Projeto independente preserva e multiplica sementes crioulas em Rolante

Projeto independente preserva e multiplica sementes crioulas em Rolante

Idealizado pelos agricultores Alícia Ganzo Galarça e Pedro Henriques dos Santos, o projeto Casa das Sementes Vivas guarda sementes tradicionais que não passaram pelos processos de mudanças genéticas ou hibridismo, sendo responsáveis pela germinação de alimentos com cores e características nutricionais diferenciadas e pouco consumidas pela população, como as batatas, cenouras, feijões e milho coloridos

Por
Fernanda Bassôa

A Casa das Sementes Vivas é um projeto independente desenvolvido por um casal de agricultores que vive no interior da cidade de Rolante, no Vale do Paranhana, no Rio Grande do Sul, cujo objetivo é resgatar, multiplicar e fazer o compartilhamento de sementes crioulas, responsáveis por uma diversidade de frutos, legumes e verduras. A ideia da preservação e recuperação das sementes é promover autonomia e soberania alimentar. É desses pequenos grãos que o casal Alícia Ganzo Galarça, 22 anos, e Pedro Henriques dos Santos, 28 anos, também chamados de guardiões das sementes, plantam e colhem batatas, tomates, milho e cenouras com uma variedade de cores diferentes de tudo que a população consome normalmente. 

Foto: Pedro Henriques dos Santos / Arquivo Pessoal

“Existem centenas de variedades de cores, texturas, sabores e genéticas diferentes de tomates, por exemplo. É daí que vem o tomate amarelo, roxo ou preto. Nos acostumamos, enquanto sociedade, a ter uma mono alimentação, com pouca diversidade”, ressalta Alícia. De acordo com a agricultora, quando surgem outros alimentos, variedades crioulas (sementes sem alteração genética), as pessoas se surpreendem. “No nosso banco de sementes, temos milho amarelo, vermelho, verde, preto, rosa, branco e outras variedades todas coloridas”, diz. Alícia explica também que a diversidade não se resume apenas aos aspectos visuais, mas aos nutricionais e históricos. Batatas com cores diferentes carregam nutrientes diferentes. A batata doce laranja, chamada de Batata Abóbora, tem mais betacaroteno do que a doce roxa ou a branca.

As sementes crioulas, segundo o casal, são tradicionais, antigas e comuns. São todas as sementes que não são as transgênicas e híbridas. “Elas carregam consigo informações genéticas do passado e dão a segurança do futuro. Elas são resultado de uma relação de muito tempo entre seres humanos e plantas. Tornando plantas resilientes e seres humanos nutridos. Cheias de diversidades genéticas”, afirma ela. 

Foto: Pedro Henriques dos Santos / Arquivo Pessoal

A agricultora destaca que estas sementes foram perdidas ou esquecidas quando o processo de “modernização da agricultura” chegou no Rio Grande no Sul, na década de 60, na chamada Revolução Verde. “A chegada dos pacotes tecnológicos com sementes híbridas, transgênicos e venenos, impactou muito o meio rural brasileiro, mudando a mentalidade do campo”, acrescenta. 

O amor pela agricultura não veio de berço. Tanto Alícia, quanto Pedro Henriques são nascidos e criados na cidade. A escolha da vida no campo veio da vontade de ambos de viver uma vida sustentável da maneira como acreditam que se pode viver, colocando em prática seus valores. A agricultura, contam, aprenderam na prática diária. Segundo eles, o conhecimento da terra se faz com os vizinhos, com os mais velhos, com referências de todos os lugares e principalmente errando bastante. “Quando descobri que de um grãozinho de milho a gente podia multiplicar e colher a espiga tendo milhares de novos grãozinhos, eu vi que só podia ter algo muito errado no mundo escasso de recursos que a gente vive”, comenta Alícia. 

Foto: Roberta Castorina / Divulgação

Atualmente, a área de plantio do casal não chega a dois hectares, mas eles têm em andamento um projeto de regeneração de uma área degradada, de beira de rio. E, no ano passado, eles promoveram um financiamento coletivo, juntamente com uma rede de agricultores, com a finalidade de angariar recursos para construir uma casa de barro e um viveiro, pois para garantir a semente e a sua multiplicação são necessárias estruturas seguras. O financiamento atingiu 106% da meta, levantando recursos para a compra dos materiais das duas construções. O viveiro, que está quase pronto, será uma espécie de berçário, uma estrutura para atender todas as necessidades das plantas no seu primeiro estágio de vida, com estufa, sistema de irrigação e controle de ventilação. “Será o local onde vamos cuidá-las com mais qualidade e tempo até o momento de estarem saudáveis e grandes o suficiente para irem para o campo.” completa. A Casa das Sementes, que está em fase inicial de execução, será feita de barro e com umidade controlada. Nela, as sementes serão armazenadas, recebidas, multiplicadas e distribuídas. 

Foto: Pedro Henriques dos Santos / Arquivo Pessoal

Quem quiser pode seguir apoiando a iniciativa. “Dessa maneira a gente consegue ampliar o trabalho, produzir mais conteúdo informativo, visual, digital e material. Precisamos de recurso para poder participar de feiras de sementes, realizar visitas educativas, práticas e oficinas”conclui a agricultora. O apoio pode ser dado pelo link apoia.se/sementesvivas.

“Cofre do apocalipse” guarda tesouro

A preservação de espécies de sementes e de seus acessos é de grande importância para a segurança alimentar da população do planeta. É ela que garante que a produção agrícola será mantida em sua diversidade e qualidade. Levantamento da Organização Mundial de Alimentos e Agricultura (FAO) estima em 87 o número de bancos de sementes genéticas espalhados por países do globo, o que representa 1,7 mil coleções de sementes de variedades cultivadas na agricultura. 

O maior banco de sementes do mundo está na ilha de Spitsbergen, no arquipélago norueguês de Svalbard. O local foi escolhido por se tratar de um conjunto de ilhas isoladas, mas facilmente acessíveis por meio de avião. Também pesou na decisão o fato de a Noruega ser , além disso, um país politicamente estável protegido das guerras e tumultos globais. As ilhas têm ainda condições climáticas ideais para o armazenamento de sementes por um longo período. Todos os países do mundo podem enviar suas sementes e se manter proprietários destes acessos, podendo utilizar sua coleção caso os bancos de sementes em seu território, por quaisquer motivos, tenham sido destruídos.

Estrutura no arquipélago de Svalgard, na Noruega, abriga hoje 1,1 milhão de acessos de sementes enviadas por todos os países do mundo, que garantem o seguimento dos plantios agrícolas mesmo em caso de catástrofes. Foto: Marcin Kadziolka / Shutterstock

O Svalbard Global Seed Vault é uma estrutura de concreto a 125 metros dentro de uma montanha coberta de gelo durante os 12 meses do ano, no ponto habitado da Terra mais próximo Polo Norte. A edificação foi construída em 2008 para garantir a diversidade das culturas, com financiamento e gerenciamento do governo norueguês. Atualmente, o local abriga em torno de 1,1 milhão de acessos de sementes de mais de 6 mil espécies vegetais para o cultivo de alimentos para o consumo de humanos e dos animais.

Catástrofes naturais, pandemias e guerras mundiais, são riscos iminentes de extinção dos alimentos básicos e, por isso, a fortaleza de Svalgard é chamada pelos cientistas de “cofre do apocalipse”. Além das espécies tradicionais, também são preservadas nela sementes experimentais, que podem aumentar o rendimento das culturas ou a resiliência às mudanças climáticas. A manutenção dos insumos é feita sob temperatura abaixo de -18 C°, o que garante que as sementes possam ser usadas e gerar plantas de 30 a 40 anos até alguns séculos depois de seu armazenamento. No total, a caixa forte norueguesa tem capacidade para 4,5 milhões de amostras de sementes. 

O Brasil tem o quarto maior banco de sementes do mundo, o Banco Genético da Empresa Brasileira de Pesquisa em Agropecuária, Embrapa. Em 2020, o país enviou para o banco norueguês um total de 3.037 sementes de arroz, 87 de milho, 119 de cebola, 132 de pimentas e 68 de cucurbitáceas (melancias, melões, pepinos) conservados pela Embrapa. Preocupação da empresa desde os anos 70, a reserva completa do Brasil passa hoje dos 140 mil acessos. As maiores coleções do banco são as de sementes arroz (23,7 mil), cevada (13,3 mil), soja (13,1 mil), feijão (12,8 mil) e trigo (5,6 mil). O Brasil já contribuiu com o banco de sementes norueguês outras duas vezes. Em 2014, foram enviados pela Embrapa 514 acessos de feijão e, no ano de 2012, 264 de milho e 541 de arroz. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895