Safra quase perfeita

Safra quase perfeita

Depois de alguns anos de frustrações com o trigo, agricultores gaúchos iniciaram uma colheita promissora, que seria melhor ainda sem a umidade e o surgimento da giberela na fase final do cultivo. Apesar disso, as perspectivas de recorde na produção e de preços firmes, mesmo com aumento da oferta ao mercado, se mantêm

Por
Patrícia Feiten

Na primavera gaúcha, o ouro que mais reluz é o dos trigais. Na sequência de um 2020 frustrado por geadas e quebra de safra, o Rio Grande do Sul pode atingir em 2021 uma marca histórica na produção do trigo, com a colheita de 3,59 milhões de toneladas, de acordo com a projeção da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul). Se o número se confirmar, representará um salto de 70% sobre o volume do ciclo anterior e a maior oferta dos últimos oito anos, superando o recorde alcançado em 2013. O bom desempenho esperado se soma à perspectiva de preços elevados e sustentados para o grão no mercado interno.

Nesta safra, a área cultivada com trigo estimada pela Emater/Ascar-RS aponta para 1.177.487 hectares, uma expansão de 8,9% em relação ao ciclo anterior. A colheita começou nos primeiros dias de outubro, teve uma abertura oficial no dia 18, na Fazenda Santa Terezinha, em Cruz Alta (foto acima), e até a semana passada havia chegado a 48% dos campos semeados com o grão.

O presidente da Comissão do Trigo da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Hamilton Jardim, diz que a expansão das lavouras foi impulsionada pelos preços atrativos sinalizados para o trigo desde o ano passado. “O produtor estava capitalizado para investir na cultura seguinte (o trigo) pela safra passada de soja, que foi muito boa”, diz Jardim. Para o dirigente, esta safra promete ser um divisor de águas. “Quando a gente aumenta a área, consegue qualidade e preços bons, isso indica maior área para o ano que vem. Mesmo sendo uma cultura de risco e cara”, avalia.

No Rio Grande do Sul, a saca de trigo de 60 quilos era negociada na semana passada à média de R$ 84,82, de acordo com levantamento da Emater/RS-Ascar. Para o analista Elcio Bento, da consultoria Safras & Mercado, mesmo com o aumento da oferta do cereal no país, a tendência é de cotações altas – a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) prevê uma safra brasileira de 8,6 milhões de toneladas, 31% a mais do que em 2020. “O fato de nos encaminharmos para uma produção recorde não significa que os preços vão cair”, afirma Bento.

O analista explica que a quebra nas colheitas de grandes produtores do hemisfério Norte, como Rússia, Canadá e Estados Unidos, reduziu os estoques globais do trigo, o que deve manter os preços elevados até a entrada da próxima safra mundial no mercado, em julho de 2022. Isso permite traçar um cenário de maior rentabilidade para os triticultores gaúchos nesta temporada. “No ano passado, a gente tinha que fazer essa tendência de custo de produção com base em uma média de 2,4 toneladas (colhidas) por hectare no Estado. Este ano a tendência é que tenha um aumento da produtividade. Apesar do aumento do custo, a margem média neste ano tende a ser melhor que a do ano passado”, avalia Bento.

Avanço da qualidade e aumento do volume do grão cultivado no Rio Grande do Sul tendem a reduzir a importação feita pela indústria moageira. Foto: Luiz Magnante / Divulgação / CP

O analista de mercado Walter Von Mühlen Filho, da corretora Serra Morena, também aposta em preços firmes para o trigo gaúcho, situação que não deve se alterar com o ingresso dos estoques argentinos neste fim de ano. “O Brasil não é o maior comprador. Se a safra (brasileira) for de qualidade, a demanda por trigo argentino tende a diminuir, com isso a representatividade dela nos preços também diminui”, avalia o consultor.

A safra que chega também é acompanhada por uma evolução das exportações. Com a valorização do trigo e o câmbio favorável às vendas externas, os produtores apostaram na comercialização antecipada – estima-se que no início de agosto mais de 800 mil toneladas do grão já haviam sido contratadas por tradings, um volume inédito para a época do ano. O presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (Fecoagro-RS), Paulo Pires, afirma que os embarques do cereal gaúcho deverão passar de 1 milhão de toneladas neste ano, praticamente um terço da produção. “O negócio que mais está andando hoje é a exportação”, constata.

Segundo o dirigente, esse crescimento é resultado de um projeto desenvolvido desde 2016 pela Fecoagro e pela Embrapa para a produção de trigo com menor custo, destinada à exportação. A aposta garantiu liquidez para o cereal gaúcho. “Em 2013, o produtor plantou uma área boa, colheu bem e não conseguiu comercializar”, lembra Pires. “Frustrado, ele passou a plantar menos trigo a cada ano”, comenta, acrescentando que hoje o Rio Grande do Sul se credencia como um player exportador no mercado mundial, como a Argentina. “Isso é o grande avanço da triticultura gaúcha”, define.

Clima preocupa até na colheita

Lavoura pode não atingir todo o potencial esperado pelas previsões mais otimistas, mas padrão geral será satisfatório

Expostas à umidade excessiva na primeira metade de outubro, as lavouras de trigo sofreram com o clima na fase final de desenvolvimento da cultura e no início da colheita. Por isso, agricultores de algumas regiões temem impactos na produtividade e principalmente na qualidade, o que pode reduzir o valor comercial do grão. Mas, mesmo com as perdas esperadas, a indústria moageira e técnicos avaliam que o padrão geral da safra gaúcha não deixará nada a desejar.

Além de favorecer a ocorrência de doenças fúngicas, o excesso de umidade afeta o peso por hectolitro (pH), que determina a qualidade do trigo tipo pão. De acordo com o presidente do Sindicato da Indústria do Trigo no Estado (Sinditrigo-RS), Rogério Tondo, nas últimas safras a produção gaúcha apresentou valores de pH acima de 78, patamar considerado ideal para fins de panificação. “O produtor continua bastante atento às técnicas e está capitalizado, então há que se esperar a manutenção desse padrão de qualidade”, afirma Tondo.

O agrônomo Francisco Gnocato, melhorista da Biotrigo Genética, diz que a principal preocupação nesta safra refere-se à quantidade da toxina deoxinivalenol (DON), presente em grãos atacados pela giberela. “O desenvolvimento das lavouras foi muito bom. Mas neste período final ocorreu muita chuva e a gente tem visto nos campos uma incidência bem maior (de giberela) do que no ano passado”, constata. “(A qualidade) vai depender muito de como foram os manejos dos produtores.”

Segundo Gnocato, na última década o trigo gaúcho deu um salto de qualidade graças ao desenvolvimento de cultivares resistentes à giberela e menos suscetíveis à germinação do grão ainda na espiga e perda de densidade. “Este ano talvez não se atinja o mesmo patamar que se atingiu no ano passado, mas do ponto de vista genético se teve um avanço grande. Vai ser um trigo padrão, com boa qualidade comparado ao trigo argentino”, afirma o agrônomo.

Um dos principais exportadores mundiais de trigo, a Argentina responde por 80% das 5 milhões de toneladas importadas anualmente pelos moinhos brasileiros. Para o presidente do Sinditrigo, os avanços na produção gaúcha tendem a reduzir ainda mais a participação do grão importado no mercado gaúcho, que hoje não passa de 10%. “Essa qualidade era restrita a uma ou duas áreas (produtoras) e hoje está espalhada em várias áreas no Rio Grande do Sul, então isso dá um certo conforto (à indústria moageira)”, destaca Tondo.

As parcerias com empresas de melhoramento genético vêm sendo determinantes para diminuir a dependência do trigo estrangeiro. Um exemplo vem da Cooperativa Tritícola Mista Campo Novo (Cotricampo), que cultiva 90 mil hectares com trigo em 18 municípios na região de Campo Novo e mantém uma das maiores plantas de moagem do grão no Rio Grande do Sul. Da unidade saem diariamente 200 toneladas de farinha de trigo, produzidas apenas com grãos fornecidos pelos 1,5 mil agricultores associados. Segundo o presidente da cooperativa, Gelson Bridi, essa autossuficiência é possível porque a organização investiu no desenvolvimento de cultivares específicas para a região, com a assistência da Embrapa.

Nesta safra, a Cotricampo mirava uma produtividade de pelo menos 3.500 toneladas de trigo por hectare, mas a chuva afetou a meta inicial e a qualidade dos primeiros lotes colhidos. “Fazemos um trabalho de segregação do trigo por qualidade na hora do recebimento, então a gente consegue manter um padrão”, explica Bridi. A cooperativa foi pioneira na separação de variedades de trigo conforme as características e finalidade industrial, garantindo ao associado um bônus pelo plantio das cultivares demandadas. Em outubro, aproveitando o câmbio favorável, a Cotricampo fechou contrato para a exportação de 6 mil toneladas de trigo. “Este é um ano diferente, com liquidez e estabilidade dos preços”, avalia Bridi.

Produtor espera até 60 sacas por hectare

Na Fazenda Santa Helena, no município de Boa Vista do Incra, planta-se soja no verão e trigo e aveia branca no inverno. Neste ano, tanto a semeadura quanto o desenvolvimento do trigo foram prejudicados pelas chuvas frequentes, conta o produtor Fernando Pissetti Rossato. O plantio, que na região costuma começar nos primeiros dias de junho, só teve início no dia 20 daquele mês. O excesso de umidade nas fases de espigamento e enchimento de grãos resultou em doenças fúngicas. “A perspectiva é de uma produtividade boa, mas com uma qualidade incerta. A gente olha, a espiga está com um potencial bonito, mas a gente vê que tem uma incidência grande da giberela. A gente pode ter uma dificuldade de comercialização”, admite o produtor.

Rossato calcula que só uma boa produtividade pode garantir a rentabilidade e evitar prejuízos na lavoura. Foto: Henrique Dias da Costa / Divulgação / CP

Apesar dos contratempos climáticos, Rossato se prepara para colher de 50 a 60 sacas por hectare. “A princípio, está se desenhando uma safra melhor do que o ano passado. (Em 2020), tivemos mais problemas de frio e excesso de chuva”, compara. Com os bons preços atingidos pelo cereal, o agricultor vê uma perspectiva positiva para os negócios. “O problema é que a gente já fez uma lavoura um pouco mais cara este ano”, analisa, referindo-se aos custos. “A gente precisa de uma produtividade boa para garantir a rentabilidade, caso contrário o trigo pode dar prejuízo”, complementa.

A pressão das despesas não impediu o investimento em plantadeiras para a lavoura este ano. A opção foi por máquinas seminovas, adquiridas com recursos próprios e da linha de crédito Moderfrota, do governo federal. “Não compramos novas porque não tinha e também porque o preço explodiu”, explica o produtor. Para Rossato, mais do que proporcionar resultado financeiro, a cultura do trigo atende a uma estratégia de conservação e é importante para o giro, para não deixar a terra parada. “(O produtor) faz a rotação com a soja pensando numa ideia de adubação do sistema, faz um manejo mais correto, então todo o sistema de produção se beneficia”, destaca.

Agricultura Ampliou área, mas calcula produtividade menor

Na propriedade administrada pela família do produtor Lizandro Santi Manfio, no município de Cruz Alta, a chuva foi motivo de apreensão. A família retomou o plantio do trigo no ano passado, em 300 hectares, e neste ano ampliou em 50 hectares a área do grão. A lavoura serve à produção e multiplicação de sementes, destinadas a uma cooperativa de Ibirubá – a área restante da fazenda é reservada ao plantio de milho e soja.

Manfio estima que agricultor precisa colher de 40 a 45 sacas por hectare para cobrir gastos com a lavoura, que subiram 35%. Foto: Arquivo Pessoal

Manfio planeja iniciar a colheita do trigo em 15 de novembro, mas receia perdas causadas por doenças. “(Tivemos) muita chuva no período de floração. A aplicação de fungicidas não foi suficiente, porque foram vários períodos sem sol, com umidade. Acredito que o comprometimento de produtividade será em torno de 25% na média, devido à giberela, ao aparecimento de manchas foliares e bacteriose”, relata o produtor.

Nesta safra, Manfio estima que colherá de 40 a 45 sacas por hectare, ante uma média de 65 no ano passado. É o mínimo que o agricultor calcula ser necessário para cobrir seus gastos com a lavoura, que subiram 35% na comparação com a safra passada. “A expectativa era de uma produção ao menos parecida com o do ano passado, então teríamos uma rentabilidade de 15 sacos”, diz.

"O preço está bom este ano, vai dar para ganhar uma margem"

Com mais de quatro décadas dedicadas à triticultura, o produtor Antoli Fauth Mello guarda lembranças saudosas da colheita de 2013, ano da maior produção de trigo da história no Rio Grande do Sul. “Esta safra vai ser muito boa. Igual àquela acho que não, mas a expectativa é colher acima de 70 sacas por hectare”, projeta o agricultor, que neste ano plantou 340 hectares com culturas de inverno em sua propriedade em Rincão das Quinas, no município de Coxilha. Do total, 100 hectares foram dedicados ao trigo e 240 hectares ao triticale.

Mello planeja colocar as colheitadeiras em campo na metade de novembro. As chuvas atrasaram a semeadura do trigo, que foi concluída em 12 de julho na propriedade, mas não chegaram a acarretar doenças nas plantas, segundo o agricultor. “Está tudo muito bonito. Acho que aqui na região o grão não estragou. Estamos na metade do (estágio de) enchimento do grão, a expectativa é de qualidade muito boa”, comentou, durante a semana.

Animado com o interesse da indústria de proteína animal por cereais de inverno, Mello também planta triticale. Foto: Arquivo Pessoal

O que preocupa o agricultor são os custos da lavoura. Nesta safra, Mello estima que o desembolso fique entre R$ 4 mil e 4,5 mil por hectare – o equivalente a 50 sacas do grão por hectare. Para fazer frente a essas despesas, o produtor conta que fez investimentos em fertilidade e correção do solo. “Cultura de inverno tem de produzir palha, tornar a terra mais fértil para que se possa manter ou até avançar no número de sacos por hectare”, ensina. Ao final da colheita, ele espera negociar a saca de trigo por valores entre R$ 85 e R$ 90. “Vínhamos apanhando faz muito tempo. O preço está bom este ano, vai dar para ganhar uma margem (de lucro), quem sabe 30%”, calcula.

Animado com o interesse da indústria de proteína animal por cereais de inverno para a produção de rações, Mello começou a plantar triticale há três anos. Com a cultivar escolhida, a BRS Saturno, desenvolvida pela Empraba Trigo, espera colher 74 sacas do grão por hectare. Ele avalia que a cultura vem se firmando como uma alternativa rentável para os produtores, ajudando a resolver a equação entre custo e receita. “É o milho do inverno. No próximo ano, a área cultivada (no Rio Grande do Sul) vai explodir por causa dessa demanda das indústrias”, aposta.

Rações turbinam o potencial

Uso do trigo na alimentação animal diminui dependência do milho, que anda escasso e caro, e amplia perspectivas econômicas para o produtor

Pressionadas pela escassez e pelos altos preços do milho, as agroindústrias de aves e suínos vêm fazendo do trigo uma opção importante para a composição das rações animais. A demanda crescente pode ajudar a turbinar o potencial da principal lavoura de inverno no Estado, acreditam lideranças do agronegócio.

Embora não seja novidade, o uso do trigo na alimentação animal ganhou força com a campanha capitaneada pela Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), em conjunto com a Embrapa e a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), para estimular o plantio de cereais de inverno com foco na produção de rações. “Não havia antes um incentivo para produzir trigo, triticale, centeio, aveia, canola, porque não existia garantia de alguém que se oferecesse para comprar o produto”, observa o presidente do Conselho Consultivo da ABPA, Francisco Turra.

Ex-ministro da Agricultura, Turra diz que a alternativa surgiu em um momento crítico para a indústria, após duas quebras consecutivas na safra de milho na Região Sul. A falta do insumo obrigou frigoríficos a importá-lo da Argentina para manter a produção. “O produtor (de trigo) está animado, estão ocorrendo muitos negócios”, afirma Turra.

Rio Grande do Sul ocupa 1,2 milhão de hectares com culturas de inverno. Foto: Raoni Locateli / Divulgação / CP

Segundo o coordenador da Comissão do Trigo da Farsul, Hamilton Jardim, apenas as indústrias de proteína animal do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina têm uma demanda anual de 7 milhões de toneladas de milho. “Este mercado tende a crescer nos próximos anos. A Farsul está perseguindo o aumento da área cultivada (com cereais de inverno), dando tecnologia e suporte”, destaca Jardim. O projeto, explica o dirigente, baseia-se no aproveitamento de áreas que ficam ociosas na estação fria, garantindo renda extra para o agricultor – de acordo com a Farsul, o Estado ocupa de 6 milhões a 8 milhões de hectares para a produção de soja no verão e apenas 1,2 milhão com culturas de inverno.

Segundo o diretor-geral da Embrapa Trigo, Jorge Lemainski, pesquisas desenvolvidas pela empresa pública em suas unidades de Trigo e de Suínos e Aves mostram que algumas cultivares de trigo podem substituir 100% do milho na formulação de rações animais. A substituição, afirma, pode representar uma vantagem competitiva para a cadeia de proteína animal. “(A demanda das indústrias) é um fato novo mercadológico que converge para a liquidez de toda a matéria-prima de trigo produzida no sul do Brasil. Temos uma fronteira agrícola para ser explorada no inverno”, destaca Lemainski.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895