Sobre como o Brasil chegou ao extremismo

Sobre como o Brasil chegou ao extremismo

A invasão da Praça dos Três Poderes e a maior destruição de símbolos da República brasileira revelaram uma face autoritária de parte da sociedade brasileira identificada com a extrema-direita

Por
Flavia Bemfica

Na semana que sucedeu o maior ataque aos símbolos da República já registrado no país – a invasão da Praça dos Três Poderes ocorrida no domingo, 8, em Brasília –, as cúpulas do Executivo, Legislativo e Judiciário agem de forma coordenada para conter novos atentados. A tensão toma conta do meio político e judiciário. Serviços de inteligência se apressam em antecipar movimentos, de forma a evitar a continuidade da sucessão de falhas e omissões que resultou na tragédia anunciada do dia 8. Enquanto isso, a população, ou a maior parte dela, tenta entender como o país chegou à barbárie testemunhada no domingo: o que, afinal, levou milhares de pessoas a invadirem os prédios que abrigam o centro da democracia, quebrarem tudo o que encontravam pela frente, saquearem de computadores a objetos de valor inestimável, urinar e defecar em diferentes ambientes e deixar um cenário de destruição?

Há consenso entre pesquisadores de diferentes áreas, todos debruçados sobre a instabilidade que há uma década marca a história política brasileira, sobre a existência de um ‘caldo’ de elementos que culminou nos ataques do dia 8. É uma multiplicidade de fatores no qual se interligam aspectos sociais, econômicos, culturais e históricos. A lista é extensa. É inegável, por exemplo, a ascensão de movimentos de extrema-direita pelo mundo, disruptivos e sovados a partir da insatisfação de vastas parcelas de populações com os modelos tradicionais de representação política ou com a falta de “entregas” desses mesmos modelos para suas demandas. Há os aplicativos de mensagens, os algoritmos e as redes sociais, onde a comunicação “direta’, sem mediadores, associada à ausência de fiscalização ou de regras claras de conduta, permite a difusão massiva de desinformação e de teorias sem qualquer necessidade de comprovação. 

E há características próprias do Brasil, que o transformam em solo fértil para movimentos extremistas modernos: os altos índices de desigualdade social e pobreza, a cultura do privilégio e da distinção, a tradição de conciliação “de cima para baixo”, expressa por acertos entre as chamadas ‘elites’ econômicas e políticas, a perpetuação histórica de parte da sociedade que insiste em se enxergar como pacífica, mas tem um perfil autoritário e, não raro, violento, a falta de conhecimento que gera confusão sobre a aplicação de conceitos como democracia e liberdade.

A relação de fatores vai muito além de um descontentamento com o resultado das últimas eleições nacionais e a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os que protagonizaram o vandalismo na Praça dos Três Poderes vestidos com camisetas da seleção brasileira ou enrolados na bandeira do Brasil, sonhando com um golpe militar que depusesse Lula e recolocasse Bolsonaro na presidência, à revelia do resultado do pleito, constituem uma franja extrema do movimento que se convencionou chamar de bolsonarismo, aponta o historiador e coordenador do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), Adriano de Freixo.

“O bolsonarismo, como o trumpismo, também é um movimento identitário. Ele precede e transcende a figura de Bolsonaro. Tanto que, se a liderança do ex-presidente se esvaziar, será substituída (já existe uma disputa por esse posto) e o movimento seguirá existindo. Ele representa uma identidade conservadora, tradicional, que cultua determinados valores e perpassa gênero, classe, raça ou grau de escolaridade formal. Dentro desse movimento, há uma direita conservadora democrática, que age dentro das regras do jogo, e há o bolsonarismo extremado, representante de uma direita disruptiva, que se insere em uma tradição autoritária muito forte presente na sociedade brasileira. Ela é avessa a qualquer transformação social, não aceita abrir mão de determinados “privilégios” e não hesita em usar métodos violentos para manter suas posições. Foi ela que vimos em atuação no domingo”, explica Freixo.

Diferenças e proximidades entres forças conservadoras e reacionárias

O professor Adriano de Freixo é um dos que, nos últimos anos, vêm se dedicando a explicar a ascensão da direita na política brasileira. No final de 2020, lançou o livro “Os militares e o governo Jair Bolsonaro: entre o anticomunismo e a busca pelo protagonismo”. Ele também é organizador de obras coletivas, como “Brasil em Transe: Bolsonarismo, nova direita e desdemocratização” e “Manifestações no Brasil: as ruas em disputa”. “Bolsonaro deu rosto a uma visão de mundo reacionária que já existia na sociedade brasileira, inclusive com um certo peso”, resume. 

Esta visão está no extremo dos três segmentos que são a base do bolsonarismo: os que negam as transformações da sociedade, se colocavam em posições de privilégio e se incomodam com a ascensão política e social de grupos como mulheres, negros e LGBTQ, mesmo quando são eles mesmos integrantes destes grupos; o segmento religioso, protagonista de uma agenda moral; e um setor ligado às Forças Armadas que tem projeto político de poder e perspectiva histórica anticomunista (termo que, com o fim da Guerra Fria, passou a designar as guerras culturais contra todos os grupos que divergem de seu entendimento).

“O Brasil, nas últimas décadas, vinha procurando ampliar o Estado Democrático de Direito, incluir. Porque somos ainda um país em que o que predomina para a maioria, nas periferias, é o estado de exceção. Esses núcleos disruptivos não aceitam esta ampliação. Para eles, incluir significa aceitar o diferente, admitir que o outro tem os mesmos direitos. Mas, no seu entendimento, o diferente é inimigo e inimigo precisa ser exterminado, não incluído. A marca dos movimentos reacionários é a necessidade de construir uma nova ordem a partir do caos. E todo movimento disruptivo perde as amarras que o processo civilizatório trouxe: regras de convívio. Viver em sociedade é aceitar estas regras. A partir do momento em que você tem a lógica da destruição para construir o novo, as regras do convívio são esquecidas. Voltamos ao estado de natureza”, elenca Freixo.

O professor Paulo Henrique Cassimiro, do Departamento de Ciência Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e autor do livro “O Populismo Reacionário”, lembra que partidos e movimentos conservadores que atuam em consonância com a democracia existem em várias partes do mundo, governam nações e integram o espectro político assim como outras forças. O fato de defenderem restringir a mudança social ou possuírem uma agenda restrita em termos de costumes não está em contraposição com o Estado Democrático de Direito. “Nosso problema aqui é que se o bolsonarismo se conciliar com as instituições, perde seu fundamento, esta energia que tem de prometer a destruição e a regeneração do sistema em nome de uma concepção reacionária de passado. É, em um certo sentido, um movimento revolucionário, porque não pode se estabilizar com o sistema político”, ressalva. 

A confusão entre forças conservadoras e reacionárias ganhou tração nos últimos 10 anos, alimentada pelas redes sociais e por um sistema de desinformação que encontrou estratos de população propícios a acreditarem nele por dois motivos principais, segundo os que estudam a extrema-direita moderna no país. Porque reforça, em grande medida, as próprias crenças destas populações. E porque dá a elas a sensação de que, de alguma forma, se diferenciam, estão tendo informações privilegiadas, participam de grupos integrados por pessoas que atuam ou conhecem alguém em posição de poder.

Somou-se a isto a complacência com que diferentes esferas de poder vinham tratando determinados temas (ainda antes de 2018), como os limites do direito à liberdade de expressão ou aqueles relativos a protestos em espaços públicos. A equação ganhou por fim um elemento conhecido da sociedade brasileira: o da incerteza quanto a aplicação de sanções para transgressões, contravenções e crimes, a depender de quem os pratica. É um contexto no qual, muitas vezes, a punição funciona como premiação (são conhecidos, por exemplo, os casos de aposentadoria precoce para servidores públicos sobre os quais pairam denúncias de prática de desvios ou crimes). 

Cassimiro usa o termo “isolamento informacional” para ajudar a explicar o sucesso das narrativas que transformam parte dos conservadores em reacionários. A hipótese mais provável, segundo ele, é que essas narrativas reforcem certos padrões que já estão presentes em parcelas da população. “É claro que existe um elemento oportunista, mas a maioria das pessoas que estava nos ataques de domingo acreditava estar operando uma destruição do sistema para construir algo novo, liderado pelo Bolsonaro, que não criou esse sistema, apenas o capitalizou.” Segundo ele, o 8 de janeiro pode enfraquecer a extrema-direita, mas não fará ela desaparecer, porque o sistema criado de mobilização política, de valores, de crenças, de concepções de como a política deve ser, seguirá em funcionamento. “As condições estruturais de mobilização deste discurso extremista continuam ativas, não dependem de Bolsonaro”, adianta.

A segunda motivação a catalisar grupos, a da distinção social, por sua vez, é, explica Cassimiro, muito forte em um país onde um amplo estrato da população acredita ter uma posição social que não corresponde à base material da sua posição real, que está sempre vulnerável, mas não se acha na base da pirâmide. “Estamos falando da situação de insatisfação e instabilidade da classe média e, ainda mais, da classe média baixa. Isso explica, entre outros pontos, a raiva sempre tão presente”, alerta. 

Mais do que entender como o país chegou ao 8 de janeiro, os elementos da complacência com determinadas práticas ou da ausência de sanções, tão cobrados por extremistas para aqueles que enxergam como seus inimigos, são os que, desde domingo, ganharam centralidade nos debates. Porque, em grande medida, vão determinar fatos futuros. O governo federal prometeu identificar e punir financiadores e organizadores que atuam nos bastidores para inflamar hordas como as que atuaram no domingo.

Ainda não vieram a público as explicações, para além da responsabilização de integrantes do núcleo do governo do Distrito Federal, sobre as falhas em sequência das forças federais. E o debate de fato sobre mudanças na formação de forças de segurança é tabu e, ao que tudo indica, apontam os pesquisadores, não vai ser feito. O mesmo tipo de proposta para tratar das Forças Armadas, então, é considerado fora de questão tanto por integrantes do novo governo como por analistas.

“A intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, e o afastamento do cargo do próprio governador, restabeleceram a ordem. Mas a perspectiva de identificação e responsabilização criminal dos envolvidos nos atos de depredação do patrimônio público e de tentativa de derrubada do Estado Democrático de Direito é fundamental para a contenção deste tipo de violência espetacularizada em manifestações de rua, com a qual lidamos desde 2013”, lista o professor dos programas de Pós-graduação de Ciências Criminais e Ciências Sociais da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo. 

Ghiringhelli está entre os que defendem que, para barrar a escalada da violência contra os poderes constituídos, além da identificação e responsabilização de autores de condutas criminais, seja criado um Ministério da Segurança Pública separado do Ministério da Justiça (a proposta entrou em discussão mas não foi adiante na formação do novo governo Lula). Seria, na avaliação do professor, uma forma de garantir a atuação do governo federal na reestruturação do setor e na restauração da normalidade democrática na atuação dos órgãos de segurança pública. “Outra tarefa muito importante no primeiro momento é a ‘desbolsonarização’ das polícias, com sua submissão ao controle civil (dos governadores no caso das polícias militares e civis e do governo federal no caso das polícias Federal e Rodoviária Federal) e com punição à desobediência e a manifestações antidemocráticas via redes sociais ou outros meios. O tema do que fazer em termos de uma reforma, contudo, deve ser colocado em pauta mais à frente”, avalia ele.

“Não tem problema a extrema-direita não desaparecer, e ela não vai desaparecer. Só que deve ser isolada, vigiada. Da mesma forma, pessoas que levantam ideias extremistas precisam sofrer as devidas sanções legais. Não podemos partir para o conhecido reprimir, anistiar e vida que segue. É necessário aprumar o sistema político. O estado de inconstitucionalidade foi normalizado por muito tempo e, agora, se criou uma possibilidade de normalização que não deve ser desperdiçada”, projeta o professor Christian Lynch, do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), também autor de ‘O Populismo Reacionário’.

Brasil: das jornadas de 2013 à invasão de 2023

2013 - Jornadas de Junho

Foto: Laycer Tomaz/Câmara dos Deputados

Série de protestos que tiveram início organizados por movimentos e siglas à esquerda, como o Psol, contra o aumento das passagens de ônibus. Rapidamente passaram a levar multidões às ruas. As pautas se tornaram difusas e foram capitalizadas por emergentes movimentos de direita, que catalisaram uma insatisfação generalizada com a classe política, as deficiências dos serviços de saúde, educação e segurança, a corrupção e o sistema de representação política.

2014 - Operação Lava Jato 


Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Começou em março com investigações da Polícia Federal para apurar crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, entre outros, e tendo como um dos principais focos desvios na Petrobras. Logo o Ministério Público Federal em Curitiba entrou nas investigações. A operação alçou à condição de celebridade o então juiz Sergio Moro (eleito senador em 2022 pelo União Brasil). Seus desdobramentos incluíram a prisão de expoentes do empresariado, como Marcelo Odebrecht, e da política, de diferentes partidos, como MDB, PP e PT, sendo o principal deles o agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os métodos das investigações e processos, contudo, eram questionados. Ainda em 2018, quando Moro aceitou integrar o governo de Jair Bolsonaro, as dúvidas sobre sua imparcialidade aumentaram. Em 2019, foram vazadas conversas entre o ex-juiz e outros integrantes da operação, evidenciando irregularidades. A Lava Jato foi encerrada em 2021. Antes disto, o STF já havia começado a anular decisões de Moro, entre elas condenações contra Lula.

2014 - Reeleição de Dilma Rousseff


Foto: Agência Brasil

Mesmo fragilizada, a petista conseguiu se reeleger para a presidência da República em uma disputa acirrada, marcada por ataques, e que expôs a divisão da sociedade. Dilma contabilizou 51,64% dos votos ante 48,36% do candidato Aécio Neves (PSDB). Aécio, que na apuração dos votos havia largado na frente, e seu partido, contestaram o resultado e pediram auditoria das urnas eletrônicas junto ao TSE para apurar fraude. A auditoria constatou que os votos foram computados corretamente, mas a cisão do país aumentou.

2016 - Impeachment de Dilma 


Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao final de 2015 o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB), aceitou pedido de impeachment contra Dilma. A solicitação ocorreu a partir de denúncia de crime de responsabilidade, com acusações sobre desrespeito à lei orçamentária e à lei de improbidade administrativa, popularizadas na expressão “pedaladas fiscais”. Também eram levantadas suspeitas de envolvimento em corrupção na Petrobras. Dilma teve o mandato cassado em 31 de agosto de 2016. Em seu lugar, assumiu o vice, Michel Temer (MDB). Em 2022, o MPF arquivou o processo que tratava das pedaladas fiscais. As suspeitas de envolvimento em corrupção nem chegaram a ter andamento.

2018 - Prisão de Lula 


Foto: Ricardo Stuckert

O petista foi preso em abril de 2018 e cumpriu pena até novembro de 2019. Em 2017 o então juiz Sergio Moro o havia condenado a 9 anos e 6 meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro na ação sobre o triplex no Guarujá, investigado na Lava Jato. Em janeiro de 2018, a 8ª Turma do TRF4 confirmou a condenação. Em abril de 2019, a 5ª Turma do STJ a manteve. Com a prisão, o petista foi impedido de disputar as eleições presidenciais de 2018. Em 2021, o ministro Edson Fachin, do STF, anulou as condenações de Lula no âmbito da Lava Jato por considerar que o TRF4 julgou o processo fora de sua área de jurisdição. Com a decisão, o petista recuperou os direitos políticos e os processos judiciais contra ele foram transferidos para o Distrito Federal. O caso do triplex acabou arquivado. 

2018 - Eleição de Bolsonaro 


Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente no segundo turno das eleições de 2018, com 55,13% dos votos válidos, derrotando Fernando Haddad (PT), que obteve 44,87%. Então no PSL, o ex-capitão do Exército exercia mandatos como deputado federal. Ele se elegeu em contexto de forte polarização, com bandeiras expressamente à direita, discurso conservador e não raro radicalizado nos costumes, com a defesa de pautas como a armamentista. Prometia reformas liberais na economia, contrário ao sistema político, antipetista e de combate à corrupção. Na campanha, levava multidões às ruas em seu apoio. É considerada a primeira eleição ocorrida no país sob grande influência das redes sociais.

2018 - Greve dos Caminhoneiros 


Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil

Considerada a maior manifestação da história da categoria, começou no final de maio, a partir do descontentamento sobre o aumento do óleo diesel. Durou 10 dias, alcançou 24 estados e teve impacto significativo sobre toda a população: prejuízos a diferentes cadeias produtivas, desabastecimento de alimentos, falta de combustíveis em postos. Medidas para baixar os preços anunciadas pela gestão Temer não conseguiam terminar com a greve. O movimento se apresentava como ‘sem lideranças’, organizado a partir das redes sociais, o que dificultava as iniciativas de negociação. Como se deu de fato sua organização é alvo de investigações até hoje. Ao fim, Temer acionou militares para desbloquear as vias, decretando uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

2019 - Inquérito das Fake News 


Foto: Reprodução/CP

Aberto em março pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, após serem tornadas públicas ofensas do procurador Diogo Castor de Mattos, integrante da Lava Jato, ao Judiciário, o inquérito gera polêmica desde então. Ele foi instaurado pela própria Corte com base em seu regimento interno, mas sem a solicitação de outro órgão. A relatoria, sem sorteio, foi designada ao ministro Alexandre de Moraes. O inquérito segue em tramitação, em sigilo, e apura a disseminação de notícias falsas e de ataques que envolvam o STF e seus integrantes. A partir dele, Moraes já proferiu uma série de decisões e passou a ser apontado por bolsonaristas como um de seus principais adversários. 

2020 - Pandemia do Coronavírus


Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O comportamento do então presidente Jair Bolsonaro e de integrantes de seu governo em relação a pandemia do coronavírus e seu enfrentamento voltaram a acirrar os ânimos na política, somando-se a outras polêmicas da administração. Os debates sobre uso de máscaras, fechamento de estabelecimentos, compra e aplicação de vacinas, tratamentos e mortes impactaram as eleições de 2020 e 2022 e geraram desgastes em série para Bolsonaro. Em 2021, o Senado instalou a CPI da Covid para apurar a atuação do governo federal. Os inquéritos estão agora em andamento no Judiciário e a possibilidade de responsabilizações futuras não é descartada.

2022 - Eleição de Lula 


Foto: Ricardo Stuckert

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito presidente no segundo turno das eleições de 2022 com 50,90% dos votos válidos, derrotando Jair Bolsonaro (PL) que tentava a reeleição e obteve 49,10% dos válidos. A diferença de pouco mais de dois milhões de votos marcou o ápice da corrida presidencial mais acirrada desde a redemocratização do país, marcada pela violência, a disseminação massiva de conteúdos falsos nas redes sociais e a aprovação de uma série de iniciativas do governo que tentava ampliar seus índices de preferência. A vitória do petista é atribuída, em grande medida, ao fato de ele ter conseguido articular uma frente com a participação de diferentes partidos e de continuar a aglutinar apoios no segundo turno. Lula se elegeu ao terceiro mandato com a promessa de uma gestão a ser marcada pelo destaque às pautas sociais e ambientais, à redução da desigualdade, à melhora na economia e ao combate aos discursos de ódio.

2023 - Invasão da Praça dos Três Poderes


Foto: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo

Os ataques de 8 de janeiro, com invasão e depredação dos prédios do STF, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto ocorreram após mais de dois meses de ameaças e questionamentos por parte dos grupos que apoiavam o ex-presidente. Depois da vitória de Lula, parcelas deles seguiram questionando a lisura das urnas eletrônicas. Organizados, inicialmente bloquearam rodovias e, ante a desaprovação da opinião pública, montaram acampamentos em frente a quartéis, pedindo intervenção militar, impedimento da posse do eleito e manutenção do então presidente no cargo. Na noite de 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula e do vice, Geraldo Alckmin (PSB), um grupo vandalizou a área central de Brasília, ateou fogo em carros e ônibus e tentou invadir a sede da Polícia Federal. A resposta das forças de segurança foi branda. Em 24 de dezembro, véspera de Natal, a Polícia prendeu em Brasília um homem que se identificou como bolsonarista e frequentava o acampamento em frente ao QG do Exército, após ele montar um explosivo em um caminhão nos arredores do aeroporto. Ele tinha também um arsenal de armas. Na semana que antecedeu o 8 de janeiro, era de conhecimento público a farta distribuição de material nas redes sociais organizando atos para a “tomada do poder” na capital federal.

A invasão do Capitólio dos Estados Unidos em paralelo com o caso brasileiro


Foto: Andrew Caballero-Reynolds / AFP / CP

Os ataques em Brasília no último domingo ocorreram dois anos depois da invasão do Capitólio, a sede do Congresso dos Estados Unidos localizada em Washington D.C., e tanto a forma usada pelos invasores como o objetivo dos atos remete à existência de um método comum (mesmo que, no Brasil, a destruição tenha sido maior). Não há comprovação, porém, sobre se o planejamento do que aconteceu aqui foi apenas uma cópia dos extremistas norte-americanos ou se pode ter ficado a cargo de um mesmo grupo de estrategistas de extrema-direita.

Na tarde de 6 de janeiro de 2021, cerca de 2 mil apoiadores do ex-presidente Donald Trump, do partido Republicano, que dois meses antes havia perdido as eleições para o democrata Joe Biden, invadiram o prédio do Legislativo, ocupando e destruindo objetos e espaços. Eles, assim como Trump, continuavam a afirmar, sem provas, que as eleições tinham sido fraudadas e, por isso, negavam-se a aceitar o resultado. 

Com a invasão, pretendiam impedir a certificação da vitória de Biden que ocorria naquele dia no Congresso, obrigando parlamentares a invalidar parte dos resultados da eleição, mudando os números de determinados locais. Trump, ainda presidente, já havia tentado convencer seu vice, Mike Pence, à frente da sessão de certificação, a recusar dados enviados pelos estados. Pence negou frontalmente a possibilidade, tornando sua posição pública em uma carta.

Trump não desistiu. Discursou em frente à Casa Branca, incentivando os partidários a “marcharem” para o Capitólio. Eles foram portando bandeiras dos EUA, peças vermelhas (a cor do partido Republicano) com o nome e a imagem de Trump ou símbolos de movimentos extremistas. A invasão interrompeu a sessão legislativa, mas ela foi retomada à noite, e certificou a vitória de Biden. A situação levou cerca de três horas para ser controlada pela polícia, com o auxílio da Guarda Nacional. Cinco pessoas morreram, mais de 100 policiais ficaram feridos. Durante o caos, Trump primeiro optou por se manifestar via Twitter, pedindo que os manifestantes se mantivessem pacíficos. Só depois da confirmação de feridos divulgou vídeo pedindo que os partidários fossem para casa, mas reafirmando que a eleição tinha sido fraudada e que sabia como eles estavam se sentindo.

O episódio foi considerado tentativa de golpe de Estado e o FBI, o Departamento de Justiça e o Congresso abriram investigações. Em dois anos, 950 pessoas foram acusadas de crimes federais e se tornaram rés: houve 192 condenações e 484 admissões de culpa. Organizadores que não estavam no Capitólio também foram responsabilizados, entre eles líderes de grupos extremistas e supremacistas como o Oath Keepers e o Proud Boys. 

Mês passado, em seu relatório final, a comissão do Congresso que investigava a invasão pediu ao Departamento de Justiça o indiciamento de Trump por quatro crimes: obstrução de procedimentos oficiais, conspiração para fraudar os EUA, divulgação de declarações falsas e incitação ou apoio à insurreição.

Para Saber Mais – Documentários

  • Alvorada (Anna Muylaert e Lô Politi)
  • A Rede Social (David Fincher)
  • Democracia em Vertigem (Petra Costa)
  • Depois da Verdade: Desinformação e o Custo das Fake News (Andrew Rossi)
  • Driblando a Democracia (Thomas Huchon)
  • Four Hours at the Capitol (Dan Reed)
  • 8 Presidentes, 1 Juramento (Carla Camuratti)
  • O Ataque ao Capitólio (Jules Naudet e Gédéon Naudet)
  • O Dilema das Redes (Jeff Orlowski)
  • O Processo (Maria Augusta Ramos)
  • Privacidade Hackeada (Karim Amer e Jehane Novjaim)
  • Quebrando Mitos (Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira)

Para saber mais - Livros

  • Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova Direita e Desdemocratização (Organização de Rosana Pinheiro-Machado e Adriano de Freixo)  
  • Como as Democracias Morrem (Daniel Ziblatt e Steven Levitsky)
  • Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era dos Meios de Comunicação de Massa (John B. Thompson)
  • Leviatã (Thomas Hobbes)
  • Limites da Democracia – De Junho de 2013 ao Governo Bolsonaro (Marcos Nobre)
  • O Ovo da Serpente – Nova Direita e Bolsonarismo: Seus Bastidores, Personagens e a Chegada ao Poder (Consuelo Dieguez)
  • O Populismo Reacionário (Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro)
  • Poder Camuflado – Os Militares e a Política, do Fim da Ditadura à Aliança com Bolsonaro (Fabio Victor)
  • Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda)

Ouça também:

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895