Problemas que não se resolvem

Problemas que não se resolvem

Casas prisionais com ocupação muito acima de suas capacidades, pessoas detidas mantidas em delegacias ou até em viaturas, falta de ressocialização para quem deixa o sistema prisional

Por
Christian Bueller

A cena já é corriqueira em frente à 2ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (2ª DPPA), que fica no Palácio da Polícia, bairro Santana, em Porto Alegre. São comuns situações de presos algemados em viaturas da Brigada Militar. Os carros ficam fora de serviço, parados, em frente às delegacias para servir de celas. Dia após dia, moradores da região cruzam com detidos custodiados, que aguardam abertura de vagas no sistema prisional. Por conta do transbordamento de vagas, os detidos esperam enquanto as pessoas passam. “Uma vez, minha filha de 6 anos perguntou do que se tratava e tive de explicar. Fiquei constrangida de ver isso em plena avenida Ipiranga, uma das maiores da cidade”, conta a publicitária Paula Rodrigues, 42 anos. Segundo a socióloga especialista em segurança pública, Aline Kerber, estas improvisações que ocorrem há pelo menos cinco anos, são a prova de que “a política de segurança pública e justiça criminal está equivocada”. “Prendendo muito, prendendo mal e não possibilitando que possa virar este jogo porque, sendo assim, se fortalecem as facções”, explana.

De acordo com o site da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), no mais recente levantamento, de 10 de setembro de 2021, a população carcerária no RS é de 42.747 pessoas. O sistema carcerário gaúcho enfrenta um déficit que chega a 16 mil vagas. O resultado são presídios superlotados. A Cadeia Pública de Porto Alegre, a maior do Estado, com capacidade para aproximadamente 1,7 mil presos, conta atualmente com cerca de 4,5 mil. O presídio já foi considerado um dos piores do país pela CPI do Sistema Carcerário, em virtude da superlotação e do mau estado de conservação.

Uma das promessas do atual governo estadual era a criação de novas vagas e estabelecimentos penais modernos e adequados para cumprimentos das penas. Mas, nestes três anos, a situação permanece a mesma. Além disso, o fato de estarem no sistema prisional não significa necessariamente o isolamento dos criminosos. Em janeiro deste ano, “viralizou” a cena de um detento que fazia transmissões ao vivo nas redes sociais de dentro da Penitenciária Estadual de Charqueadas.

No Dia do Servidor Penitenciário do RS, 12 de setembro, o governador Eduardo Leite anunciou o chamamento de 410 agentes penitenciários e 136 agentes penitenciários administrativos do concurso público vigente. “O governo do Estado tem investido fortemente em segurança. Além de armamentos e de viaturas, também estamos construindo unidades prisionais e promovendo o reaparelhamento de toda a nossa rede que compõe os sistemas penal e socioeducativo”, afirmou Leite. O secretário de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo (SJSPS), Mauro Hauschild, pontuou que este anúncio faz parte do processo de reconhecimento do sistema penal na política de segurança pública. “Os resultados do esforço feito pelo governo para equilibrar as contas do Estado do Rio Grande do Sul permitem que se possa investir na ampliação e na qualificação do quadro funcional da Susepe. O sistema prisional e a sociedade gaúcha ganharão muito com a chegada desses novos servidores para fortalecimento das ações de segurança pública”, ressaltou. O superintendente da Susepe, José Giovani Rodrigues de Souza, destacou que o chamamento é mais uma demonstração da importância do sistema penitenciário para o governo do Estado, possibilitando reforçar o quarto eixo do programa RS Seguro na segurança pública, que é o sistema prisional.

No entanto, para o presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários do RS (Amapergs), que representa 7 mil profissionais, Saulo Felipe Basso dos Santos, o déficit de pessoal no sistema ainda está longe de ser sanado. Vinculado ao Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) diz que a proporção de presos para cada agente penitenciário no Brasil deve ser de 5 para 1. “Nenhum sindicato ou associação tem ingerência sobre este conselho”, ressaltou. “Então, se são 43 mil presos, teríamos que ter 8,6 mil agentes, mas temos, atualmente, em torno de 4,5 mil, mais ou menos a metade. Portanto, o Estado está trabalhando com um déficit de agentes de cerca de 50%”, destaca Santos.

O risco também chega aos policiais civis, segundo o Sindicato dos Agentes da Polícia Civil do RS (Ugeirm). Além dos perigos de rebelião ou tentativa de fuga, a entidade lembra da disseminação ainda possível da Covid-19 entre os presos e a própria população. Os presos, em algum momento, terão que sair das delegacias e poderão levar o vírus para os presídios gaúchos. O presidente do Ugeirm, Isaac Ortiz, diz já ter apelado aos poderes do Estado. “Judiciário, Ministério Público e Legislativo precisam tomar alguma providência. Existe uma decisão judicial que obriga o Executivo a retirar todos os presos das delegacias, mas parece que a vida dos policiais que estão nas delegacias não tem importância”, reclama. Segundo Ortiz, o próprio Tribunal de Justiça reconheceu que essa situação pode ser considerada um “crime contra a humanidade”.

Pela ótica dos cabos e soldados da Brigada Militar, responsáveis por custodiar os presos enquanto aguardam vagas nos presídios e abrangidos pela Associação Beneficente Antônio Mendes Filho (Abamf), a preocupação é a mesma. A entidade costuma verificar in loco este tipo de ocorrência e busca conversar com os policiais em serviço. “Às vezes quatro, cinco, seis viaturas estacionadas em frente à área judiciária, que poderiam estar protegendo a sociedade, paradas em uma inversão de valores. Onde está a função do Estado? Onde estão vagas do sistema carcerário?”, chegou a perguntar o vice-presidente da Abamf, Jairo Rosa.

Em Porto Alegre, tem sido comuns situações em que pessoas detidas permanecem algemadas em viaturas da Brigada Militar, que servem de celas em frente a delegacias. Foto: Alina Souza

Soma de problemas

Atualmente, são 153 casas prisionais no Rio Grande do Sul. Em média, há um presídio no Rio Grande do Sul a cada três cidades. O presidente da Amapergs lembra que “diversas dessas casas prisionais não foram construídas no passado para serem cadeias”. Segundo ele, alguns destes locais foram criados com esta finalidade, mas ainda assim enfrentam uma realidade diferente. “Falta de servidores e estabelecimentos de pouca estrutura se tornam uma bola de fogo”, diz Santos. Um exemplo disso é a situação do Presídio Regional de Passo Fundo, que tem capacidade para 300 detentos, mas, em 3 de setembro deste ano, mantinha cerca de 700 atrás das grades. “Lembrando que é a própria Susepe a responsável pela engenharia em cada construção das casas prisionais”, completa.

A regulamentação profissional da Polícia Penal é outro ponto preocupante na visão de Felipe Saulo Basso dos Santos. “O Rio Grande do Sul é o estado mais atrasado da federação neste tema. Foi aprovada pelo Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 104, em 2019, que cria esta polícia e os estados precisam fazer suas adequações. Entre os cinco ou seis estados que ainda não regulamentaram, está o Rio Grande do Sul, que, até dois meses atrás, não havia encaminhado o projeto à Assembleia Legislativa”, salienta. Segundo ele, o texto foi encaminhado em junho.

Mas uma das bandeiras mais fortes da Amapergs no momento é a luta contra a perspectiva da adoção de parcerias público-privadas (PPPs) nas penitenciárias gaúchas. A classe, segundo Santos, é contra. “Se fragiliza o servidor e desgasta o sistema pensando que as PPPs são soluções mágicas. O governo do RS não costuma participar dos debates em que estamos. Já visitamos lugares com este contexto e a realidade que encontramos é muito cruel”, garante o líder do sindicato. Conforme o que testemunhou, Santos diz que viu empresas parceiras dos Estados pagando R$ 1.300 por mês aos profissionais. “Vimos situações em que agentes tinham algum vínculo com apenados. Claro que não seria a regra, mas o Estado corre o risco de perder o controle dessa situação”, adverte. Para ele, a economicidade também seria afetada porque, atualmente, um detento custa R$ 2.400, valor que aumentaria com privatização do sistema. “Estudos, até mesmo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), dizem que o preso em um sistema privado custaria de R$ 3.500 a R$ 5.500. Muita gente não sabe, mas alguns serviços dentro das cadeias não geram custos, como manutenção, pequenas obras, limpeza e cozinha, são feitos pelos detentos”, ironiza Santos. Segundo ele, quem sugere isso são representantes de governo que não conhecem a realidade de uma penitenciária e “só as visitam quando estão ‘maquiadas’, como muito acontece”.

Recentemente, o secretário de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, Mauro Hauschild, e o superintendente da Susepe, José Giovani Rodrigues de Souza, visitaram o Complexo Penitenciário Público-Privado (CPPP), no município mineiro de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, para conhecer o modelo de gestão público-privada. Na ocasião, o secretário relatou que o intercâmbio foi de grande valia e serviria de norte para os trabalhos no Rio Grande do Sul. “Toda troca de experiência e de conhecimento é sempre importante, porque nos permite ver o que outros acertam, comparar com o que nós fazemos e adaptar às realidades locais”.

Segundo Santos, a Amapergs pediu para ser informada da decisão do governo do Estado sobre a modelagem escolhida, caso a PPP ocorra de fato. “É até uma questão de respeito com o sindicato que trata dos agentes penitenciários e das outras funções do sistema prisional”, projeta. De acordo com ele, a classe é contrária ao modelo, ainda, por transparecer “uma incompetência do governo em inovar” e que, por isso, “joga o problema para frente, para governos adiante ficarem pagando”, sem resolver. Santos destaca que não é contra parcerias em si e lembra de dois casos bem-sucedidos. “Não somos radicais. O Rio Grande do Sul trocou dois terrenos para construir a Penitenciária Estadual de Porto Alegre (Pepoa) e a Penitenciária Estadual de Sapucaia do Sul (Pess), que são referência quanto à estrutura, são muito boas as construções, e levantadas em tempo recorde”, esclarece.

Em 16 de setembro de 2020, o governo do Estado e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assinaram contrato de estruturação de PPP para um novo complexo penal no município de Erechim. O pontapé inicial dos estudos de viabilidade do projeto ocorreu em dezembro do mesmo ano. O projeto, na modalidade de concessão administrativa, prevê a construção, equipagem e manutenção do complexo penal com capacidade máxima de 1.125 presos do sexo masculino. A ideia do governador Eduardo Leite é que este presídio seja o primeiro neste formato no RS. A definição da modelagem deve ocorrer até o final de ano, quando está programada audiência pública sobre o projeto para posterior envio da documentação ao Tribunal de Contas. A expectativa é de que o edital da PPP seja lançado no primeiro trimestre de 2022 e o leilão e a assinatura do contrato ocorram ainda no ano que vem. “O Piratini deverá nos sinalizar, mas o diálogo é mais para dizer que o sindicato foi informado. Quando chamam para um grupo de trabalho, geralmente, ganhamos um assento e eles indicam dez, 11, 12”, desabafa o presidente da Amapergs.

Na ativa há dez anos, Santos lamenta por um reconhecimento que a categoria não tem, mesmo sendo uma das poucas que não parou durante a pandemia. “Todo mundo deu um passo atrás, mas nós, da área de segurança pública, não só os do sistema prisional, juntamente aos profissionais de saúde, não fizemos o isolamento social, ao contrário, demos um passo à frente. Também temos familiares em grupos de risco, risco de contaminar filhos, pais e avós. Temos os mesmos problemas que todos têm. Mas não abandonamos o barco. Merecemos um tratamento diferenciado”, argumenta.

Além de os detidos ficarem em condições muitas vezes desumanas, algemados às viaturas, os carros que poderiam estar nas ruas ficam fora de serviço. Foto: Alina Souza

Poderia ser solução

Uma área de quase 15 mil metros quadrados. Ali, deveria existir uma penitenciária masculina, a Cadeia Estadual de Guaíba, na região metropolitana. A cerca ao redor do presídio está tomada de mato alto, superior a 2 metros, e o portão que dá acesso à obra está corroído pela ferrugem, preso apenas com um cadeado, mas que não chega a impedir a entrada. Um aviso de boas-vindas, apagado pelo tempo, segue pendurado, apesar do movimento nulo de pessoas. O que seria uma solução, por enquanto, ainda é um problema, principalmente para quem vive perto das obras. É o caso do aposentado Paulo Ramos. Para ele, a penitenciária, que manteria presos afastados do convívio social, se tornou um fator de insegurança na região. “Não tem portaria para cuidar. Fica tudo escuro, já roubaram todos os fios elétricos. Ficou bem ruim”. As paredes internas da estrutura acumulam limo, o concreto não esconde o desgaste, já que as chuvas inundaram alas inteiras, construídas com o dinheiro dos contribuintes. Com as obras paradas, a estrutura foi abandonada. Além de as galerias estarem alagadas, os portões de ferro são pura ferrugem, que soltam a cada vez que alguém coloca as mãos.

Em 2008, quando o anúncio da construção da penitenciária foi feito pelo governo de Yeda Crusius (PSDB), a obra havia sido orçada em quase R$ 16 milhões. Segundo o atual governo gaúcho, 52% da obra foi executada. A empresa contratada para a execução recebeu aproximadamente R$ 10 milhões, mas não concluiu o trabalho. Desde 2010, pelo menos duas vezes o termo de finalização das obras precisou ser revisto e foi adiado. Em 2017, a gestão estadual chegou a anunciar o final da obra para o segundo semestre daquele mesmo ano. O contrato com a empresa foi rescindido por abandono da obra. “Ao longo de todo o processo de execução do antigo contrato, foram recebidas várias solicitações de pedidos de aditivos, de valores e de quantitativos de serviços. Isso ia ao desencontro do que era constatado pela nossa comissão de fiscalização”, explicou Caroline Rigon Benedetti, diretora do Departamento de Obras Públicas na Secretaria Estadual de Obras do Rio Grande do Sul. Contatada, a empresa não se manifestou.

O prefeito de Guaíba, Marcelo Maranata (PDT), diz que “toda obra parada é um prejuízo, não só para a construção civil, mas também pela questão carcerária”. Atualmente, para a retomada do projeto, seriam necessários mais R$ 17 milhões, de um total de R$ 27 milhões. Segundo Caroline, há recuperações estruturais decorrentes da ação do mau tempo. A obra fica numa área rural no município de Guaíba, onde já funciona a Penitenciária Estadual Feminina. A Penitenciária Estadual de Guaíba já era vista como parte de uma solução para a demanda carcerária. Em julho deste ano, o Diário Oficial do Estado publicou o resultado das propostas de preços para a continuação e eventual conclusão da obra. Uma empresa de Brasília foi a escolhida para que, no prazo de 12 meses, entregue o presídio pronto.

Metodologia Apac

Recentemente, ocorreu a assembleia de constituição e fundação da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) Feminina de Porto Alegre, no auditório do Ministério Público do RS, com a posse da advogada e professora Simone Schroeder, eleita presidente da entidade na Capital. A metodologia Apac é referência na inclusão social de apenados, sendo atualmente utilizada em 18 países e em pelo menos dez estados do Brasil. Nas Apacs, os próprios presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica, dentre outras prestadas pela comunidade. Simone enfatizou que é uma iniciativa promissora e destacou a participação de 33 mulheres que trabalharam ativamente na construção da Apac feminina de Porto Alegre. “É o começo de uma instituição que celebra o ser humano. Para trabalhar a liberdade, precisamos trabalhar a igualdade, sem universalizar, mas, sim, valorizando as especificidades de cada grupo. Não é sobre pensar no tempo da pena e no delito. Interessa o ser humano que está ali, temos que ouvir e reconhecer a história de cada um para podermos agir”, pontuou.

O secretário Mauro Hauschild participou da mesa de abertura ao lado do procurador de justiça Gilmar Bortolotto, com passagem como coordenador do Núcleo de Apoio à Fiscalização dos Presídios do MP/RS. “A metodologia Apac decorre de um acordo interinstitucional entre o Estado do RS, o Poder Judiciário e o Ministério Público. É uma alternativa ao sistema convencional, sem a pretensão de substituí-lo. Trata-se de um modelo que foca na oportunidade de recuperação”, comemorou. Já há duas unidades em funcionamento no RS, Porto Alegre e Pelotas, além de iniciativas em outros municípios. “A experiência demonstra que não teremos redução de reincidência sem ideias e modelagens que inovem no sentido da reabilitação como meta. A necessidade de mudança é antiga. Quanto mais demorarmos na construção de novas políticas públicas para o sistema prisional, mais agudo se tornará o problema da criminalidade”, salientou Bortolotto.

A Apac Porto Alegre é uma organização sem fins lucrativos cuja finalidade é recuperar os presos, proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça restaurativa. Este tipo de instituição existe no Brasil desde 1972 e a de Porto Alegre foi a primeira a funcionar no Estado e o seu Centro de Reintegração Social inaugurado em 2018.

Voz de quem está lá dentro

João é o nome fictício do agente penitenciário entrevistado pela reportagem, que preferiu não se identificar para evitar represálias. Ele tem outra formação acadêmica, mas, em 2007, escolheu a profissão que desenvolve há 11 anos. Levanta sempre às 6h em direção a uma das penitenciárias da região metropolitana e, mesmo sabedor do perigo da função, pensa em ter filhos com a noiva. “Estudava para concursos, gostava da área de segurança, mas nem tinha muito conhecimento do ramo. Queria ter um plano de carreira”, revela. “Tinha quatro que me interessavam: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil e a Susepe. Eu dizia ‘vou ser policial’. O primeiro edital que abriu foi o da Susepe, passei, me qualifiquei bem e nem fiz as provas dos demais”, lembra.

O agente lamenta, apenas, que o salário inicial é muito inferior ao final. “É um problema, deveria ser mais próximo, mas não é um salário ruim. Ou não era. Atualmente, a inflação está corroendo os ganhos e o último aumento foi em 2018, três anos de salários congelados”, comenta João.

João relata uma quantidade de “mundos” que enxerga no universo de agente penitenciário e nas estruturas que encontram para trabalhar. “São casos e casos: existem penitenciárias novas, que receberam investimentos, onde se consegue desempenhar a função com afinco, disciplina, rigidez e qualidade, aquilo que a sociedade espera de um sistema prisional”, explica. “Já outras estruturas são muito antigas e não oferecem condições para executar o teu trabalho, te deixando frustrado, porque a presença do Estado não é total nestes ambientes. O que a sociedade espera não ocorre ali”, compara. Segundo o agente, nessa segunda categoria, acontecem “muitos acordos para a coisa funcionar bem e não haver fugas e motins”. “Tem que ser muito na conversa, na diplomacia, para ‘tocar’ as coisas dentro do sistema. Grande parte destes lugares está defasada e carece de investimento”, avalia o profissional.

A primeira situação difícil da qual João se lembra na carreira foi quando um preso se suicidou na cela. “Sempre é uma preocupação, ninguém quer que tenha morte no seu plantão. E aconteceu”, recorda. Mas um princípio de motim em 2020 foi o grande problema que precisou enfrentar. “Os presos atearam fogo e o teto do antigo centro de triagem era completamente feito de material inflamável. E o local, lotado de presos, mas com poucos servidores para dar conta, se encheu de fumaça. Os detentos ficando asfixiados, colegas inalando muita fumaça. Poderia ter ocorrido uma tragédia se não tivéssemos agido rápido. Usamos todos os extintores e conseguimos conter”, lembra João. A ideia dos presidiários era chamar os agentes para o interior das celas e rendê-los para tentar fugir. “Conseguimos dominar aquele ambiente tomado pelo fogo. Foi o momento mais tenso que vivi.” Na outra ponta, a parte legal deste tipo de função, segundo João, é o coleguismo. “É preciso confiar em quem trabalha contigo, principalmente, na escolta. Você está na rua, correndo risco, custodiando presos de alta periculosidade, então se cria um clima de confiança e reciprocidade.”

A recuperação de pessoas após passar pela prisão é muito difícil. Ele refuta quem considera a cadeia um bom lugar para o preso. “Não é bom! É um ambiente apertado, hostil, sujo, não se vê nada nem ninguém. A pessoa só tem uma, duas horas para sair e ver o sol. A recuperação fica difícil na maioria das casas, Canoas é uma das exceções”, pontua.

O medo, sensação natural, não aparece no cotidiano de João, ele garante. “É da minha natureza. É a profissão que escolhi, tem um risco diário. Dividimos espaço com criminosos que estão ali por qualquer coisa. Então, tudo pode acontecer, mas consigo conviver com isso”, reitera. Apesar de a profissão de agente penitenciário ser considerada uma das mais perigosas do mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), João diz desconhecer a sensação de medo. “Antes de sentir isso, tenho que cuidar das regras de segurança. A fatalidade é o ônus do nosso ofício”, completa.

Quanto a casos de corrupção ou facilitação a presos, João garante nunca ter presenciado. “Não vou dizer que não existe, mas se ocorrer tem que ser dada voz de prisão ao servidor”, explica. O agente reitera que armas, aparelhos celulares e outros objetos que aparecem com os presos são arremessados de fora para dentro das casas prisionais. “As penitenciárias mais antigas eram feitas em qualquer lugar urbano, fica fácil jogar. Além disso, os detentos usam drones”, descreve. João acredita que se o Estado investisse mais em estruturas como a da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan), situações como esta diminuiriam. “Lá tem bloqueadores de celulares. Não adianta entrar um aparelho, pois não haverá sinal. Na Pecan também não há cantina, local historicamente de fácil acesso às coisas de fora”, acrescenta o agente.

A possibilidade de PPPs para as prisões do RS também é criticada pelo servidor. E as suas perspectivas não são das melhores. “Para quem vive o sistema, o caminho parece muito claro, o mesmo que aconteceu nos estados do Norte. No Amazonas, foi de uma cadeia privatizada que teve início uma série de massacres. Tem que haver a presença do Estado, profissionais de carreira que possam gerir”, opina. Segundo ele, eventuais retiradas de direitos dos servidores públicos frustram os agentes. “Se continuarmos colocados como culpados das crises, isso vai refletir na prestação de serviços. Vai depender das escolhas políticas”, projeta João.

Ressocialização é possível

Márcio, 42 anos, trabalha hoje com viagens, respira movimento, abraça a liberdade, mas houve um tempo em que sua realidade era exatamente o inverso. Ex-detento da Galeria E1 do Presídio Central, hoje Cadeia Pública de Porto Alegre, está “na rua” há 11 anos e é um exemplo bem-sucedido de ressocialização. Depois de quatro prisões que deram lugar a duas formações – Turismo e Informática -, ele admite que o modo como enxerga sua chegada ao crime já mudou muito desde que as grades viraram passado de vez.

“Com o amadurecimento, vejo que o discurso que eu tinha do mundo do crime era muito diferente, fantasioso, não combina com a realidade. Eu transferia a responsabilidade e não assumia nenhuma parte dos atos que cometi”, revela. “Foi um desvio de caráter que me fazia querer ter o reconhecimento dos outros. Foi me seduzindo, queria cada vez mais, com uso de drogas”, conta.

Buscava, de bicicleta, entorpecentes em outro bairro. Pessoas de escalões mais altos de facções foram “abraçando” aquele jovem, introduzindo nas famílias e aproximando Márcio daquele universo. “Eu fazia várias faculdades, mas não concluía nada. Ficava pipocando em empregos também. O dinheiro eu tirava de forma ilícita. Mas assim como entrava fácil, a verba saía fácil”, lembra. Veio a primeira prisão e as lembranças que jamais sairão da cabeça de Márcio. “Te jogam em uma cela, chamada jumbo, pequena, completamente imunda, onde se aguarda a parte burocrática da tua entrada. A impressão é a pior possível, um monte de gente, não há lugar para deitar, há uma privada aberta e é isso”, descreve. Ele lembra de maus tratos no interior do presídio, mas não critica os servidores. “Não falo mal da Brigada porque as condições de trabalho deles também são horríveis”, pondera.

O que chamou a atenção de Márcio quando chegou à cela foi o fato de que o controle no interior das penitenciárias “não é da polícia, é das facções”. As condições de estrutura do local onde viveria os próximos dias assustaram o jovem. “Camas de concreto, colchões muito finos. Em uma cela onde deveriam dormir oito pessoas, dormem 30. A maioria no chão. Por isso, muitos improvisam colocando redes para dormirem pendurados”, lembra. Como não há vidros nas janelas, apenas grades, panos são colocados para tapar o vento em dias mais frios. Nos banheiros, pias são tanques e ralos são privadas. “Quando as facções têm mais poder, fica mais fácil, pois investem mais para melhorar a estrutura em determinadas celas e galerias. As facções melhoram a qualidade de vida lá dentro porque o governo não faz. Não tem como ressocializar lá dentro porque não tem as mínimas condições de vida”, explica Márcio, corroborando o que diz o agente João.

Os chefões do tráfico percebiam diferenças no rapaz. “Sempre tive um coração bom, nunca fiz nada contra ninguém diretamente. Até me ofereceram que eu cursasse Direito para virar advogado deles, mas recusei porque ficaria ligado a eles o resto da vida”, diz. Por exercer funções no tráfico que remetem à segurança de outros grupos e pessoas, ele não teve problemas de represálias dentro da Cadeia e conseguia transitar até com certas regalias, reconhece. “É um mundo à parte e não é à toa que é chamado de ‘crime organizado’ e se respeitam as regras internas porque as consequências são muito fortes”.

Márcio acredita que aproximadamente 80% dos presos são pobres, com pouca educação e famílias desestruturadas. “As pessoas crescem e vivem sem conseguir colocar o pão na mesa e muitos são presos por roubar comida.

O governo nunca colocou a mão sobre eles para dar as condições básicas. Jogam você em um sistema precário onde não melhoram a forma de você ver a vida e ainda falam em ressocialização? Não tem como, a menos que haja um programa, um projeto”, frisa o ex-detento.

Um desses é o Direito no Cárcere, criado pela advogada e jornalista Carmela Grune, que atende detentos em tratamento de dependência química. A ideia é dar acesso à justiça, cultura, memória e informação, em uma prática de caráter humanístico. As ações chegam aos presos e suas famílias, incentivando o resgate da autoestima e da dignidade, com reflexos na sociedade, por meio de atividades culturais. “Comecei o projeto no Rio de Janeiro e trouxe para o RS. Iniciamos o Luz no Cárcere, dedicado à desintoxicação de detentos, mais ou menos na mesma época”, lembra Carmela. Foi nesta iniciativa que Márcio ingressou, passou três meses no projeto e ganhou liberdade. O ano era 2011. Ainda que ganhasse o direito de responder em liberdade a cada prisão, logo acabava preso de novo. “As detenções ocorriam em pouco espaço de tempo. Na última vez que saí do presídio, minha família impôs uma condição de me internar em uma clínica de reabilitação porque consumia muitas drogas. Acabei pegando pena de serviço comunitário, pois fui enquadrado como usuário e não traficante”, conta. Para ele, a grande transformação foi ter familiares que nunca desistiram dele. “Nunca passaram a mão na minha cabeça, mas a estenderam para mim”, conta.

Em uma comunidade terapêutica, Márcio fez estágio e passou por uma reinserção social. “Trabalhava de dia e voltava só para dormir. Estudei Informática e logo consegui colocação no mercado de trabalho”, relembra. Enquanto cursava Serviço Social, começou a viajar com colegas e tomou gosto pelo turismo. Fez curso técnico na área, trabalhou em empresas no ramo e, hoje, tem sua própria agência. “Conheci pessoas, lugares e culturas diferentes. Me apaixonei pelo turismo”, diz sorrindo.

Celas superlotadas e estruturas precárias, como ocorre na Cadeia Pública de Porto Alegre, são problemas históricos do sistema prisional gaúcho. Foto: Ricardo Giusti

O sistema gaúcho

Sobre a falta de vagas no sistema prisional gaúcho, que hoje conta com 42 mil pessoas privadas de liberdade, sendo que a capacidade do sistema não chega a 27 mil vagas, o secretário de Justiça, Sistemas Penal e Socioeducativos do RS (SJSPS), Mauro Hauschild, diz que o governo estadual tenta diminuir o déficit histórico por meio de alternativas que promovam o investimento necessário. “Para enfrentar esse cenário, estão sendo feitos inúmeros investimentos em construções de novos estabelecimentos prisionais e na ampliação de outros, que, juntos, deverão ultrapassar mais de 4 mil novas vagas no sistema”, informa, utilizando a Penitenciária Estadual de Sapucaia do Sul como exemplo.

“Outras iniciativas feitas pela Susepe, como a otimização das atuais vagas existentes no sistema também colaboram para o enfrentamento dessa questão. Na perspectiva de aliviar a pressão populacional no sistema e de apostar na reinserção social, estamos fazendo investimentos para disponibilizar a liberdade monitorada com o uso de tornozeleiras eletrônicas”, adianta o secretário.O Núcleo de Gestão Estratégica do Sistema Prisional (Nugesp) é outra expectativa do Executivo estadual. Será uma espécie de “local de passagem” para presos na Região Metropolitana, que deverá amenizar os problemas de presos custodiados e desafogar as delegacias. “A obra está em andamento e o seu cronograma de execução está adiantado. A inauguração está planejada para o primeiro semestre do próximo ano. Será um grande avanço para a segurança pública do Rio Grande do Sul e cumprirá um papel fundamental, através da integração de diversos órgãos, para um ingresso qualificado no sistema prisional”, conta Hauschild. Coordenado pela SJSPS, o Nugesp tem a participação do Poder Judiciário, do Ministério Público do RS, da Defensoria Pública do RS, da Secretaria de Segurança Pública, da Prefeitura de Porto Alegre, do Conselho Nacional de Justiça, do Departamento Penitenciário Nacional, do Conselho Penitenciário. “Os resultados que serão gerados nessa nova estrutura contribuirão para o melhoramento dos serviços da Brigada Militar, Polícia Civil, Susepe, IGP, dentre outras instituições”, prevê o secretário.

Hauschild também comenta o baixo número de agentes penitenciário em relação aos presos. “Na reestruturação do quadro de pessoal, apenas no ano de 2021 foram nomeados mais de 1 mil agentes penitenciários, além de preparação de novo concurso público para 2022, visando atender às demandas dos novos estabelecimentos prisionais”, lembra, acrescentando que o sistema passará a receber investimentos para a contratação de serviços tecnológicos. “Monitoramento de viaturas, identificadores e bloqueadores de celulares, scanners corporais, além do fortalecimento das estruturas de segurança das unidades prisionais e de proteção e segurança dos servidores dos sistemas penal e socioeducativo. A proporção (de pelo menos um agente para cinco detentos) é apenas uma orientação do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), mas cada Estado possui suas próprias especificidades das unidades prisionais.”

Sobre o fato de muitas casas prisionais não terem sido criadas para este fim, o secretário diz que, “no contexto de evolução histórica do sistema prisional algumas unidades prisionais foram, ao longo dos anos, sendo adaptadas para receber essa finalidade. Todas elas, entretanto, atendem o essencial para a segurança do sistema prisional. Obviamente, que há dificuldades a serem vencidas e as novas unidades prisionais surgem, também, com esse objetivo de adaptação estrutural e organizacional voltadas às políticas de segurança e tratamento penal”. Conforme Hauschild, várias ações estão em andamento para o enfrentamento do problema estrutural do sistema prisional gaúcho, “como a construção de novas unidades prisionais, as reformas e ampliações das existentes, os investimentos em tecnologia e inteligência, e a otimização das vagas existentes, a ampliação do quadro de servidores e sua qualificação profissional, o reaparelhamento voltado à segurança e a valorização da saúde, educação e do trabalho prisional”.

O secretário garante que não está na pauta de discussão a privatização do sistema prisional. “Estamos em processo de modelagem de uma Parceria Público-Privada para o sistema prisional. Este é o projeto do governo do Estado, BNDES, BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) e envolve diversas secretarias nesta construção. É o primeiro modelo a ser testado no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Neste projeto, ainda em elaboração, o Estado não abre mão da segurança prisional e sua responsabilidade pela supervisão da operação e das políticas de tratamento penal”, conclui.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895