Relações afetadas no isolamento

Relações afetadas no isolamento

Na relação entre casais, o contexto melhorou o que estava bom e fez vir à tona o que não estava

Por
Jessica Hübler

A pandemia da Covid-19 teve diversos impactos na sociedade, mas um deles, que se acreditava ser causado por esse contexto, parece que pode ser descartado: a criação de problemas conjugais. Segundo um trabalho do Núcleo de Pesquisa Dinâmica das Relações Familiares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o isolamento social em função da pandemia não gerou novos problemas nas relações. A pesquisa, que foi realizada por meio de questionário virtual e contou com participação de 640 pessoas, constatou que o isolamento social provocou um aumento da intensidade do clima emocional existente anteriormente entre o casal, ou seja, o que estava bom ficou melhor e o que não estava veio à tona.

Os pesquisadores concluíram que a pandemia na verdade intensificou o quadro anterior ao isolamento. Ou seja, problemas teriam sido revelados e não causados pelo isolamento. Os participantes da pesquisa tinham entre 18 e 80 anos, sendo 60% mulheres. Durante a análise dos resultados, os dados foram divididos em dois grupos: aqueles que apontavam uma melhora da relação e aqueles que mostraram uma piora.

De acordo com a coordenadora do grupo de pesquisa e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Ufrgs, Adriana Wagner, o estudo indica que pessoas que apresentavam níveis baixos de qualidade conjugal foram as mais afetadas pelo período de distanciamento social. Cerca de 40% revelou ter vontade ou muita vontade de se separar. Por outro lado, aproximadamente 45% das pessoas que apresentavam bons níveis de qualidade conjugal relataram aumento nas manifestações de carinho e afeto nesse período. Adriana comenta que muitas pessoas atribuíram à pandemia e ao contexto de confinamento os seus problemas conjugais, como se fossem novos fatores nas relações. No entanto, salienta que essa não é a lógica, pois o isolamento teria apenas aumentado a intensidade da convivência e favoreceu que se revelasse o clima emocional existente entre o casal.

A psicóloga esclarece que quando se estuda o relacionamento conjugal há três níveis a serem analisados: o indivíduo, isso é, o cônjuge e suas características de personalidade, a interação que o casal estabelece e como enfrenta conflitos e o contexto em que estão inseridos. Dessa forma, a pandemia trouxe um novo contexto para os casais, o qual intensificou os aspectos preexistentes dos relacionamentos. “Foi um palco para peculiaridades aparecerem”, diz. O grupo de pesquisa pretende redigir artigos a partir dos dados obtidos.

O interesse feminino

Um dado chamou atenção dos pesquisadores, apesar de não demonstrar interferência nos resultados: 60% das pessoas que responderam o questionário eram mulheres. A pesquisadora sugere que o fato revela que quem está mais interessado em saber sobre a saúde do casal é a mulher. Adriana explica que, por mais que os papéis sociais desempenhados em casa estejam cada vez mais difusos, os cuidados com o relacionamento seguem sendo, predominantemente, papel da mulher. “O interesse por entender a conjugalidade é da mulher. É um aspecto construído por meio da educação.”

A cientista explica que o modo que se ensina crianças a brincar e a se comportar define esses padrões e estabelece um contraponto. “Muito se fala em ‘nova conjugalidade’, por causa de configurações diferentes nas relações. Mas não temos isso. Em termos de cuidado do casal, tudo ainda está muito em cima do lado feminino.” De acordo com Adriana, a figura masculina geralmente tem mais dificuldade de perceber os problemas e, quando nota, tende a procrastinar e esperar que sua parceira tome a iniciativa para encontrar soluções. Consequentemente, houve uma dificuldade em obter respostas de homens sobre as relações conjugais. Mesmo utilizando ferramentas de redes sociais para aumentar o alcance da pesquisa, principalmente para o público masculino, a amostra não ficou equiparada. Além disso, ela conta que recebeu feedback por parte de homens, dizendo que nunca tinham refletido sobre as questões apresentadas no questionário.

Adriana salienta ainda que, geralmente, quando um casal procura terapia, também é a esposa quem busca o atendimento e leva seu parceiro. Ela explica que, quando há demanda por essa terapia, é porque já existe uma “fratura exposta” e é preciso estabelecer um novo contexto para que a relação e os conflitos possam ser encaminhados de forma mais construtiva. Por outro lado, Adriana acredita que, na atual geração, esse estigma de desinteresse ou despreparo por parte dos homens pode mudar. “Eu sou uma otimista dessa geração de homens, pais e maridos. Há um pensamento mais reflexivo, forma diferente de se relacionar.”

A ideia da terapia de casal e dos estudos do grupo de pesquisa têm como objetivo, há mais de uma década, promover a saúde conjugal. Inclusive, criaram um modelo psicoeducativo para a conjugalidade, chamado “Viver a dois: compartilhando esse desafio”, que busca auxiliar os casais a encaminhar seus conflitos de maneira construtiva.
Segundo Adriana, o grupo replicou no estudo realizado durante a pandemia da Covid-19 algumas escalas que já haviam sido aplicadas anteriormente em uma pesquisa realizada entre 2008 e 2010, que contou com a participação de 750 casais de todo o Rio Grande do Sul. “Essa foi a pesquisa mais importante em termos de amostra sobre conjugalidade. Ali fomos investigar os níveis de qualidade conjugal, tipos de conflitos e estratégias de enfrentamento de conflito, ou seja, o que aqueles casais fazem quando brigam”, explica. Foi a partir desse estudo que o grupo criou a intervenção citada anteriormente. A partir dos resultados do estudo, iniciaram-se os trabalhos do modelo psicoeducativo, que já contou com a participação de 120 casais e inclusive foi internacionalizado, tendo sido aplicado na Espanha e que também já formou moderadores em Nebraska, nos Estados Unidos.

Em função da pandemia, os trabalhos presenciais foram suspensos e agora o grupo está trabalhando com a ideia de realizar atividades virtuais com os casais. “Estamos pensando em transformar algumas das estratégias do próprio ‘Viver a dois’ para o virtual, que possam beneficiar casais”, afirma.

Recorde de divórcios no RS

Levantamento do Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal (CNB/CF) apontou que o segundo semestre de 2020 registrou o maior número de divórcios no Rio Grande do Sul desde o início da prática deste processo em cartório, em 2007. O total de 3.460 divórcios extrajudiciais, realizados diretamente em Cartórios de Notas do Estado no segundo semestre de 2020, é 7% maior do que os 3.221 registrados no mesmo período de 2019.

De acordo com registros do Colégio Notarial do Brasil - seção Rio Grande do Sul (CNB/RS), a variação de um ano para outro é ainda 7% superior à média histórica estadual, que apontava média estável nos divórcios desta modalidade desde o ano em que foi introduzido o divórcio direto no Brasil (Emenda Constitucional nº 66/2010).
No Brasil, o crescimento do número de divórcios no segundo semestre de 2020 foi de 15%, total de 43.859 atos realizados, quando no mesmo período de 2019 foram 38.174. “Durante a pandemia, muitos casais passaram mais tempo juntos, o que fez com que a relação fosse observada com mais atenção”, avalia o presidente do CNB/RS, José Flávio Bueno Fischer. 

O Provimento nº 100 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de maio de 2020, implementou a plataforma de atos notariais eletrônicos, chamada “e-Notariado”. Fischer pontua que este fator também parece ter contribuído para um processo ainda menos burocrático para a efetivação dos divórcios. “Toda a documentação pode ser encaminhada ao cartório por meio digital. Assim, o processo de divórcio se tornou mais ágil, com a possibilidade de ser feito de casa, evitando inclusive os naturais constrangimentos”, afirma.
Ainda segundo Fischer, o recorde para os divórcios no território gaúcho pode estar relacionado a três fatores: não precisar judicializar o processo, a implementação da plataforma e-Notariado e o isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19. “Tivemos de um lado a simplificação, que veio desde 2007, de poder fazer o divórcio em tabelionato, somada à agilidade da plataforma de serviços virtuais e um fator que não se tem como negar: as pessoas foram obrigadas a conviver mais tempos juntas, casais que já estavam desgastados, mas conseguiam suportar porque cada um ia para um lado durante o dia e só se encontravam de noite, certamente é um desgaste importante e que deve ter influenciado”, assinala. 

Fischer reforça que as “facilidades” podem ter contribuído para os desfechos de casais que já não estavam satisfeitos, não conseguiam mais conviver e perceberam que não precisariam enfrentar muitas burocracias. “E isso deve contribuir ainda para que aumente ainda mais o número de divórcios nos próximos meses.” O CNB/RS estima que de 20% a 30% dos divórcios já estejam sendo realizados de forma virtual, mas a entidade salienta que somente divórcios consensuais podem ser feitos na plataforma, nos casos em que não haja pendências judiciais envolvendo filhos menores ou incapazes.

No Brasil há dois tipos de divórcios. Tem o chamado de “extrajudicial”, no qual os casais podem se separar de forma mais rápida, pelos Cartórios de Notas, amigavelmente. E existe o divórcio judicial, ou litigioso, que é feito diante de um juiz ou através da Defensoria Pública e envolve questões mais complexas como falta de consenso entre o casal, partilha de bens, pensão e guarda dos filhos.

Modelo psicoeducativo e o trabalho de prevenção

A pesquisa, conforme Adriana, está publicada no livro “Viver a dois - Oportunidades e desafios da conjugalidade” (Editora Sinodal). “Trabalhamos em um formato psicoeducativo na conjugalidade e fomos pioneiros, pois o que conhecemos no Brasil é a terapia de casal, que ocorre quando já existem sintomas, mas a psicoeducação atua na prevenção dos conflitos”, destaca. As pessoas se casam para serem felizes, reforça Adriana, e seguem o modelo da família de origem. Se é positivo, querem fazer igual. E se é negativo, querem fazer diferente. “Não existe possibilidade de contraste, não querem repetir o que a mãe fazia com o pai, por exemplo, então uma mulher diz que não vai brigar com o marido pois a mãe vivia brigando com o pai, então não briga nunca e isso acaba se tornando um problema”, exemplifica.

Existem diversas formas de se relacionar, mas, em muitos casos, as pessoas acabam repetindo modelos e a maioria nem sabe disso. “Durante a pesquisa, perguntamos diversas coisas, inclusive os motivos das brigas e como os conflitos eram resolvidos, então percebemos que eles não sabiam encaminhar essas dificuldades e na verdade faziam sempre a mesma coisa, não existiam alternativas de enfrentamento, aí trabalhamos na perspectiva psicoeducativa, através do modelo ‘Viver a dois: compartilhando esse desafio’, podendo fazer encontros onde se pudesse conversar sobre conjugalidade, exercitar outras formas de comunicação, empatia e recebemos retornos muito positivos”, pontua.

Segundo Adriana, todos temos problemas muito semelhantes. “O enredo é o mesmo, só mudam os personagens. Os casais padecem das mesmas coisas e durante os encontros do grupo explicamos que o enfoque é de promoção e prevenção em saúde conjugal. Não tem nada a ver com terapia e percebemos que houve um aumento da qualidade conjugal dos casais, desde que entraram e até quando saíram, ou seja, a intervenção é eficaz nesse sentido.” O que diferencia um casal, diz Adriana, não é a quantidade de conflitos que tem, mas sim como ele encaminha esses conflitos: é isso que faz diferença na qualidade conjugal.

No Brasil, o crescimento do número de divórcios no segundo semestre de 2020 foi de 15%, total de 43.859 atos realizados, quando no mesmo período de 2019 foram 38.174. Foto: Ricardo Giusti

Separações e casamentos na pandemia

Danielly se separou em maio de 2020, pouco mais de um mês após o começo da pandemia no Estado. A situação entre ela e o ex-marido não poderia ser resolvida nos tabelionatos, pois eles têm uma filha de 1 ano. Para dar andamento ao divórcio, Danielly entrou em contato com a Defensoria Pública do Estado e conseguiu agendar uma mediação virtual. Sobre o aumento das separações, diz acreditar que a pandemia pode ter intensificado os processos. “As pessoas que antes pouco conviviam, tiveram de passar mais tempo juntas em casa, dividindo novas tarefas, ajustando seus horários e, se antes uma pessoa só ficava responsável por isso, na pandemia com essa proximidade forçada, acordos tiveram de ser novamente firmados ou quebrados”, destaca. Apesar disso, reitera que não foi o caso do relacionamento dela com o ex-marido. “Não diria que a pandemia revelou problemas, mas me deu uma espécie de mola propulsora para eu não adiar mais a separação”, complementa.

Segundo ela, a pandemia não só revelou mas também intensificou alguns problemas. “Toda a crise intensifica qualquer tipo de conflito ou proporciona que conflitos surjam, mas isso não quer dizer que por si só seja uma coisa ruim, caso o casal saiba lidar com esses conflitos”, destaca. Além da experiência pessoal, Danielly também diz que conhece amigos que decidiram passar a morar em casas separadas por conta da pandemia. “Sei de casais que, por conta do trabalho, nunca puderam ter uma relação estreita no que diz respeito à convivência e na pandemia puderam se conhecer melhor e fazer novas escolhas. Tenho amigos que apenas escolheram não morar mais juntos, mas ainda assim dar seguimento à relação.”

Com relação ao recorde de divórcios no Estado, Danielly entende que, durante a pandemia, “algumas pessoas perceberam o quão a vida pode ser fugaz e que decisões importantes não devem ser adiadas. Nesse caso, posso ser incluída, pois sinto que eu deveria já deixar tudo acertado juridicamente entre mim e meu ex-marido tendo em vista que temos uma filha fruto dessa união. Devido à instabilidade que o mundo tem enfrentado, não me sentia confortável em deixar pendências caso acontecesse algo comigo”.

Já no caso de Vitória, 30 anos, a situação foi diferente. Ela e o marido, Rafael, estavam morando juntos desde abril de 2019 e, em dezembro de 2020, decidiram oficializar a união. O processo de morar juntos foi ocorrendo aos poucos e, quando ela e Rafael perceberam: aconteceu. O casamento foi dia 12 de dezembro de 2020. “Em função de termos casado em meio à pandemia, estávamos bem preocupados com a nossa segurança e com a segurança das poucas pessoas que estariam conosco.”

Segundo ela, por conta do isolamento social e dos protocolos de distanciamento, eles optaram por fazer a celebração na casa dos pais de Rafael, justamente por ter um jardim com bastante espaço para o grupo pequeno de convidados, composto basicamente pelo núcleo familiar. “Espalhamos álcool gel por todo canto, brincamos que estávamos em um ‘baile de máscaras’ e compramos aqueles protetores de sapatos para o pessoal colocar quando chegasse”, detalha, complementando que a cerimônia restrita foi “tranquila, colorida e cheia de amor”.

Mesmo antes da pandemia, pelo fato de os dois trabalharem com horários flexíveis, já conviviam bastante. “O nosso dia a dia geralmente é bem leve e a gente se dá muito bem, de um jeito livre e gostoso, mas acredito que a pandemia melhorou ainda mais nossa relação. Ela nos fez refletir sobre muita coisa e essas reflexões nos uniram ainda mais”, revela.

Além disso, Vitória também afirma que outros casais de amigos também compartilham que fizeram reflexões muito ricas e bonitas ao longo da pandemia. “Acredito que estamos aprendendo ainda mais a valorizar as pequenas coisas da vida.”

A pandemia ainda segue, as relações estão em constante transformação. Ainda muitos divórcios e casamentos devem ocorrer ao longo de 2021. Apesar de o isolamento social ter se reduzido significativamente, novas ondas de restrição de mobilidade estão ocorrendo ao redor do mundo e podem voltar a acontecer no Brasil. Os próximos meses ainda trarão reflexos da proximidade aumentada entre os casais e suas resoluções de conflito.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895