Sonho difícil de ser conquistado

Sonho difícil de ser conquistado

Mais de 112 mil pessoas no RS estão na fila para tirar carteira B, segundo Detran

Por
Taís Teixeira

Conquistar a tão sonhada Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e dirigir. Muitos jovens aguardam com ansiedade o dia de completar 18 anos para ter a CNH em mãos. Porém, para mais de 112 mil gaúchos esse sonho se tornou um pesadelo caro e demorado. Esse é o número de candidatos na fila pela prova prática para carteira B, segundo o Departamento de Transporte do Rio Grande do Sul (Detran-RS). Já o Sindicato dos Centros de Formação de Condutores do Estado do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS) informa que o excedente ultrapassa 300 mil. Esses candidatos estão há meses na fila à espera de um horário disponível para o exame de rua. De acordo com o diretor-geral do Detran-RS, Marcelo Soletti, essa é a consequência do desequilíbrio entre o alto volume de pessoas para fazer o exame e a falta de horários disponíveis para conquistar a CNH B, que habilita para carros. Tanto que o Detran-RS anunciou investimento de R$ 1,3 milhão para aumentar o número de provas práticas e dar vazão ao processo.

Desse conjunto, a autarquia destaca que mais de 17 mil são de Porto Alegre. Esse total inclui quem vai fazer a prova pela primeira vez mais o contingente de reprovados, demanda que segue elevada e aumenta ainda mais com a persistente distância entre o fim das aulas práticas e a realização do exame. Enquanto isso, a espera é acompanhada de mais gastos por parte dos candidatos com aulas extras nos centros de formação de condutores (CFCs), quando esses têm agenda de horários disponível para essa leva. Tudo para tentar não ficar tanto tempo longe do que se aprendeu durante as 20 aulas práticas e reduzir o risco de ser reprovado novamente, ciclo que reinicia uma sequência de gastos, tornando o processo dispendioso e desgastante.

Atualmente, a carteira para carros custa R$ 2.714,16 no Rio Grande do Sul, a sétima mais cara do Brasil, segundo o Detran gaúcho, mas há estudos divergentes que apontam que o Estado ostenta a CNH mais onerosa do Brasil, como o levantamento liderado pela equipe técnica do deputado estadual Fábio Ostermann (Novo). “Os dados do Detran estão desatualizados e fazem comparações com outras categorias de CNH. Mostramos nosso levantamento e não nos confrontaram, e pareceu nem fazerem questão disso”, relatou Ostermann.

Esse valor quase diminuiu a partir de uma decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que derrubou, em julgamento no dia 31 de maio, a obrigatoriedade do simulador nas aulas práticas para tirar CNH B no Rio Grande do Sul, tornando-o opcional, como no restante do país. Os três desembargadores que participaram da sessão mantiveram os efeitos da Resolução 778/2019, do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que torna facultativo o uso do equipamento para a expedição da CNH. Mas a vigência se manteve até 21 de junho, quando a Justiça voltou atrás e reintegrou o uso de simuladores para obtenção da primeira carteira de motorista. No dia 14, a decisão no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) reverteu determinação que havia sido divulgada em maio.

A mudança ocorreu a partir do direito de defesa do Sindicato dos Centros de Habilitação de Condutores do Estado do Rio Grande do Sul (SindiCFC-RS), que entrou com embargos declaratórios contra o acórdão do dia 31 de maio pedindo atribuição do efeito suspensivo. O desembargador Rogério Favreto decidiu suspender a determinação do colegiado da 3ª Turma do tribunal. Dessa forma, a obrigatoriedade dos simuladores continua no Estado. O efeito suspensivo vale até o trânsito em julgado, que não tem tempo previsto para conclusão.

O advogado especialista em Direito do Trânsito Roberto Brum explicou que o Detran-RS ao tomar ciência do acórdão, emitiu um ofício exigindo a aplicação imediata da decisão por parte do Sindicato dos CFCs do RS. Assim, o RS segue como único estado brasileiro que exige o simulador para obtenção da primeira habilitação da carteira B, na contramão das demais unidades federativas do país. Em 2015, o Contran havia instituído a exigência do uso do equipamento em todo o país. Porém, mudou de posição ao analisar o impacto no custo da habilitação e a falta de avaliação sobre a eficácia da ferramenta e publicou a nova resolução, tornando, quatro anos depois da deliberação anterior, a utilização do simulador facultativo. Na época, o SindiCFC-RS recorreu ao TRF4, que, de forma liminar, derrubou a resolução, sustentando a obrigação no Rio Grande do Sul.

Se tivesse sido mantida, a desobrigação do simulador representaria em torno de menos R$ 380,00 no processo. Mas essa não é a única modificação que ronda o trabalho desempenhado pelos CFCs. O Projeto de Lei 6485/2019, que trata sobre o fim das aulas em autoescolas como etapa compulsória para tirar a CNH nas categorias A e B, foi para votação no Senado Federal no fim de maio. O PL está no Congresso Nacional desde 2019 e é uma proposição da senadora Kátia Abreu. A propositura mantém as provas teóricas e práticas sem a obrigatoriedade das aulas preparatórias nas autoescolas. Dessa forma, os alunos podem se planejar individualmente ou com os instrutores independentes credenciados ao Detran de seu respectivo estado.

A principal justificativa da senadora está no custo para obter o documento. Em vários estados, o valor total para tirar a habilitação gira em torno dos R$ 3 mil. “Cerca de 80% do custo total se refere à obrigatoriedade de frequentar aulas teóricas e práticas em autoescolas. Esse gasto, na maioria das vezes, é inviável para a maioria das famílias mais pobres em todo o país”, menciona.

O Detran-RS vê com preocupação o PL 6485/2019. Soletti entende que é no CFC que o candidato é devidamente preparado, à luz da legislação e do trabalho de conscientização para um trânsito mais seguro, por meio de direção defensiva, realizado a partir de um planejamento pedagógico e desenvolvimento dos demais conteúdos previstos. “Os termos do referido PL fragilizarão esse comprometimento, ao desvincular o processo de formação a um espaço oficial de aprendizagem, deixando-o disperso, comprometendo também a supervisão deste trabalho, o controle da qualidade do serviço prestado e fiscalização”, entende.

O credenciamento de CFCs iniciou em 1997, com a instituição do Detran-RS como autarquia (antes era um departamento da Polícia Civil). Até 2009, os exames práticos de direção eram aplicados por meio de empresas contratadas (fundações). Em setembro de 2009, o Detran-RS assumiu essa função e, desde então, os exames são aplicados por servidores públicos do quadro.

O presidente do SindiCFC-RS, Vilnei Pinheiro Sessim, justifica os custos afirmando que cada estado tem a sua dinâmica e que deve ser avaliada individualmente. Ele garante que os CFCs são empresas e, como tais, têm custos para se manter, além do compromisso de ensinar com profissionais preparados, desde toda a legislação até toda a parte prática, para que os candidatos se tornem motoristas conscientes.

Detran tenta mudar portarias

O deputado estadual Fábio Ostermann liderou uma pesquisa indicando que a CNH B do Rio Grande do Sul é a mais cara do Brasil. Ostermann menciona duas portarias gaúchas, de números 181/2016 e 039/2022, que atuam no sistema de habilitação do Estado. A primeira vincula a abertura de um CFC a um número de habitantes. Um município com até 45 mil habitantes não pode abrir um CFC, sendo que a população local terá que se inscrever na cidade mais próxima onde funcione um centro de formação. Municípios que tenham a partir de 45 mil até 90 mil habitantes podem ter um CFC. E a cada 90 mil habitantes, pode-se abrir novos centros de formação.

Já a segunda portaria determina os valores da hora cobrados para aulas teóricas presenciais, simulador para categoria B e locação de veículos para todas as categorias. “Essa restrição é um absurdo, limita a competição, atende aos interesse dos donos de CFCs e impacta nos preços ao consumidor”, salienta Ostermann, ressaltando que cobrou do governador do RS uma solução, o qual se comprometeu com um mutirão para dar vazão às filas, mas que ainda não notou diminuição efetiva.

O Detran explica que a atual gestão tentou mudar esse modelo. Duas portarias foram publicadas em 2019: 283/2019 (estabeleceu os valores estipulados como teto, autorizando os Centros a praticarem valores de aulas menores) e 284/2019 (alterou regras para abertura de novos CFCs, o que possibilitaria abertura de novos Centros). No entanto, ambas as normativas foram suspensas por determinação judicial, de forma liminar, mais uma vez em favor do Sindicato dos CFCs do RS. Essa liminar já foi derrubada pela justiça, mas, para evitar entendimentos diversos durante o processo, mudando a decisão novamente, a autarquia optou por aguardar o trânsito em julgado da ação (o que ainda não ocorreu). “Destacamos que também estamos mudando mais um regramento interno e atualmente alguns CFCs realizam o que chamamos de “atendimento especial fora sede (AEFS) em cidades próximas que não têm CFC, sendo possível realizar aulas teóricas e parte das aulas práticas na localidade”, conta o diretor geral do Detran-RS, Marcelo Soleti. Soleti destaca que a mudança vai possibilitar também a abertura de serviços, os exames médicos, aulas teóricas e práticas na localidade onde é ofertado o AEFS por CFC da região. Sobre esse tema das portarias que vigoraram perante liminar do SindiCFC, o dirigente do sindicato foi questionado, mas não respondeu até o fechamento da edição.

O presidente do Conselho Regional de Economia do Estado do RS (Corecon-RS), Mario de Lima, em uma análise da portaria do Detran 181/2016, que institui a regulamentação complementar ao disposto no Contran para o processo de seleção, credenciamento e operacionalização dos CFCs, destaca que os centros de condutores “são entidades que atuam mais como uma atividade permissionária de prestação de serviços públicos de monopólio natural, do que um oligopólio”. O economista explica que um monopólio natural “é um monopólio em uma indústria na qual altos custos de infraestrutura e outras barreiras à entrada em relação ao tamanho do mercado dão ao maior fornecedor em uma indústria, frequentemente o primeiro fornecedor em um mercado, uma vantagem esmagadora sobre concorrentes potenciais”, enquanto que um oligopólio “é uma forma evoluída de monopólio, no qual um grupo de organizações ou governos promovem o domínio de determinada oferta de produtos e/ou serviços.”

Lima reitera que os CFCs são pessoas jurídicas credenciadas que executam as pertinentes atividades com observância às normativas do Detran-RS e do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), do Contran, CTB e demais normativas vigentes.

Pandemia é apontada como uma das causas da demanda represada

A pandemia é um dos fatores apontados pelo diretor-geral do Detran-RS, Marcelo Soletti, como um dos incidentes que colaboraram para o represamento de provas, que agora se ampliou com a chegada de novos candidatos. “Muitos examinadores se contaminaram, já que iam para os locais de exame no mesmo carro, ficavam afastados e demoravam a retornar. Além disso, os protocolos vigentes exigiam higienização do veículo entre os candidatos, procedimentos que tomaram um tempo que antes era usado na aplicação das provas”, disse. Dessa forma, o intervalo, que podia chegar a um mês, passou para até cinco meses em alguns locais, o que motivou o Estado a olhar com mais interesse para esse cenário. “É uma prioridade do governador Ranolfo Vieira Júnior que esse quadro mude até setembro”, disse o dirigente. Para atingir essa meta, Soletti, que se disse solidário com os candidatos que estão esperando, contou que horários extras estão sendo inseridos na agenda dos testes de rua, das 17h30min às 19h30min e nos sábados de manhã. Essas provas extras estão acontecendo conforme a análise pontual dos pontos mais críticos do Estado.

Estima-se que 5% dos CFCs detenham 20% do total dos candidatos em espera, a maioria nos grandes centros. As turmas de provas extras da categoria B (carro) começaram a ser aplicadas no início de maio. Uma atualização de dados no período de 4 a 24 de maio indica que foram abertas 18 turmas extras, com a realização de cerca de 410 provas práticas da categoria B, em 11 cidades do RS (Uruguaiana, Sant’Ana do Livramento, Esteio, Jaguarão, Bagé, Caçapava do Sul, Dom Pedrito, Caxias do Sul, Passo Fundo, Pelotas e Erechim), para dar vazão à demanda. Com essa dinâmica, o dirigente acredita que possa resolver esse impasse até antes de setembro, reduzindo a espera para, no máximo, um mês. “Não é o ideal, mas é o melhor que se pode fazer neste momento”, comenta, ressaltando que o prazo de 15 dias seria o mais indicado.

Hoje o Rio Grande do Sul tem 165 examinadores de trânsito, que são servidores públicos vinculados ao Detran-RS. Para o presidente da autarquia, o total de examinadores é suficiente, sem necessidade de abertura de concurso para aumentar o número de profissionais. “Com as horas extras, será possível organizar esse quadro”, destacou. Eles trabalham por rota, ou seja, não há um número definido para cada cidade ou região. “Os examinadores vão para uma rota e podem ficar uma semana aplicando provas em cidades que estão no caminho”, explicou.

Já o presidente do SindiCFC-RS, Vilnei Pinheiro Sessim, acredita que é preciso aumentar o número de examinadores. Antecipando que esse quadro iria estourar, Sessim relata que sugeriu ao Detran gaúcho, ainda em fevereiro, que outros servidores públicos, lotados em outros órgãos e com diferentes funções, como policiais militares, aplicassem os exames por, pelo menos, três meses. Sessim entende a situação dos alunos, que estão tendo que aguardar por longos períodos para fazer o exame, assim como percebe que, em algumas cidades, esse contingente se depara com a falta de aulas extras para alunos reprovados ou para quem quer mais aulas práticas, além das 20 contempladas. Todavia, avalia que os 269 CFCs (o Detran diz que são 264) que atuam no Estado cumprem com o seu trabalho e não devem ser vistos como responsáveis, ou como os principais responsáveis, por esse imbróglio.

Sessim disse que, no dia 8 de junho, recebeu mensagens de CFCs do Interior informando o cancelamento das provas por parte do Detran. “A equipe de examinadores do Detran acabou de desmarcar 32 exames na cidade de Garibaldi e 28 na cidade de Lagoa Vermelha. Esses locais têm exames uma vez por semana e, para os próximos três meses, a agenda disponibilizada já está cheia. Será que esse problema deve ir para a conta do CFC?”, pergunta. Em Canguçu, a história foi parecida. “Nesses locais, as provas são quinta-feira e sexta-feira, a cada 15 dias. Na semana passada, o Detran ofereceu algumas provas extras na quinta-feira. Desmarcamos a agenda dos carros e pagamos horas extras para os instrutores. Até aí tudo bem. Mas desmarcaram todas as provas de sexta, prejudicando a todos.”

De acordo com o Detran-RS, o Estado tem 264 CFCs, sendo 36 localizados na Capital. Nos CFCs, atuam 857 instrutores teóricos e 3.967 instrutores práticos, sendo que alguns profissionais são credenciados nas duas funções. Soletti salienta que passa orientações para os centros de formação de como proceder para evitar esse acúmulo de pessoas entre quem vai fazer a prova pela primeira vez e os reprovados que farão de novo. “Os CFCs podem deixar algumas aulas práticas para mais perto da prova”, disse. Mas não é assim que funciona. A agenda do Detran só é disponibilizada quando o aluno conclui as 20 aulas práticas. Se a data disponível para o exame for muito distante do término do aprendizado de rua e o aluno quiser fazer aula durante esse intervalo, terá que pagar aula extra. Isso se tiver horários livres no CFC escolhido pelo aluno, o que é mais uma dificuldade.

Impactos sociais e econômicos

A senadora Kátia Abreu justifica o projeto (PL 6485/2019) dizendo que a atual exigência das autoescolas para conseguir a CNH afeta principalmente os mais pobres. “A obrigatoriedade da autoescola cria um problema social. O preço hoje para tirar a habilitação é altíssimo e 70% desse valor é o custo da autoescola. Hoje temos 84 milhões de brasileiros com mais de 18 anos que não possuem carteira de motorista e 90% são de baixa renda”, argumenta a senadora, ressaltando que muitos acabam indo para a ilegalidade (dirigindo sem habilitação) por não terem condições financeiras.

Com relação à segurança no trânsito, a parlamentar enfatiza que o projeto prevê que as provas serão mantidas. A proposta abre oportunidade para que um membro da família possa se credenciar como instrutor, com a garantia de estar fazendo esse treinamento de forma certa. Ela lembra também que a proposta não quer acabar com as autoescolas, mas democratizar e dar o direito às pessoas tirarem suas carteiras. “A decisão final é no Detran. Lá ocorrem as provas e a decisão final. Se eu não passar no Departamento de Trânsito, não sei dirigir, não terei a CNH”, disse Kátia. O projeto também prevê a aplicação prioritária da receita das multas de trânsito no aprimoramento dos exames teóricos e práticos, o que possibilitaria ao aluno obter a CNH por um valor mais justo. No RS, uma lei estadual determina a CNH social, que garante ao cidadão de baixa renda habilitação gratuita.

O economista da Fundação Getulio Vargas (FGV) André Braz menciona que ainda é cedo para avaliar essa tentativa de “modernização”, mas frisa que dirigir é parte do processo, ressaltando a importância de manter o entendimento da legislação. “Se a pessoa mostrar que, além de dominar o carro, domina o Código de Trânsito, não vejo grandes problemas na flexibilização.” Braz completa dizendo que o mais trágico é a pessoa dirigir sem treinamento suficiente. “E uma burocracia que mexe com vidas e acaba diminuindo a probabilidade de que um motorista com pouquíssimo treino pegue carro e machuque a si mesmo e a outras pessoas”, compreende.

Na avaliação do presidente do Corecon-RS, Mario de Lima, dirigir sem habilitação “geraria um custo econômico com impacto social muito superior ao valor que um cidadão com habilidade necessária para habilitar-se, pagaria para dirigir”. Ele salienta que retirar a exclusividade do CFC e ampliar para instrutores não garante a alteração do cenário econômico.

Quanto ao mercado de trabalho, o economista da FGV lembra que ter carteira de motorista não está condicionado a ter um carro, mas é uma qualificação para abrir portas para empregos, como para realização de alguns concursos públicos que exigem como requisito a carteira B.

Ansiedade pode atrapalhar o domínio técnico nas prova

A perna treme na embreagem e o carro apaga. A subida inesperada no meio-fio que nunca ocorreu em aula. Ficar acima dos 50 centímetros de distância da calçada. Aquele pisca que sempre foi dado nas aulas, mas que no momento do exame nem sequer passou pela cabeça. Um exemplo de falhas que acontecem na hora do exame, não por falta de conhecimento e de técnica, mas pelo nervosismo incontrolável que anestesia a capacidade de executar as manobras com precisão. E para passar dos 3 pontos, limite máximo para conseguir a aprovação, pode ser de segundos a minutos. É quando o candidato escuta o que não quer ouvir: “Segura”. Fim de prova. Reprovação.

Supervisor e examinador há dez anos do Detran-RS, Cristiano Machado da Costa afirma que os candidatos costumam ficar nervosos a cada prova prática, condição que se multiplica a cada reprovação, criando ensejo para que o aluno desenvolva um bloqueio. “Por isso, se prioriza quem vai fazer a primeira vez porque, se entrar em um ciclo de reprovações, será cada vez mais difícil nas próximas etapas", pontua.

A especialista em psicologia do trânsito e presidente da Presidente da Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego (Abrapsit) e membro do Câmara Temática de Educação e Saúde do Contran , Patrícia Sandri, disse que hoje o psicólogo está na primeira fase do processo de avaliação, com a aplicação de perícia psicológica, todavia está estudando maneiras de mudar a formação do condutor. “Restringir o atendimento psicológico apenas no início é uma lacuna, pois entendo que essa assistência deveria permanecer em todo o processo”, disse. A especialista enfatiza que o candidato que reprovou duas vezes, por exemplo, pode buscar essa intervenção para virar o jogo. “No momento em que o sonho vira um pesadelo, desmotiva, o que leva muitas pessoas a desistir, e é aí que entra a importância da psicologia”, comenta.

Os dirigentes das entidades relacionadas ao processo afirmam que os instrutores têm essa habilidade, já que atuam no ensino e aprendizado diretamente com o candidato. Porém, Patrícia, que também trabalha em CFCs, conta que está desenvolvendo com uma colega um projeto de capacitação dos instrutores. “Estamos conversando com o SindiCFC-RS para dar treinamento aos instrutores, pois eles são o carro-chefe”, ressaltou. Da mesma forma, compreende que os alunos também poderiam ter acesso a esse preparo por dinâmica de grupo, por exemplo. “Talvez nessas oportunidades se possa trabalhar questões referentes à ansiedade", disse.

A dirigente da Abrapsit reitera que a saúde mental está fragilizada pela pandemia. Em alguns casos, os alunos que acumulam muitas reprovações são conduzidos pelos instrutores para a psicóloga, pois notam que se não houver um tratamento de ordem emocional, não se conseguirá ir adiante. “Pode causar até uma fobia, um medo da situação, pois é um momento em que inseguranças podem aparecer”, disse.

O preço da ansiedade


Mariana já teve sintomas físicos de ansiedade na hora da avaliação, como tremores e nervosismo. Foto: Ricardo Giusti

Mariana Avakian, 22 anos, é estudante de Administração e desde 2019 tenta tirar a habilitação para carro, situação que já se tornou um drama. Já foram mais de dez provas realizadas sem resultado positivo. Nestes quase três anos, Mariana está no segundo CFC e já pagou o preço de duas carteiras. "Somando tudo, entre taxas e aulas extras, devo ter gastado mais de R$ 10 mil”, contabiliza. Por ter conhecido diferentes técnicas de ensino e dirigido diferentes modelos de carro, a estudante se sente tranquila nas aulas práticas. “Os instrutores elogiam, dizem que estou pronta e me sinto bem, segura”, conta. O problema, segundo ela, é a ansiedade no momento do teste. “Na hora da prova, sendo observada, em uma situação de julgamento, com várias pessoas olhando, acaba pesando um pouco”, relata.

Ela já teve sintomas físicos, como tremores e nervosismo. Todavia, entende que pelo tempo que está tentando, desenvolveu uma autocobrança excessiva que acaba prejudicando. "São pequenos erros cometidos, como encostar na baliza, ou ficar uns centímetros longe da calçada, que não têm segunda chance para acertar, vai direto para a reprovação”, conta. Sobre a postura do avaliador, ela entende que o Detran poderia ser mais flexível. “No dia a dia as coisas não são assim, as falhas no trânsito são visíveis”, entende. Enquanto a carteira não vem, Mariana gasta com carros de aplicativos para se deslocar. “É muito dinheiro”, destaca.

A jovem está ciente de que a ansiedade é uma inimiga no processo. “Eu me cobro muito, me sinto muito pressionada e me sinto péssima quando reprovo”, salienta. O processo é considerado demorado. “Muita gente para pouco carro, o que prejudica ainda mais”, frisa. Da mesma forma, disse que é difícil marcar aulas extras na semana da prova, o que percebe como mais um fator de dificuldade. “Vejo que o sistema tem falhas, mas hoje tenho que olhar para a ansiedade desenvolvida que cresce cada vez mais”, disse.

Fator cultural prejudica mulheres, embora elas se saiam melhor na parte teórica

Durante um longo tempo, dirigir foi uma atividade masculina. Apesar do número de mulheres ao volante ter aumentado, frases como “tinha que ser mulher” ainda são repetidas para ofender motoristas femininas, em especial quando dirigem mais devagar, dentro da velocidade permitida na via. Dados do Detran revelam um perfil diferenciado entre homens e mulheres que buscam a CNH B. O público feminino é mais aprovado na prova teórica do que o masculino, mas reprova mais no teste de rua. Em compensação, mais condutores homens morrem em acidentes de trânsito do que mulheres.

O número de mortes com mulheres ao volante é muito menor que de homens. Dados do Detran-RS, indicam que 2019 registrou 419 condutores de carros mortos, sendo que apenas 34 eram mulheres e 376 homens; em 2020 foram 376 condutores mortos, 21 mulheres e 354 homens; em 2021, 476 mortos, sendo 60 mulheres e 416 homens; e até março de 2022 foram contabilizados 115 condutores de carros mortos, 15 mulheres e 106 homens.

Segundo o Detran-RS, em 2019, na categoria B, foram 121.459 aprovados (65.611 homens e 55.848 mulheres) contra 223.656 reprovados (65.833 homens e 157.823 mulheres). O total de reprovados é 84,2% maior que o de aprovados. O número de mulheres reprovadas é duas vezes maior que o de homens. Até maio de 2022, temos um cenário proporcional na CNH B em relação ao de 2019. Os aprovados somam 60.391, sendo 31.931 homens e 28.460 mulheres. Os reprovados fecham quase o dobro de aptos, chegando a 107.144 (31.531 homens e 75.613 mulheres). Os dados evidenciam que a quantidade de reprovados é 77,4% maior que a de aprovados, sendo que o público feminino representa cerca de 70% dos reprovados.

Isso significa que o total de candidatos que deverá voltar para o sistema (107.144) terá que pagar de novo a taxa do Detran, atualmente em R$ 80,24, mais a taxa de aluguel do carro do CFC, que está R$ 64,91. Juntas, as duas cobranças somam R$ 145,15 por pessoa.

O Detran-RS arrecadou este ano, até dia 21 de junho, R$ 889.431.368,34. Desse total, R$ 162.673.840,58 referem-se à habilitação. Os números tratam da arrecadação bruta, ou seja, sem dedução de despesas. Em nota, o departamento destaca que valores de taxas são definidos em lei para cobrir os custos do serviço, o que inclui, além do custo administrativo, remuneração de profissionais e empresas envolvidas, manutenção dos registros, desenvolvimento de sistemas e segurança de dados, e disponibilização de serviços em plataformas digitais, entre outros. O Detran-RS também informou que faz repasse para investimentos no Fundo Especial da Segurança Pública (Fesp).

A presidente da Associação Brasileira de Psicologia de Tráfego (Abrapsit) e membro do Câmara Temática de Educação e Saúde do Contran, Patrícia Sandri, ressalta que a formação de condutores é discutida com frequência na câmara temática. O entendimento é de que tanto instrutor como examinador precisam de uma capacitação para entender melhor as dificuldades e as diferenças que perpassam o processo. Ela acrescenta que o processo de formação do condutor evoluiu, mas, com base na sua experiência, muitos tópicos precisam ser revistos, entre eles, a questão do aprendizado feminino. É o que aconteceu com Ana Lu de Jesus, 30 anos, psicóloga, que tentou conquistar a CNH para carro aos 18 anos. Fez a prova duas vezes e reprovou. A frustração foi tamanha que ela tirou uma conclusão. “Dirigir não é para mim”, pensou. Ana Lu comenta que pensou em desistir, mas insistiu.

Com o tempo, teve uma percepção a partir da sua vivência pessoal. “No meu núcleo, as mulheres costumam ter mais dificuldade em passar do que homens. Entendo que há um fator cultural que pode determinar isso”, disse. A observação de Ana Lu faz sentido. Conforme Patrícia, o número de homens que chegam sabendo dirigir é bem maior do que o de mulheres, sendo que muitas pegam o carro pela primeira vez na autoescola. “É um aspecto cultural bem marcado. Basta pensar: qual é o primeiro brinquedo que o menino ganha? Um carrinho. E a menina? Uma boneca, um fogão”, explica, ressaltando que isso já vem mudando, mas ainda é o modelo que predomina. A psicóloga reforça que em muitas famílias as mulheres não dirigiam, apenas os homens, um conceito que cresce integrado à formação da mulher.

Ana Lu conta que a mãe também não dirige e acredita que essa peculiaridade possa ter aparecido no momento de passar pelos exames. “Me sentia incapaz”, realça. Após reprovar duas vezes, cinco anos depois, aos 23 anos, a necessidade a fez buscar novamente a habilitação. “Tive que pagar tudo de novo”, relembra. Ela pensou que, passados cinco anos, teria um resultado diferente, mas não aconteceu. “Reprovei novamente, pela terceira vez”, recorda. O tremor na perna fazia com que o carro apagasse. Então, tentou outra solução. “Entendi que precisava encarar isso e encontrei apoio na terapia comportamental cognitiva, onde trabalhei a exposição ao medo para controlar meu corpo pela respiração”, detalha. Ela não passou na quarta vez, mas na quinta sim. O tratamento atendeu aos objetivos, além de usar algumas técnicas. “Pedi para ser a primeira a fazer. Ver as outras pessoas chorando e reprovando me fazia mal”, relembra.

R$ 600 por mês em aplicativos


Débora deve se inscrever de novo no processo. Se aprovada, vai comprar o carro de que tanto precisa. Foto: Mauro Schaefer

Pelo menos duas horas por dia da rotina da supervisora administrativa Débora Wetter da Rosa, 36 anos, são consumidas no retorno para casa. De segunda a sexta-feira, ela, que mora em Canoas, mas trabalha em Porto Alegre, usa cinco meios de transportes na volta para casa junto com os dois filhos, de 4 anos e 10 anos. “Em Porto Alegre, pego um ônibus, vou até a estação de trem. De lá, chamo um carro de aplicativo e vou para a escola do mais novo. Chamo outro carro e vamos para a escola do mais velho. Por fim, chamo o terceiro carro para voltarmos para casa”, descreve. A rotina só não é mais pesada porque na parte da manhã, na ida, consegue carona com o marido. Ela relata que se tivesse CNH para carro, esse tempo se reduziria para cerca de 40 minutos. Os gastos também. “Pago em torno de R$ 600 apenas com carro de aplicativo”, contabiliza.

Débora conta que a necessidade de tirar a habilitação surgiu quando teve filhos, aos 26 anos. Ao iniciar o processo no CFC, em Porto Alegre, recorda que teve situações que considerou prejudiciais para quem estava esperando organização para o aprendizado. “Trocaram três vezes de instrutor sem me avisar. Cada um ensina de um jeito e tem uma conduta, e acho que isso influencia quem nunca dirigiu e precisava aprender”, explica. Porém, a frustração maior foi quando a examinadora deu o resultado da primeira reprovação. “’Ficou longe na baliza e já perdeu um ponto e não deu um pisca e são mais três pontos, logo três mais um é quanto?’”, perguntou para Débora, que ainda respondeu “quatro” e recebeu como réplica, “bom, então não foi dessa vez”.

Com 30 anos, voltou e mudou de CFC e de cidade. Dessa vez, se preparou em um CFC de Canoas. Teve de pagar tudo de novo. Grávida, fez as etapas obrigatórias com tranquilidade. Dessa vez, não saiu da baliza. Depois, fez mais três provas. “Eu sei que tenho capacidade, tive pequenos detalhes por conta do nervosismo, mas acredito que eu poderia estar habilitada”, comenta.

Hoje, Débora pensa em tentar novamente. A partir da própria experiência, entende que o processo apresenta falhas que resultam em reprovações. “Tem instrutores que executam o trabalho, mas não tem método ou estão cansados de ensinar. E os examinadores chegam com postura de impor medo, parece que chegam para reprovar, o que piora a situação de todo um grupo que está fragilizado pela situação.”

Dano psicológico

O processo de conquista da primeira habilitação é uma etapa séria do ponto de vista econômico e social, mas vai além disso. É um processo com implicações comportamentais que, se não bem conduzidas, podem desencadear transtornos emocionais. A psiquiatra e membro do núcleo de psiquiatria do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) Graziela Stein reforça que esse quadro pode acontecer diante de gatilhos mentais acionados pela constante frustração adquirida em cada reprovação computada. Para isso, ela insere o contexto na atualidade, explicando que a pandemia da Covid-19 afetou a saúde mental das pessoas, o que gerou um reflexo preocupante no Brasil. “O pós-pandemia aumentou em 25% os quadros de ansiedade e o Brasil é o país com mais casos no mundo, mais até que os Estados Unidos, o que nos faz entender que vivemos uma verdadeira pandemia da ansiedade”, relaciona.

O medo é um fator muito forte, que pode paralisar uma pessoa. A médica evidencia que a ansiedade afeta muito a capacidade de raciocínio, traz dificuldade de concentração, facilidade de distração, pode causar antecipação dos movimentos, situações que aumentam o grau de complexidade para fazer uma prova de CNH. “Soma-se a isso a chamada Ansiedade de Desempenho, que desencadeia sofrimento por antecedência ‘de como vou me sair nisso’, já vai com pensamentos limitantes”, esclarece.

A especialista assinala que pessoas com quadro de ansiedade deveriam buscar acompanhamento com psiquiatra porque já têm dificuldade inerente. Outro aspecto são pensamentos do tipo “nem tento porque tenho medo, não vou passar, não é para mim”, limitam a liberdade, capacidade de ir e vir e aumentam os danos causados pelo processo.

Gatilhos mentais
Graziela chama a atenção para o fato de que um ensejo de frustração repetitiva como esse em que as pessoas reprovam repetidas vezes pode ser uma condição propícia para o desencadeamento de um transtorno. “As crenças limitantes que as pessoas carregam,construídas no decorrer da vida, podem vir à tona no momento de estresse, o que é uma característica de ansiedade por desempenho.Eu tenho medo da crítica e do olhar do outro, mas muitas vezes, é o próprio olhar que a pessoa carrega sobre o fato”, explana.

Mudar a dinâmica do exame
A modificação do exame prático é uma das alternativas indicadas pela médica como uma saída para resolver esse problema. Ela concorda que o processo deveria ser repensado e não ser mais como é hoje, com uma "plateia" vendo a pessoa ir e voltar com o resultado, uma situação de superexposição. “A pessoa não apenas se sente testada, como de fato está sendo testada. Deveria ter mais sensibilidade e fazer uma dinâmica menos expositiva. Com certeza, muitas pessoas sabem dirigir e estão reprovando não só pelo represamento, mas pelo nervosismo que prejudica o raciocínio cerebral”, disse. Um dos possíveis resultados é a pessoa terminar sem carteira e com um transtorno resultado desse enredo todo é que a pessoa pode terminar sem carteira e com um transtorno. “O indivíduo se sente muito inferior e menos que os outros ao invés de resolver o problema. Uma das consequências pode ser que, cientes de que sabem dirigir, muitos vão para a direção sem CNH , o que as coloca a todos em uma situação ainda pior e insegura”,realça. Para um desempenho melhor e menos traumático, a dinâmica deveria mudar, com certeza”, assegura. Ela pondera que todas as pessoas deveriam ser chamadas e não voltar para junto do grupo. "São detalhes que mudariam bastante o desempenho".

Avaliação do examinador
A psiquiatra apresenta uma abordagem interessante que é a avaliação do examinador. “Não se tem avaliação sobre eles, como é esse acompanhamento, o treinamento que eles podem ter para lidar com esse alto índice de ansiedade dos candidatos”, reforça. Os examinadores têm uma posição decisiva, que vai realizar o sonho ou impedi-lo de acontecer. Ele ocupa um lugar de superioridade nesta cadeia. Por isso, esses profissionais não podem deixar, por exemplo, que um dia ruim possa interferir no resultado. “São seres humanos e falhas podem ocorrer. Por isso, a importância de uma avaliação, um treinamento dos examinadores,pois muitas pessoas reprovam por erros mínimos, o que não significa que não sabem dirigir”, esclarece. A especialista relaciona que há um ganho financeiro para o sistema toda vez que alguém se inscreve para uma nova prova. “Em um país com dificuldade econômica, cada vez que se precisa pagar para obter algo e não se tem sucesso, surge mais uma pressão, pois a maioria das pessoas não dispõe dessa liberdade financeira para ir reprovando”, analisa.

Ansiedade alta entre mulheres
Sobre o alto índice de reprovação feminina nas provas práticas, a especialista explica que mulheres sofrem mais quadros de ansiedade, fato que justifica esse cenario. “A mulher é capaz de aprender o que quiser, mas ainda existe na cultura uma superioridade do homem como condutor, mas o que há é uma igualdade. Além das questões culturais, têm as questões pessoais, de autoboicote, ela não se sente capaz, se sente menos em muitas situações não apenas para tirar uma CNH”, disse.

Alívio da ansiedade
A psiquiatra acrescenta que a medicação pode ser um caminho para aliviar a ansiedade e melhorar o desempenho habitual que se teria, se a ansiedade não se apresentasse no organismo da pessoa. “Não é necessariamente um tratamento contínuo, pode ser pontual, por um período”, relata. Outro ponto é o tempo para o tratamento surtir efeito. “Depende de cada um, mas em média, precisa de dois meses para ter resultados”,comenta. A especialista ressalta que esse processo é tão forte que pode bloquear algumas pessoas, impedindo que busquem solução. “A experiência incorporada como algo traumático pode causar uma visão sobre si mesmo como incapaz em outras áreas da vida dela”, realça. Graziela destaca que, apesar das dificuldades que delineiam o momento, ela faz um apelo. “Apesar de vivermos uma desesperança no planeta, não desistam”, disse.

Cansaço de enfrentar novamente o sistema


Valentina se sente desmotivada e sem vontade de refazer a prova, mas para ela é uma necessidade. Foto: Alina Souza

A estudante de engenharia ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Valentina Guirlland, 20 anos, sempre foi boa aluna. Egressa do ensino privado e tendo concluído o Ensino Médio no Colégio Tiradentes da Brigada Militar de Porto Alegre, ela pensou que tirar carteira de habilitação seria uma caminhada sem tantas quedas. Ela está tentando tirar a CNH para carro desde março de 2021.

Valentina detalha que a insatisfação com o sistema começou já no início, quando teve que pagar toda a carteira, seja à vista ou parcelada, no ato da inscrição. “Paguei tudo na hora, mas eles tinham o tempo deles para marcar as etapas”, conta, avaliando que a entrega do serviço não correspondeu à exigência de quem teve que quitar o valor.

A demora entre as etapas também causou desgosto. “Quando terminei as aulas teóricas fiquei um mês esperando para fazer a prova teórica e já não me lembrava tão bem do conteúdo", conta, reiterando que depois esperou mais um mês para o simulador. Não foi diferente nas aulas práticas. “Terminei e tive que esperar mais um mês para marcar o exame”, disse. Valentina já foi reprovada três vezes e a vaga para novo exame é de, pelo menos, 30 dias depois. "Aí tem outro problema, que é não ter horário para fazer aulas extras, as agendas estão sempre lotadas e as respostas do atendimento são frases prontas que sugerem que não adianta reclamar”, descreve.

A terceira reprovação veio em fevereiro deste ano. Desde então, resolveu dar um tempo, mas já se prepara para enfrentar tudo novamente. “Estou na luta para marcar a prova, pois tenho até 31 de dezembro para resolver isso, senão terei que pagar tudo novamente e isso me preocupa”, lamenta, dizendo que já gastou mais de R$ 4 mil em pouco mais de um ano e que não sabe como vai continuar pagando se continuar reprovando.

Sobre a forma de atuação dos examinadores, ela disse que entende que há regras, mas que poderiam ter uma atenção à performance e não tanto aos pontos. “Acho que falta humanização, não se considera nervosismo, como se fossem robôs fazendo prova.”

Concentrada e calma


Vanessa lembra que era uma aluna atenta e interessada. “Eu fazia muitas perguntas, muitas mesmo, para o instrutor, queria entender tudo o que estava fazendo.” Foto: Marisa Flores de Oliveira

A advogada Vanessa Flores Oliveira, 41 anos, conquistou o que todos querem quando iniciam qualquer processo de habilitação: passar na primeira prova. Quando iniciou o processo, em janeiro de 2015, ela não dirigia. “Eu não sabia nada, aprendi tudo na autoescola”, conta. Em maio do mesmo ano, estava com a CNH em mãos. Na época, o que a motivou a ter a carteira B foi a autonomia, a liberdade de ir e vir, sem depender de transportes e nem de ninguém. “Muitas vezes, tinha audiência de noite ou eu ficava até mais tarde no escritório e era perigoso esperar por algum transporte na rua.”

Vanessa procurou um CFC e começou o processo. Ela lembra que era uma aluna atenta e interessada. “Eu fazia muitas perguntas, muitas mesmo, para o instrutor, queria entender tudo o que estava fazendo.” Além disso, acrescenta que executava todas as manobras com calma. “Eu não tinha pressa em terminar, seguia os comandos devagar, procurava fazer bem feito, memorizando tudo, inclusive o local”, conta. Após concluir as 20 aulas exigidas, ela escolheu fazer mais três extras. “Quis me sentir totalmente segura.”

Vanessa relata que, neste período, passava por uma situação particular difícil, mas conseguiu neutralizar esse aspecto. “No dia da prova, enquanto me arrumava em frente ao espelho, eu conversava comigo, dizia frases que me motivavam, me davam segurança.” Quando chegou ao local, levou um fone de ouvido e começou a ouvir música. “Não fiquei conversando com ninguém. Coloquei uma música que eu amava, fechei os olhos e me deixei energizar”, detalha. Quando foi chamada, lembra que pensou o seguinte: “Pronto, agora é a hora”. Ao concluir a etapa de baliza, o examinador entrou no carro. A reação dela foi espontânea. “Vamos dar essa banda”, disse, o que, segundo ela, “quebrou o gelo” e a deixou mais tranquila.

Motorista há sete anos, ela diz que dirigir foi uma das melhores escolhas. “É liberdade, uma escolha para a vida”.

Características da prova e a dificuldades de conseguir aprovação na primeira tentativa

“É difícil passar de primeira, normal é passar depois.” Essa frase, ou alguma fala parecida, pode ser evocada para apoiar ou tentar acalmar o candidato ao exame prático. Mas o fato é que essa “normalização” não é tão evidente ao se verificar os índices de aprovação. O supervisor e examinador há dez anos do Detran-RS Cristiano Machado da Costa tem o olhar de quem vive há dez anos e apresenta outra percepção. Ele exemplifica que em um grupo de dez pessoas, entre três e quatro pessoas conseguiriam passar na primeira tentativa. “Mas já faz um tempo que o índice de aprovação de primeira não é dos melhores, as pessoas estão precisando fazer de três a quatro provas”, disse.

Costa considera que a adoção de algumas medidas poderia fazer a diferença para se chegar mais rápido ao resultado. O principal ponto mencionado seria a separação das etapas de percurso e baliza. “A baliza segue sendo o momento de mais reprovação do teste”, salienta. Hoje, se o candidato passa na baliza, mas reprova no percurso, ele reprova em todo o exame e precisa repetir novamente todo o processo da próxima vez. Por isso, entende que passar nesta etapa é fundamental. “A nossa vivência indica que vencida a etapa de baliza o aluno aumenta de forma exponencial a chance de sucesso já no primeiro teste”, realça.

O examinador ressalta que essa modificação é viável e está na mão da gestão do Detran-RS. “Depende do diretor autorizar. Já temos um sistema que pode ser adaptado de pronto, essa medida é tranquila de implementar”, garante. No entanto, o diretor-geral do Detran-RS, Marcelo Soletti, enfatiza que toda legislação de trânsito é definida em âmbito federal e com o regramento do processo de habilitação não é diferente. “A Resolução do Contran 789/2020 estabelece que o Exame de Direção Veicular para veículo de quatro ou mais rodas é um só, composto de duas etapas: estacionar em vaga delimitada por balizas removíveis e conduzir o veículo em via pública, urbana ou rural. Não é possível desassociar ambas, já que não existe uma prova de baliza e outra de percurso”, afirma.

Além disso, o supervisor chama a atenção para que os CFCs simulem uma prova prática antes de o candidato ir para o exame. O objetivo é identificar e verificar falhas e avaliar a possibilidade de aulas extras. “Além disso, fazer as aulas com concentração e foco total na execução de todas as manobras”, disse. Ele também inclui o Detran na implementação de melhorias. “Banheiros químicos para candidatos, instrutores e examinadores, cadeiras confortáveis para espera, área coberta com toldos e gazebos em dias de chuva e divulgar no site do Detran vídeos explicativos da baliza e do percurso.”

De primeira na moto


Depois da tentativa frustrada em tirar a habilitação para carro, nove anos depois, Shannon decidiu tentar a habilitação para moto. Passou de primeira. Foto: Ricardo Giusti

Shannon Cabral, 27 anos, é estudante de engenharia da Ufrgs. Em 2014, quando tinha 18 anos, ganhou de presente a CNH B. O que parecia ser o início de um ciclo promissor e de conquista, se tornou um processo longo e sem sucesso. Shanonn tentou tirar a habilitação por um ano, período de validade da carteira. Ao todo, deve ter feito pelo menos cinco exames. Todavia, a aprovação não veio.

Ao contrário de muitos jovens, Shanonn não sabia dirigir quando chegou ao CFC. Na época, estudava e tinha dificuldade para conciliar os horários da faculdade com as aulas práticas. “Eu me sentia prejudicado, não tinha muitas opções de horas para mim, era pegar ou largar, o que me fazia faltar aulas e isso me preocupava”, relata. Mas para ele, o problema central está na dinâmica das provas. “Pegam um bolo de alunos para fazer e fica todo mundo olhando, o que me deixava muito nervoso”, comenta.

O estudante recorda que a chamada para a realização da prova era por ordem alfabética e ele, como tem o nome com a inicial “S”, era um dos últimos. “Eu ficava esperando todo mundo fazer, vendo todas as provas, ficava muito nervoso com tudo isso”, destaca o estudante. Como resultado, veio o cansaço e a desistência. “Me sentia muito frustrado, fazia tudo direito nas aulas e na prova sentia aquela sensação de estar sendo observado, ficava nervoso e acabava errando”, descreve.

Shanonn lembra que a cada reprovação, a volta para o processo era um pouco demorada. “Quando se reprova, tu deixa de ser prioridade, o que faz a espera por uma nova data ser maior”, acredita. Para agilizar o processo, mudou de CFC. Porém, percebeu que a forma de trabalho era parecida.

Nove anos depois, ele decidiu tentar a habilitação para moto. Apesar do histórico de memórias negativas sobre o processo anterior com o carro, a performance e o resultado foi bem diferente. “Apesar de ter muita gente presente, da mesma forma que a carteira B, eu passei de primeira”, conta. Já faz um ano que ele é motociclista. A confiança e a familiaridade com o trânsito o faz pensar em dirigir o carro. “Acredito que hoje estou mais maduro e talvez tente tirar a habilitação para carro novamente”, explica.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895