca, às vezes é um outro vestígio”, sustenta.

A experiência de quem atua há 12 anos como perita criminal reflete na investigação minuciosa dos crimes. “Se alguma coisa parece que está fora do lugar, eu digo que parece que brilha. A ponta da caixa estava chamuscada, como se alguém tivesse feito uma tocha. Então eu sabia que ele tinha colocado fogo na casa”, resume. O conjunto de provas reunidos pela perícia técnica, com a comprovação das digitais na caixa e do DNA dele, confirmou que o homem era o autor do crime. “Não adiantava ter uma digital simples em uma mesa. Ele foi condenado a 256 anos de prisão”, afirma, acrescentando que a perícia pode ser elemento decisivo em um processo jurídico.

Nem mesmo a rotina de apuração de crimes mais graves, como homicídios, é capaz de tirar o sono de Juliane. “Eu durmo bem”, garante. Porém, mesmo com a experiência de mais de uma década na perícia técnica, algumas ocorrências ainda mexem com a perita. “Um local que fiz nem tinha corpo da vítima, era violência doméstica. Tinha uma sangueira por tudo que é lado. Na cozinha eu vi que a mulher tinha sofrido e por isso demorei mais para fazer \[o laudo\]. Não é que seja um bloqueio, mas tu vais evitando entrar em contato com aquilo de novo”, relata. Crimes envolvendo tiroteio também são um desafio. “Tem casos com mais de 80 tiros. Imagina mais de 80 ferimentos? Já peguei com 54 facadas no corpo de uma pessoa e tu tens que descrever todas as posições”, recorda.

Formada em Direito, sonhava em ser delegada, mas acabou seduzida pelo concurso do IGP, que é um dos órgãos vinculados à Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, ao lado da Polícia Civil, Brigada Militar e Detran/RS. Apaixonada pela área criminal, soube da oportunidade no instituto e decidiu estudar por conta, em casa. E foi aprovada no concurso. Após concluir o curso de formação, ela aceitou o desafio de começar a fazer plantão aos domingos. “A gente não fazia locais de crime ainda, a gente trabalhava com bonecos, aqui na SSP. A gente fazia as aulas e aí conheci o plantão, onde estou há 12 anos. Nem imagino trabalhar em outro lugar”, afirma.

Amizade e trabalho em equipe 
A bióloga Luciana Farias Pereira, 42, sempre gostou de estudar genética. O sonho de trabalhar com DNA começou a se transformar em realidade a partir de um estágio no laboratório genético forense do IGP. “Aí conheci a perícia e me apaixonei. Decidi que queria ser perita, mas ainda era estagiária. Quando saiu o concurso, estudei, ‘me puxei’ e passei”, resume. No começo, Luciana, que ingressou no IGP junto com Juliane, imaginava que iria trabalhar no laboratório. “Quando fiz o curso de formação, conheci o atendimento de local de crime e me apaixonei. Nem penso em trabalhar em laboratório”, garante.

A amizade formada no início do curso com Juliane é simbolizada pela tatuagem de uma patinha de uma pantera que as duas fizeram no pulso. Outra amiga, atualmente lotada em Pelotas, também tatuou a imagem. Logo ganharam o apelido de “as panteras”, em referência ao seriado homônimo em que três mulheres são as protagonistas. “Simboliza a amizade e o trabalho. A brincadeira pegou e acabou ficando.”

Apesar do apelido ter se espalhado entre os agentes de segurança pública, Luciana ressalta que àquela época, há 12 anos, o número de mulheres no IGP era reduzido. “Era um universo bem masculino quando a gente entrou.” A parceria entre colegas só fortaleceu o trabalho em equipe. “Às vezes tu não estás prestando atenção em alguma coisa específica, mas teu colega vê e te dá um toque.” Ela lembra de uma ocorrência que em princípio era considerada como suicídio de um policial. O corpo do homem foi encontrado na cama com um tiro na nuca.

“Cheguei ao local e achei meio estranho”, afirma, destacando que a esposa da vítima tinha relatado que o marido havia atentado contra a própria vida. Uma marca de tiro na parede chamava atenção. “Às vezes é um tiro para testar a arma, mas eu achei incompatível. Aí o colega motorista disse que a esposa, que estava na rua, estava muito nervosa, fazendo perguntas”, destaca. “Ela estava muito nervosa, querendo saber muitos detalhes, o que eu tinha visto, o que eu achava, como é que tinha sido”, lembra. A perita questionou sobre o tiro na parede, o que aumentou o nervosismo da mulher, que relatou ter manuseado a arma para supostamente tentar ajudar a vítima. “Quando cheguei ao local, o tiro era na região occipital atrás da cabeça. Ele estava deitado na cama. Seria muito difícil, não impossível, segurar a arma, mas é uma região muito incomum. Aí quando eu vi aquele tiro, eu disse: a mulher está envolvida”, afirma.

Depois do exame, Luciana voltou para a rua para falar com a esposa da vítima, informando que ela precisaria fazer exame residográfico na mão, uma vez que ela tinha afirmado ter manipulado a arma. “Ela começou a chorar e ali mesmo confessou o crime.” Conforme Luciana, o homem tinha vários boletins de ocorrência por violência doméstica. “Isso não justifica (o crime), mas entendi o nervosismo dela, uma pessoa que já sofria várias formas de abuso”, recorda, destacando que se não fosse o alerta do colega talvez nem tivesse conversado com a autora do crime.

Por conta da demanda diária de ocorrências, o trabalho em equipe ganha ainda mais importância, uma vez que ao IGP compete, além de outras atribuições, as perícias médico-legais e criminalísticas, os serviços de identificação, o desenvolvimento de estudos e pesquisas em sua área de atuação. Entre os profissionais que atuam na área, Luciana também destaca a importância dos papiloscopistas, que têm papel fundamental na coleta de impressões digitais. “A impressão digital está ali. Mesmo se estiver misturada, eles podem pegar um fragmento papilar e conseguem fazer a apuração.”

Conforme Luciana, a presença desse profissional representa um diferencial nas investigações. “Têm estados em que o perito faz o exame papiloscópico. Não que não possa fazer, é claro que pode, mas no local de crime é complicado fazer a papiloscopia e mexer no corpo.” Na Capital, a equipe da perícia criminal conta, normalmente, com quatro integrantes. “Na maioria dos estados, não há quatro pessoas. Saem duas, geralmente, e é bem mais complicado. E a área de cobertura também é muito maior.”
Há cerca de dois meses, uma equipe passou a atuar no Litoral, o que desafogou em parte a demanda da Capital, que precisava se deslocar o grupo até o Litoral para fazer as perícias, além de atender a Região Metropolitana. “Já aconteceu de dar uma chamada em Torres e depois outra em Quintão. E aí vai a Torres e volta. É cansativo”, explica. Em alguns casos, Luciana lembra que a demora gerava revolta da população.

Mesmo com 12 anos de experiência, existem situações difíceis. “Tenho muita dificuldade também quando a família está junto, com choro, desespero. A vítima infelizmente já está morta, não temos mais o que fazer. Lembro que era uma das coisas mais difíceis no começo”, destaca. Em outros casos, as condições precárias de vida de muitas famílias provocam um sentimento de impotência. “Em locais de invasão não tem energia elétrica, não tem água encanada, não tem esgoto, não tem saneamento. Isso é uma violência também, muito difícil pra gente lidar, porque a gente não tinha ideia das condições em que as pessoas viviam.” Na avaliação de Luciana, o estresse por conta da profissão também deveria receber maior atenção do IGP. “A gente não tem (acompanhamento psicológico), cada um procura por si. Pagamos do nosso bolso”, critica.

Seriados estimularam a escolha da carreira
A perita criminal Marília da Costa Ribas, 51, também divide as noites de plantão no IGP com as colegas Juliane e Luciana. Perita criminal desde 2010, Marília descobriu a paixão pela atividade em 2002, quando fez o primeiro concurso. “Fiz sem grandes expectativas, cheguei a ser aprovada, mas não dentro das vagas. E pensei, é isso que quero fazer da minha vida.” O seriado norte-americano CSI, que retrata o cotidiano de investigadores e mostra o trabalho desses profissionais, também pesou na decisão pela carreira. “Abriu um edital em 2008 e começou a passar CSI aí na TV. Foi a primeira série que mostrava a perícia na TV”, lembra. “Independentemente daquela questão ser fantasiosa ou não, eu disse: ‘Quero ser perita, vou ser perita’.”

Assim como boa parte dos peritos, Marília diz que os seriados que mostram o dia a dia da investigação criminal têm peso na escolha carreira. “Quando você perguntar para as pessoas que desejam ser peritos criminais hoje, muitos vão dizer que querem ser perito de local de crime e a grande maioria olha seriado. Alguns vão dizer que querem trabalhar no laboratório, mas muitos vão dizer que querem trabalhar em local de crime”, garante. 

Antes de passar no concurso para o IGP, Marília – que é formada em Biologia – lecionou Ciências por mais de 20 anos em escolas do Estado e do município. O ingresso no IGP, no entanto, foi a realização de um sonho. “Fomos chamadas eu, a Luciana e a Juliane em 2010. A gente fez curso de formação por três meses e entrou juntas em local de crime. Elas seguiram desde 2010. Eu fiquei em local de crime, trabalhei na gestão, trabalhei no laboratório, fui responsável pelo interior e trabalhei na Secretaria de Segurança Pública”, destaca a perita criminal.

Marília reforça o orgulho e a importância da profissão. “Chegar a uma autoria de um crime é fantástico. Ou a gente chegar a alguma possibilidade de saber a dinâmica, o que aconteceu, onde as pessoas estavam, como estavam, como aconteceu o crime é fantástico. É uma sensação de trabalho cumprido.”

Apesar de desempenhar outras funções dentro do IGP, em 2019 ela decidiu deixar o trabalho no laboratório para voltar a atuar na perícia em local de crime. “Entre as coisas que eu gosto na perícia, uma das coisas que sei fazer de melhor é trabalhar em local de crime. Então eu pedi pra voltar faz dois anos.” Os tipos de ocorrências são as mais variadas, como homicídios e suicídios. “Por que a gente atende os suicídios? Porque a gente tem que fazer o que a gente chama de diagnóstico diferencial, que é analisar uma cena de crime, tudo que tem lá, vítima, vestígios e tal. Eu preciso dizer que o que tem naquela cena realmente tem as características de suicídio. Por exemplo, uma pessoa pegou uma arma de fogo e atirou contra si mesma e foi um suicídio, e não que foi um homicídio tentando parecer um suicídio”, ressalta.

Crimes que envolvem muita violência são desafio 
Os homicídios em locais dominados pelo tráfico de drogas, que apresentam altos índices de violência, são um desafio adicional. “A gente tem que ter um cuidado porque quando vai até o local para fazer o atendimento o agressor que talvez tenha atirado naquela vítima que eu vou periciar pode estar lá do lado da fita de isolamento olhando para gente”, frisa Marília. A análise apurada da cena dos crimes também reflete a experiência de mais de uma década à frente de investigações. Em casos complicados, os peritos são obrigados a montar um verdadeiro quebra-cabeças para elucidar o crime. “Um homicídio, por exemplo, com arma de fogo, seja pistola ou revólver, não demanda tanta aproximação do agressor com a vítima. A gente não vai dizer que os homicídios com arma de fogo são mais caracterizados por terem coisas pessoais das pessoas. Pode ser uma negociação de dinheiro, de tráfico, de coisa assim. Agora homicídios com arma branca, por exemplo, as pessoas precisam ter uma proximidade corporal maior. E onde é que a gente vê homicídios por arma branca? Não é só nesses casos, mas acontece nos feminicídio, por exemplo, por quê? Porque todo mundo tem faca em casa e o meio é muito mais acessível do que um revólver ou uma pistola”, afirma.

A coleta de vestígios em uma cena do crime, como sangue e munição, também exigem técnica apurada. Quanto mais vestígios existirem no local, mais trabalho vai sobrar para os peritos. “A gente vai registrar tudo. No minuto que a gente acabar com o isolamento, acabou de ser pronto, de periciar, aquilo vai ser desfeito. Um homicídio em via pública vai durar o tempo que estiver isolado o local. Eu terminei a perícia, a Polícia liberou o local, nunca mais ele vai se repetir. Onde é que ele vai estar materializado? Naquilo que eu escrever no meu laudo, nas fotografias que eu colocar”, explica. Em zonas de conflitos, o perigo é ainda maior. “Preciso estar atenta e se estou em uma zona, por exemplo, onde acabou de acontecer um tiroteio, não tenho três, quatro, cinco horas para ficar naquele local. Vou ter que chegar, ser detalhista e ao mesmo tempo me preocupar com a minha segurança e a da equipe que está comigo”, frisa.

Para garantir um serviço de excelência, Marília recomenda aos futuros peritos constante atualização e participação em congressos, que servem para trocar experiências com colegas de outros estados. “No Rio Grande do Sul, o atendimento é um modelo, no Norte e Nordeste é outro modelo. No RS, hoje, a gente tem um perfil de quantos são homicídios com arma de fogo, com muitos usando pistola com bastante munição. Quando entrei, isso não acontecia assim, a gente tinha muitos homicídios com revólver.”
Segundo Marília, muitos crimes com armas de fogo no Estado envolvem pistolas. “Quando eu chegar lá no local para analisar os vestígios, vou ter condições de, se tiver componente de munição, dizer, por exemplo, se uma pistola de que calibre foi usada na ocorrência ou se possivelmente foi utilizado um revólver”, destaca.

Ela afirma que desvendar um crime envolve várias engrenagens que precisam funcionar em harmonia e em determinada sequência para garantir a materialidade, e não só uma prova testemunhal. “A gente abre a primeira porta quando atende local de crime. Depois tem uma infinidade de exames, que pode ser balística, pode ser exame de arma, de munição, de uma carta de suicídio, pode ser uma análise de medicamentos que foram apreendidos.” 

Marília também passa orientações valiosas aos novos peritos que acompanham o trabalho dos mais experientes. Ela incentiva os mais novos a participarem efetivamente das atividades de apuração. “A gente precisa anotar quem são os responsáveis pelo isolamento, quem são os policiais na cena. E oriento a colocar um par de luvas, porque a gente tem que ficar trocando de luvas durante a cena”, explica. “Isso facilita o trabalho e protege a questão biológica. São coisas muito pequenas que às vezes a gente fala, a gente dá exemplos de laudo e a gente discute casos. Eu acho que é o melhor jeito de aprender”, completa. Um caso atendido pelo grupo em maio despertou atenção dos peritos, pois a posição da calça da vítima parecia estranha. “Todos ficamos nos perguntando o que levaria uma pessoa a colocar aquela ordem de peças, calça, bermuda e tal. Não chegamos a uma conclusão, mas debatemos com todas as pessoas que estavam de plantão no dia, com os alunos e o plantonista responsável. É um jeito de a gente fazer sempre estudo de caso”, observa.

Entre os casos mais difíceis, ela destaca os que envolvem crimes com disparos de muitas munições diferentes e apresentam um nível de violência muito grande. “Qualquer homicídio que tenha alto grau de violência envolvido é difícil. Uma porque vão ter muitos vestígios, então, quanto mais vestígios tiver, mais a gente vai precisar trabalhar naquela cena e mais eu vou precisar pensar na dinâmica do que aconteceu.”

Sobre a importância dos peritos na investigação criminal, Marília salienta que todos os elos da segurança são complementares. Em casos envolvendo homicídios, geralmente são despachadas equipes da Brigada Militar. Se confirmar que houve tiroteio com vítimas, a Polícia Civil é acionada. “Se tem pessoa morta, tem sangue, munição, vestígios, precisa ser feita perícia. Obrigatoriamente, pela lei. Só a Polícia Civil não resolve porque quem vai materializar a cena do crime é a perícia.”

Todo detalhe é importante para a perícia técnica
Tutor de quatro profissionais que vão para o interior do Estado, o perito criminal Lucas Eddris Lyra Moniz, 31, tem o desafio de passar um pouco da sua experiência para os jovens recém-formados. Prestes a completar quatro anos no IGP, Moniz atuou por quase dois anos em Pelotas, na região Sul, onde as dificuldades são maiores por conta do número reduzido de profissionais na função. Ele lembra casos curiosos, quando precisou utilizar barcos para acessar locais para efetuar a perícia. “Uma vez, em Pelotas, tive que fazer a travessia de Rio Grande para São José do Norte e, em uma segunda situação, tive que acessar de barco um local onde um pescador foi eletrocutado”, lembra.

Em uma ocorrência como a acompanhada pela equipe de futuros peritos na Capital, onde um homem foi encontrado morto dentro de casa com suspeita de mal súbito ou suicídio, este mês, Moniz destaca os principais pontos que devem ser observados. “Quando a gente entra em um caso que tem encontro de cadáver dentro de uma residência, é sempre bom verificar os meios de acesso ao apartamento. A porta estava arrombada? Se estava arrombada, estava de dentro para fora ou de fora para dentro? Tinha chave no interior do imóvel? Mora sozinho, mora com alguém? Posição do cadáver. Se possível, observar quanto tempo ele está ali ou não. Tem indícios de terceiros na cena? São várias questões básicas. Todo caso é um caso novo, e pode surgir uma situação nova.”

Nesses casos, a chegada dos peritos é aguardada por familiares e amigos da vítima. Ele destaca que o prédio onde foi encontrada a vítima tinha acesso por escada, o que dificulta a remoção do corpo. “Cada local tem um tipo de atendimento e um tipo de dificuldade. Muitas vezes o atendimento é em uma via pública, em uma vila, e acontece de a população estar inflada, revoltada com a violência daquele local. Tem locais mais tensos e normalmente a gente acaba prestando mais atenção à nossa segurança no local em que a gente está trabalhando.”

Conforme Moniz, existem coisas básicas que exigem atenção. “Especialmente quando ocorre em um local desses, os populares geralmente acionam a Brigada Militar, que aciona a Polícia Civil e aí somos acionados. Essa informação vai correndo de instituição em instituição. Muitas vezes a informação chega para a gente de forma equivocada. A gente tem que chegar ao local e avaliar se tem condição de ser isso ou é outra coisa, para relatar a cena e tudo que a gente observa para, no final, conseguir expedir o parecer técnico, que é nosso laudo”, explica.

Sobre os desafios enfrentados na profissão, ele avalia que cada dia de trabalho é uma “caixinha de surpresas”. “A gente chega aqui um pouco antes das 8h, que é quando tem início nosso plantão, não sabemos para onde vamos, o que vamos atender e que horas vamos conseguir almoçar, comer. A gente tem que estar sempre com muita atenção. Hoje estou na função de tutor de novos peritos que estão chegando”, frisa. Para Moniz, o trabalho da perícia é fundamental para investigação criminal, embora muitos casos acabem se revelando mais difíceis.

Em algumas situações, a presença de vestígios pode levar a conclusões conflitantes. “Muitas vezes, com o uso de entorpecentes em excesso, a pessoa surta em casa, quebra tudo, se autolesiona e acaba com morte. Você chega à casa, a cena está completamente desfigurada, a geladeira caída, sangue espalhado e foi um surto da pessoa. Passar isso para um laudo, explicando esses requisitos e os detalhes técnicos que você viu é bem complexo”, frisa. “Pode parecer uma luta, uma briga e aí é onde você vai analisar acessos, quem tinha acesso, se estava fechado ou não, se só ele tinha condição de estar ali dentro. Então cada situação tem infinitos tipos de perícias que podem apresentar essa dificuldade”, destaca.

Natural de Brasília, Moniz é formado em Engenharia Civil. E foi durante uma palestra de um perito criminal, ainda na época da graduação, que se identificou com a área. “Fiquei encantado com aquilo e encontrei uma área que definitivamente me chamou atenção”, recorda. Mesmo assim, concluiu o curso e trabalhou três anos em uma construtora, até 2015, quando optou por mudar de carreira. “Saí da construtora e decidi me dedicar ao estudo para carreira de perito criminal. Tive um período até breve de estudo, um ano e quatro meses, que foi quando consegui ingressar no concurso de perito criminal do Paraná e, posteriormente, no concurso de perito criminal aqui do RS”, destaca. Em 2018, foi chamado para assumir a vaga no IGP.

A distância dos pais, que residem em Brasília, não chega a ser um problema. Isso porque a família já está acostumada a ganhar o mundo em busca de uma vida melhor. Moniz lembra que o pai, Jorge Erau Moniz, 65, natural de Guiné-Bissau, deixou o país da costa Atlântica Ocidental na década de 90, após lutar durante a guerra civil. Tentou a vida na Europa, mas acabou no Brasil, onde estudou e conheceu a esposa, Dirlene, 55. “Ele veio para cá para tentar a vida mesmo, porque tinha guerra civil. Ele era de guerrilha, perdeu amigos, se traumatizou e decidiu fugir”, frisa.

Moniz, que carrega do alto dos seus 2 metros de altura um penteado com tranças ao melhor estilo dreadlock, se sente privilegiado de ocupar o cargo de perito. E reforça a importância de políticas públicas voltadas à reparação histórica e à necessidade de ações afirmativas. “Estamos na sessão de atendimento ao local, atendimento externo, crimes contra a pessoa, que é basicamente é morte violenta: homicídio, suicídio, latrocínio. A gente vê muita presença da população negra como vítima. Eu, filho de africano, me vejo como privilegiado de estar ocupando um cargo desses”, observa, lembrando que ingressou na Universidade de Brasília (UnB) por meio do sistema de cotas.

Para Moniz, essas ações podem ajudar a diminuir a desigualdade social no país. “Na maioria dos nossos atendimentos que envolvem situações de homicídio ou situações de violência há a presença de negros como vítimas, a gente vê a presença de negros como os moradores majoritários do local”, observa. Moniz também lembra de episódios de discriminação que passou na corporação. “Quando cheguei ao IGP, na Capital, perguntaram se eu era o novo motorista”, destaca.

Busca de soluções com uso de técnica e ciência
Aprovado no concurso para perito realizado em 2017, Osmar Cassemiro de Oliveira, 31, foi chamado para assumir o cargo quase cinco anos depois da prova. Natural de Senhora de Oliveira, em Minas Gerais, município localizado a 170 quilômetros de Belo Horizonte, Oliveira, que é um dos 31 novos alunos, concluiu o modulo básico do curso de formação e já acompanha os peritos mais experientes no atendimento de ocorrências. “Esse módulo prático compreende os plantões de 24 horas, como esse que a gente acompanhou, não só de locais, mas a gente também acompanha o pessoal do trânsito, que é uma outra sessão que tem aqui, que envolve acidentes de trânsito”, explica o perito.

Um tutor acompanha as atividades executadas pelos futuros peritos nos locais de atendimentos durante a semana, como o Exame Pericial em Numeração Identificadora de Veículos Automotores (EPNIVA), que são perícias veiculares para identificar alguma fraude. “Fizemos ações em depósitos onde estão veículos que se envolveram em algum acidente e foram enviados para o depósito”, destaca, ressaltando que as atividades práticas têm sido variadas durante o curso. Bacharel em Engenharia Mecânica, Oliveira atuou por um período na indústria até ser chamado para a vaga no IGP.

A paixão pela perícia criminal surgiu através da série norte-americana CSI, que retrata o cotidiano de um grupo de investigadores forenses em um laboratório criminal de Las Vegas que se empenha para resolver crimes. “Depois de passar por três meses de curso de formação e conseguir enxergar a perícia por dentro, é muito interessante observar o papel da perícia em busca de soluções de crimes ou na resposta que muitas vezes a sociedade busca e que é possível apenas com o trabalho técnico e científico, que é o que de fato a perícia representa”, afirma. Oliveira reforça que os novos peritos estão recebendo uma formação diferenciada, uma vez que vão ocupar vagas do IGP em municípios do interior do Estado.

No caso de Oliveira, o destino será Uruguaiana, na Fronteira-Oeste, onde ele deve se deparar com uma estrutura mais enxuta do que a da Capital e atender ocorrências dos mais variados tipos, como homicídio, latrocínio, acidentes de trânsito e de trabalho. “No Interior, a gente acaba tendo que atender tudo. Então, são coisas diferentes que vão aparecer no dia a dia e pode ser uma novidade a cada atendimento”, projeta. Para Oliveira, a importância do perito criminal muitas vezes passa despercebida do público. “Não é uma coisa que está muito próxima das pessoas”, afirma.

As principais orientações repassadas durante as ocorrências na companhia de tutores são referentes ao isolamento do local do crime, considerado o bê-a-bá na perícia. Os novos peritos também estão recebendo formação para lidar com questões envolvendo custódia de cadeia, que vai englobar um conjunto de procedimentos que vão registrar desde quando um vestígio foi encontrado em uma cena de crime, quem o coletou e de que forma, como armazenou, entre outras coisas. “Então, a questão de isolamento e de quem fez a guarnição é muito importante”, alerta.

Conforme Oliveira, durante o módulo prático, duas equipes atendem às ocorrências, uma com os peritos mais experientes e outra com os profissionais em formação. Cada grupo conta com perito, fotógrafo, papiloscopista e motorista. “A gente gosta de acompanhar o contato entre o perito que irá fazer o atendimento juntamente com a Polícia Civil. O perito tutor sempre nos dá esse apoio, dá esclarecimento de como devemos nos portar no local, porque cada local tem uma forma”, salienta.

O aprendizado com o perito mais experiente permite os primeiros contatos com cenas de crimes e como proceder durante a coleta de provas, na identificação de vestígios e na formulação de possíveis dinâmicas. “Quando a gente volta para a base sempre tem essas discussões entre peritos, porque é um local mais apropriado. No local (do crime) às vezes existem curiosos, familiares, e não é um ambiente muito propício. E também para poder fazer uma liberação mais imediata”, ensina. “O pessoal chega ao escritório e começa a montar o quebra-cabeças. É dessa forma que eu tenho visto aqui”, acrescenta.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895