Sonhos fora da pátria

Sonhos fora da pátria

O Brasil já foi visto com entusiasmo por migrantes da América Latina e da África. Porém, as dificuldades aumentaram, e alguns cogitam voltar a seus países

Por
Christian Bueller e Eduardo Andrejew

O sonho de construir uma vida nova no Brasil mobilizou um grande contingente de migrantes nos últimos dez anos. Há cerca de uma década, o país era visto como uma terra de novas oportunidades, sobretudo para haitianos, senegaleses e, mais recentemente, venezuelanos. Porém, a realidade mudou radicalmente, com um cenário de crise econômica acentuada pela pandemia. E a vida tornou-se mais difícil. O fluxo migratório para o Brasil continua, pois há países em situações muito piores. É o caso, por exemplo, da Venezuela, que segue em profunda crise econômica e em constante instabilidade política. O Haiti, por sua vez, vive um ano particularmente terrível, após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho e o terremoto ocorrido em agosto. Já a situação de quem veio do Senegal é diferente, pois trata-se de uma migração por motivos econômicos.

O fato é que o Brasil, em qualquer um dos casos, deixou de ser a terra prometida para muitos migrantes. Falta de emprego e moradia estão entre os principais problemas enfrentados por essas pessoas. Há casos recentes de venezuelanos sem teto pedindo esmolas em semáforos nas ruas de cidades como Porto Alegre. Além disso, muitos haitianos e senegaleses estão deixando o Brasil.

O contingente vindo do Haiti e da Venezuela é contemplado no Brasil pela Lei de Migração (13.445/2017): “Nos termos do art. 3º, inciso VI, o acolhimento humanitário será concedido em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, calamidade de grande proporção, desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário”. Por essa razão, já existe legislação voltada para o bem-estar dessa população.

O caso dos senegaleses é diferente. A maior parte pede por refúgio, mas não há consenso internacional sobre a condição de refugiados deles. “Não existe um amparo na lei para migrante econômico”, observa Karina Valenti, integrante do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire), atividade de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) que presta gratuitamente assessoria a imigrantes. “Mas a grande maioria tem um documento, que é o protocolo de solicitação de refúgio”, explica.

E aí surge outro problema, pois a documentação definitiva demora para ficar pronta e o documento provisório, mesmo sendo válido, não é aceito por empregadores, que ignoram a legislação. Ou seja, além da crise econômica, os estrangeiros precisam enfrentar a burocracia brasileira para conseguirem entrar no mercado de trabalho. Instituições ligadas ao atendimento de migrantes avaliam que o país ainda não conseguiu montar estrutura adequada para atender a esta população.

O Rio Grande do Sul, por pertencer a uma das regiões mais desenvolvidas do Brasil, está entre os destinos mais procurados por migrantes. O poder público não está ausente no atendimento deste público. Funciona em nível estadual o Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas do Estado do Rio Grande do Sul (Comirat/RS). Na capital gaúcha, por exemplo, o atendimento fica por conta do Comitê Municipal de Migração de Porto Alegre. Além disso, as prefeituras de Esteio, Canoas e Venâncio Aires realizam um trabalho de inserção dos migrantes. Boa parte da assistência, no entanto, acaba sendo feita por organizações da sociedade civil. Uma delas é o Centro Ítalo Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações). E há também a atuação de organismos internacionais. O grande problema é que a cobertura, ao menos por enquanto, não é suficiente para dar conta da demanda, que segue elevada.

Venezuelanos

Indígenas

Por mais de um mês, uma situação chamou a atenção na capital gaúcha. Uma família de indígenas da etnia Warao, vinda da Venezuela, acampou no Largo Edgar Koetz, em frente à Rodoviária de Porto Alegre. Eram 11 adultos, cinco homens e seis mulheres, e mais cinco crianças. No dia 30 de setembro, eles foram retirados pela prefeitura do local e encaminhados a abrigos. Os homens estão em uma casa e as mulheres e crianças foram para outro espaço. A saída do largo encerra apenas um capítulo do drama dos indígenas. Segundo Jesus Enrique, 25 anos, um dos integrantes do grupo Warao, eles chegaram ao Brasil há cerca três anos. Nos últimos meses tentaram se fixar em Porto Alegre. Inicialmente, conseguiram uma casa alugada no bairro Nonoai. Porém, acabaram deixando o local por conta de dificuldades para pagar o aluguel. “Estamos sem emprego”, explicou.

Quando acamparam em frente à rodoviária, passaram a pedir esmolas nos semáforos e ajuda da comunidade local. Além disso, queriam evitar albergues e abrigos. “Estivemos muito tempo morando em um albergue e lá aconteceu muita coisa”, comentava, sem entrar em detalhes, mas alegando que sofriam preconceito por serem indígenas. “Eles brigam com a gente por discriminação”, afirma. Além disso, Jesus Enrique se queixava de não receber ajuda da prefeitura. Porém, mesmo vivendo em uma situação precária em Porto Alegre, garante que não quer voltar para o país de origem. “Morando assim é melhor do que morar na Venezuela”, assegura. “Porque na Venezuela, para comprar alguns alimentos, é tudo caríssimo”, explica.

Mario Fuentes Barba, coordenador da Unidade dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos e coordenador do Comitê Municipal de Migração de Porto Alegre, assegura que a retirada dos Warao foi pacífica. E garante que os indígenas não estão desassistidos. “Assim como qualquer outro cidadão, independente de ser um migrante ou um indígena, há acesso aos serviços básicos de saúde, educação e assistência social”, diz. “Os indígenas venezuelanos receberam a vacina, primeira e segunda dose, sendo considerados dentro dos grupos prioritários, assim como os indígenas locais receberam também”, acrescenta.

De acordo com Fuentes, o grupo já estava sendo acompanhado desde que chegou e houve articulação para que tivesse acesso a atendimentos de saúde e assistência social, já na época em que foram morar no bairro Nonoai. “Então, se garantiu a assistência mediante o fornecimento de cestas básicas ou também do Bolsa Família. Se conseguiu uma entrega regular de alimentos complementares pelo Mesa Brasil, que hoje realiza entregas regulares nas comunidades indígenas locais”, garante. Fuentes alega ainda que, desde maio, os indígenas Warao recebiam um auxílio-moradia no valor de R$ 500,00 e tramita internamente a proposta para a concessão de dois a três auxílios para aluguel de imóvel para comportar todo o núcleo familiar.

Outra iniciativa é o encaminhamento dos Warao a um programa de oportunidades da Organização Internacional para as Migrações (OIM), das Nações Unidas, projeto de qualificação e inserção laboral, implementado pela Agência Humanitária Adra. Fuentes salienta que os indígenas e os demais migrantes também receberam doação de roupas e agasalhos para o inverno, além de cobertores e alimentos.

Recomeço em Porto Alegre

Ana Romero, 37 anos, deixou a cidade de Maturín, na Venezuela há um ano e sete meses. Com graduação em Recursos Humanos, enfrentava uma situação muito difícil no país. Hoje está empregada e pretende fazer a revalidação de seu diploma. Foto: Mauro Schaefer

Ana Romero, 37 anos, deixou a cidade de Maturín, na Venezuela há um ano e sete meses. Mesmo com graduação universitária em Recursos Humanos, enfrentava situação muito difícil no país. A questão não é o desemprego, mas o custo de vida. “Tem trabalho por lá, só que o salário não dá para as coisas básicas. É muito complicado ter uma alimentação saudável, balanceada, é muito difícil”, descreve. Ela veio ao Brasil sozinha, para encontrar seu irmão, que atualmente reside em Santa Catarina. Ficou lá durante um mês e, por fim, veio a Porto Alegre.

Sua chegada à capital gaúcha acabou coincidindo com o início da pandemia de coronavírus no Brasil, exatamente no momento em que as restrições para inibir aglomerações e circulação de pessoas se iniciaram. “Aí ficou muito difícil”, lembra. “Tudo estava fechado, não havia trabalho, não havia nada.” Na época, tinha feito amizade com outra venezuelana e, por algum tempo, foi acolhida na residência dela.

Porém, como não tinha condições de ajudar financeiramente sua amiga e temendo criar problemas financeiros para ela, decidiu deixar o lugar e procurou ajuda do Cibai Migrações, onde recebeu assistência e, o mais importante, uma oportunidade. Começou fazendo um trabalho voluntário no local e, meses depois, acabou sendo contratada. “E a coisa começou a melhorar”, conta. Ana atua na área de inserção laboral do Cibai e já faz alguns planos com o salário que está ganhando. Um de seus objetivos agora é validar o seu diploma no Brasil. E já está pensando, inclusive, em procurar residência em Porto Alegre. Embora tenha casa própria no seu país, pretende vender o imóvel para se estabelecer de vez no Estado e trazer sua família também. Não pensa em voltar.

Em busca da casa própria

Henry Pérez López está no Brasil há dois anos e dois meses. Atualmente, preside a Cooperativa Habitacional de Migrantes do Sul (Cohmisul), que reúne 43 famílias. A grande maioria dos integrantes é oriunda da Venezuela, mas também participam cubanos e bolivianos. A proposta é que os migrantes associados consigam construir suas casas, pois falta de moradia é um grande problema, sobretudo para os venezuelanos. Além da questão habitacional, a entidade também atua na arrecadação de alimentos e na busca por empregos para os associados. Cada cooperativado contribui com um aporte associativo para viabilizar os projetos. “Mas temos esse problema comum a todos os migrantes: muitos não têm trabalho ou, se trabalham, têm um salário muito ruim. Então a capacidade não é boa para poder avançar rápido”, explica. Por enquanto, o aporte financeiro para a construção das casas é muito pequeno, até porque, além dos baixos salários, os cooperativados precisam pagar aluguel e manter os gastos com as necessidades básicas. A proposta, então, é usar uma parte do valor para construir as primeiras residências. À medida que a situação financeira for ficando melhor, serão erguidas as demais casas. A operação não é simples, pois basta lembrar que é preciso adquirir um terreno para cada família. A cooperativa, segundo López, deverá buscar financiamento, tentar apoio de organizações mundiais e de programas federais.

Sonhos e projetos no Brasil

A venezuelana Nargivith Lara, de 22 anos, é uma das integrantes da Cooperativa Habitacional de Migrantes do Sul e espera, em breve, conseguir se mudar para uma casa própria com a família. Foto: Mauro Schaefer

A venezuelana Nargivith Lara, de 22 anos, é uma das integrantes da Cooperativa Habitacional de Migrantes do Sul. Ela está em Porto Alegre há quase três anos com sua família. Atualmente, reside em uma casa alugada no bairro Rubem Berta, com seus pais, a avó, o irmão e o filho, de 1 ano e dez meses. Na casa de madeira, há geladeira e máquina de lavar roupa, por exemplo. Muitos itens, segundo Nargivith, foram conseguidos por meio de doação. A família também conta com produtos repassados pela cooperativa. “Agora estamos bem, graças a Deus”, diz, assegurando que os dias mais difíceis já passaram. Os pais e o irmão já conseguiram emprego. E, após dois anos, Nargivith conseguiu uma vaga de jovem aprendiz no Hospital Nossa Senhora da Conceição, trabalhando como atendente de nutrição. Dessa forma, todos contribuem para o aluguel da casa e para começar a formular o futuro.

Nargivith sonha em cursar a faculdade de Design de Moda, mas também pensa em cursar Letras, com ênfase em Português e Inglês, na Ufrgs. Uma das metas mais imediatas é a construção da casa própria. Por essa razão, a família separa mensalmente cerca de R$ 100,00 para contribuir com a cooperativa. “Se tudo der certo, acho que para o final do ano que vem poderemos ter a casa”, projeta. A família não pensa em retornar à Venezuela e está decidida a construir a vida no Brasil. Ela e sua mãe, Lenis, destacam a solidariedade dos brasileiros. Receberam doações como o berço do bebê, a geladeira e roupas para o inverno. “Todos os brasileiros que conhecemos nos ajudaram.”

Haitianos

Realidades de muitas nuances

O haitiano Wilfrid Joseph está há três meses sem emprego. Desanimado, vê o dinheiro que tem guardado se reduzir a cada dia. Ele e sua esposa estão no Brasil há 9 anos e a fase não é boa, pois nenhum dos dois consegue arranjar serviço no momento. Morando no Parque dos Maias e contando cada nota e cada moeda para poder pegar o ônibus, Joseph, como prefere ser chamado, tem duas filhas, uma de 4 anos e outra de dois meses. Com a preocupação de sustentar a casa, ele busca alternativas. Já entrou em contato com entidades de apoio, como o Cibai Migrações, mas segue aguardando uma oportunidade. Desde que veio para o Brasil, atuou em diferentes atividades. Em um hotel, por exemplo, trabalhou na cozinha. Como sua atividade no Haiti era a de motorista, chegou a trabalhar no ramo de aplicativos em Porto Alegre. Porém, não conseguiu manter o veículo. “Qualquer serviço serve, faço qualquer trabalho”, assegura. Embora esteja muito frustrado, uma de suas certezas é a de que não deseja deixar o Brasil.

A opção de Joseph não é compartilhada por outros haitianos. Um grupo crescente, desiludido com as dificuldades econômicas no Brasil, está procurando oportunidades em outros países, como os Estados Unidos e o Canadá. O problema é que eles entram ilegalmente e as deportações já começaram. Recentemente, a imprensa internacional noticiou que 15 mil haitianos foram deportados da cidade texana de Del Rio, na fronteira com o México, para o Haiti. Neste grupo, havia 47 crianças brasileiras, filhas de país haitianos que viviam no Brasil.

Ancelot Desir, de 27 anos, à esquerda, chegou a Porto Alegre em março de 2020 para estudar Ciências Jurídicas e Sociais na Ufrgs. Já Rood Marline, 21, está há dois anos na Capital. Ela quer ser cardiologista e estuda para passar no vestibular de Medicina da Ufrgs. Foto: Mauro Schaefer

A situação dos haitianos é complexa e tem diferentes nuances, mas a crise preocupa a todos. Ancelot Desir, de 27 anos, chegou a Porto Alegre em março de 2020 para estudar Ciências Jurídicas e Sociais na Ufrgs. Justamente no início da pandemia. Logo após conseguir vaga na Casa do Estudante, vieram as medidas de isolamento. Apesar das restrições, conseguiu vaga de estágio no Palácio da Justiça, onde está há seis meses. Questionado sobre a situação do seu país, explica o que motivou sua vinda. “O Haiti é um país pobre, com problemas políticos, crises”, descreve. E a situação piorou com o assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho e o terremoto em agosto. Desir concorda que o Brasil já não está tão atrativo para muitos haitianos, por conta da crise gerada pela pandemia. Porém, mesmo com todos os problemas, prefere permanecer no país. “Os brasileiros não têm problemas com os haitianos”, avalia. “O povo brasileiro é um povo bem legal para nós.”

Há dois anos em Porto Alegre, Rood Marline Joseph tem 21 anos e seu sonho é ser cardiologista. Por isso, ela estuda para passar no vestibular de Medicina, na Ufrgs. Ela vive com a mãe e a irmã. Sua família, apesar das dificuldades, está decidida a se manter no Brasil. Especialmente depois de toda a luta para conquistar uma vida melhor. Rood explica que os primeiros meses na cidade foram muito difíceis. “O Haiti é um país tropical, não tem frio. Quando cheguei aqui, comecei a sentir alguns sintomas como febre, porque não me acostumava com o frio, e isso até deu um problema na minha menstruação”, recorda. Além disso, não sabia uma palavra de português e não encontrava ninguém que pudesse lhe prestar apoio. Junto a isso, precisou se ajustar ao sistema de ensino local. Conseguiu concluir o Ensino Médio, mas, durante a fase final, ainda teve que lidar com a chegada da pandemia. “Parou tudo. Eu fiquei em casa e segui as aulas on-line”, conta. Mas aí a questão do idioma passou a pesar mais. “Estava muito difícil de entender algumas coisas”, lembra. Com todos os percalços, Rood conseguiu se estabelecer e, atualmente, tem conseguido estudar e trabalhar.

A luta pelo reconhecimento

O haitiano James Derson, no país há oito anos, preside a Ainteso, entidade que presta serviços diversos aos migrantes vindos do Haiti. Foto: Mauro Schaefer

Os haitianos acumulam trajetória de uma década no Brasil. E, por essa razão, já estão mais organizados. James Derson, no país há oito anos, passou a maior parte deles em Porto Alegre. Atualmente, preside a Associação de Integração Social (Ainteso), entidade que presta aos migrantes vindos do Haiti uma série de serviços que vão além da documentação e do atendimento psicossocial. A Ainteso desenvolve um projeto de moradia e possui uma rádio on-line que transmite informações de interesse da comunidade haitiana. Outra iniciativa é um projeto de educação, que oferece cursos de português, francês e crioulo. E a sede, localizada no bairro Floresta, tem uma biblioteca comunitária. É este espaço que deu suporte para os jovens estudantes Ancelot e Rood.

Derson explica que o fluxo migratório do Haiti para o Brasil atualmente segue no mesmo ritmo. Porém, os meses anteriores foram traumáticos por conta das medidas restritivas impostas pelo combate à pandemia. As fronteiras e as embaixadas estavam fechadas e os pedidos de visto eram negados. A Ainteso precisou entrar na Justiça para tentar viabilizar a vinda de haitianos que tivessem familiares no Brasil.

Derson calcula que Porto Alegre tenha hoje de 5 mil a 7 mil haitianos. Porém, se somadas as cidades da Região Metropolitana, o número fica entre 20 mil e 30 mil. O trabalho de suporte a essa população, no entanto, está difícil. “Algumas pessoas perderam emprego por causa da pandemia e agora a gente está em uma fase de adaptação. De conseguir se adaptar com o caos da pandemia”, explica Derson. Além das poucas vagas, ele cita outras barreiras para se chegar ao emprego. Há problemas de documentação e também preconceito. “A gente sabe que aqui migrante é bem-vindo em algumas áreas. Mas a gente tem dificuldade de ganhar a confiança dos brasileiros para exercer outras funções. Então, o mercado de trabalho é bem específico para a questão migratória”, diz. As vagas oferecidas são para limpeza, trabalho em fábricas. E, uma vez empregado, há dificuldades para se conseguir promoção. “Haitianos e africanos têm menos chance de conseguir promoção, mesmo que tenham qualificação”, afirma.

Derson observa que não faltam haitianos com formação universitária. E uma das lutas da associação é justamente demonstrar que há pessoas qualificadas para realizar tarefas mais complexas. Ele também acredita que o poder público deveria oferecer mais apoio.

Senegaleses

Desemprego

Serigne Bamba Toure, presidente da Associação dos Senegaleses de Porto Alegre, trabalha na capital como técnico em automação. Também vende tecidos africanos e dá palestras sobre cultura africana. Ele conta que a associação foi criada em 2014 para ajudar a comunidade senegalesa do ponto de vista jurídico e social. São diversos tipos de auxílio, pois cada um tem suas necessidades específicas. “Se alguma pessoa tem necessidade de algum documento a gente corre atrás, pessoas com problemas de moradia, financeiro, de saúde, a gente corre atrás”, explica. Ele destaca que a situação está mais difícil para todos por conta da pandemia. “Nas comunidades senegalesas há muitas pessoas que não estão conseguindo trabalho, não estão conseguindo vender como vendiam antes seus produtos na rua”, revela. Por conta disso, Toure afirma que alguns estão retornando ao país de origem, enquanto outros tentam sair do Brasil para tentar a vida em outras nações. Ele fez essa constatação na última festa religiosa realizada pelos senegaleses em Porto Alegre, no último domingo de setembro. “Antes tinha quase cerca de 700 senegaleses, mas, no último dos encontros que a gente fez, contamos só 400 e pouco. Então cerca de 300 já estão saindo”, conclui. A crise econômica é o principal motivo. “O dinheiro do Brasil não tem mais a potência que tinha antes, comparado com o nosso dinheiro (o franco CFA), é quase o mesmo valor”, observa. Se os ganhos acabam se equivalendo, muitos preferem voltar para o Senegal e ficar perto da família. “Estão ganhando até mais lá no Senegal, o dólar subiu bastante”, explica. Nem todos estão decididos a sair, porém muitos pensam seriamente no assunto.

“A cabeça não fica só em um lugar"

El Hadji Seck, 34 anos, entrou em um restaurante para conversar sobre sua vida no Brasil. Vestindo um khaftane, traje tradicional de seu país, acabou despertando a curiosidade de várias pessoas que estavam no local. Após pedir um suco de laranja, começou a falar de sua trajetória. Ele explica que deixou o Senegal há cerca de quatro anos e está estabelecido em Porto Alegre, longe de sua família. Assim como muitos de seus compatriotas, trabalha na venda de produtos no Centro Histórico, onde também reside de aluguel. “Sou camelô”, resume. Revela que está, inclusive, fazendo um curso on-line para aprimorar o português, que já domina.

Seck percebe que a situação financeira piorou. “Neste momento está meio fraco, já tive momentos melhores antes da pandemia”, diz. Além da crise gerada pela disseminação do coronavírus, outro fator que pesa bastante é o aumento do dólar. “Dificulta muito para trabalhar e para mandar dinheiro para lá. Dois anos atrás se mandava um determinado valor, agora tem que mandar o dobro para se chegar ao mesmo valor”, compara. Por conta desses problemas, admite que às vezes pensa em retornar. Porém, no momento, prefere aguardar para ver se as coisas melhoram no Brasil. “E se eu voltar para lá e não tiver serviço? Aqui, pelo menos, consigo tirar alguma coisa, entende?” Mesmo assim, a ideia de retornar não é descartada. Até porque alguns amigos decidiram deixar ao Brasil, justamente por causa da pandemia e do dólar elevado. Alguns entraram clandestinamente nos Estados Unidos para tentar a sorte, mesmo sob o risco constante de serem deportados. Mas, especialmente neste caso, Seck acha preferível ficar no Brasil. Se um dia for embora, pretende voltar para o seu país de origem. De qualquer maneira, por hora também prefere continuar morando de aluguel e não investir em um imóvel próprio. “A cabeça não fica só em um lugar, entendeu? Às vezes está pensando em voltar, às vezes está pensando em ficar.”

Sobre conviver com os brasileiros, diz que “tem momentos bons e momentos ruins”. Nos momentos ruins já ouviu de brasileiros que trabalham na mesma área comentários como “esse é meu espaço, você não é daqui, não é brasileiro”. “São coisas que machucam”, confessa. “Se você vai para a Espanha ou para Portugal, tem muitos brasileiros por lá e acho que não são tratados desse jeito”, opina, salientando que só ouviu isso de algumas pessoas. E aproveita para falar do que acha bom no Brasil. “Aqui tem pessoas que te recebem de braços abertos, que você considera como irmão de sangue mesmo”, comenta abrindo um sorriso. “Essas pessoas tenho que levar no meu coração, pois são como uma família.”

A situação de cada um

Um fator de equivalência entre haitianos, venezuelanos e senegaleses é a regularização migratória. Sem este documento, a situação deles fica inviável. Uma solicitação para o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que delibera sobre as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado no Brasil, leva até três anos para ser obtida, pois cada caso é avaliado individualmente e o órgão fica em Brasília. “Enquanto isso, eles ficam com um documento provisório que não é aceito em vários lugares por desconhecimento, porque, pela lei de 2017 (Lei de Migração), ele seria aceito”, observa Karina Valenti, integrante do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados (Gaire). “Aí não conseguem abrir conta em banco, não conseguem financiar imóvel e ficam até sem trabalho, pois alguns lugares não aceitam o documento, o que é ilegal”, salienta.

As consequências são dramáticas, especialmente para os venezuelanos. “A gente vê muitos migrantes em situação de rua, especialmente venezuelanos”, descreve. “Os haitianos muitas vezes ficam em comunidades, ficam mais afastados, os senegaleses também, muitas vezes em torno de instituições religiosas.” A questão do trabalho, um dos pilares para o movimento migratório, esbarra na estrutura precária de atendimento. Muitos migrantes acabam indo para cidades onde, embora encontrem trabalho, não recebem suporte de instituições que poderiam informá-los melhor sobre seus direitos.

O Rio Grande do Sul, por pertencer a uma das regiões mais desenvolvidas do Brasil, está entre os destinos mais procurados por migrantes. Foto: Mauro Schaefer

CIBAI

O Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações) é um dos órgãos voltados ao atendimento dos migrantes que chegam ao Rio Grande do Sul. O padre Ademar Varilli, responsável pela área de Relações Públicas do Cibai, explica que o centro mudou sua política para atender a nova leva de migrantes no Estado. “A gente começou a dar uma atenção integral ao migrante, a ideia é tentar cobrir as necessidades dos migrantes conforme a diversidade, os trabalhos que fazem, os países de onde vieram”, descreve. Agora o atendimento de um recém-chegado tem três fases. A primeira delas, de caráter emergencial, é para suprir alimentação e as primeiras necessidades básicas. Em um segundo momento, os migrantes passam a frequentar aulas de português. A fase final é o projeto de integração sociolaboral. O projeto conta com ajuda do Banco de Desenvolvimento Mundial da Usaid, do EUA. “A ideia é empregar mil migrantes esse ano”, diz. Há também curso de empreendedorismo e busca de parceria com empresas no Estado. “O Sul é um dos lugares mais procurados, por causa do desenvolvimento. Frigoríficos e empresas grandes voltaram a investir muito em contratação de mão de obra, mesmo com a pandemia.” Segundo Varilli, há mais oferta de emprego do que se imagina, mas a situação é mais complexa. Eles estão vulneráveis ao impacto das mudanças de ambiente. Encontram um clima mais frio, muitos não estão habituados a trabalhar em espaços fechados. É o caso dos indígenas Warao, que vieram da Venezuela.

“O indígena tem outra cultura, não foi feito para estar fechado em um trabalho. Eles moram juntos, onde vai um, vão todos.” Segundo Varilli, o Cibai estuda desenvolver projetos agrícolas em terras ociosas no Estado justamente para atender grupos com essas características. No caso de senegaleses, acrescenta, se poderia procurar uma área onde eles pudessem instalar um mercado para a venda de seus produtos. Faz falta, segundo ele, um número maior de instituições capazes de dar ao migrante acompanhamento que vá além do assistencialismo. A ideia é que o migrante seja preparado para ser o protagonista da própria vida.

O Cibai Migrações é um dos órgãos voltados ao atendimento dos migrantes que chegam ao Rio Grande do Sul. Foto: Mauro Schaefer

Ações do comitê

Da parte do Estado, existe o Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas do Estado do Rio Grande do Sul (Comirat/RS), que foi instituído em 2012. Participam do Comirat/RS representantes de órgãos governamentais e da sociedade civil. As reuniões são mensais, sob presidência da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. Entre as atribuições, estão o monitoramento de ações institucionais, propor ações para solucionar questões relativas a documentos para os migrantes e propor ações de atendimentos a essa população. Além disso, o comitê objetiva elaborar, implementar e monitorar o Plano Estadual de Políticas de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas de Tráfico de Pessoas no Estado do Rio Grande do Sul.

Daniela Rezner, diretora do Departamento de Justiça da Secretaria de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, explica que a acolhida dos migrantes e os processos de interiorização, mesmo no Rio Grande do Sul, são feitos pelo governo federal. “Mas estamos fazendo um planejamento, que é um projeto incipiente, de monitoramento dessa interiorização, para que a gente consiga acompanhar, saber quantas famílias, quantas pessoas estão chegando, para onde estão indo.” A ideia é promover ações que encaminhem essa população para o mercado de trabalho. Nesse sentido, há um projeto hoje voltado para os venezuelanos. Não há previsão de quando será implementado, mas a diretora acredita que seja neste ano ou no primeiro trimestre de 2022.

Em um contexto mais amplo, visando outras nacionalidades, são propostas outras ações. “A partir da coordenação do comitê nós pensamos em algumas ações junto com órgãos, para levar a esses migrantes acesso a trabalho, educação e saúde”, explica Rezner. Ela cita ainda o lançamento de um curso no início deste ano para servidores da área de saúde. A ideia é que eles possam compreender melhor as necessidades e o contexto dos migrantes que serão atendidos na rede estadual.

Prefeitura de Porto Alegre

No caso de Porto Alegre, há o Comitê Municipal de Migração, coordenado por Mario Fuentes Barba. Ele explica que a prefeitura realiza ações para o migrante, que tem direito a serviços básicos, como saúde, educação e assistência social. “Todos estão recebendo as vacinas contra a Covid-19”, exemplifica. Para quem busca emprego, lembra, o Sine municipal oferece toda a quinta-feira, das 14h às 17h, atendimento especializado a migrantes. Fuentes acrescenta que há quase 600 crianças de outros países, na maioria haitianas, frequentando a rede municipal.

O Comitê está em tratativas para um acordo de cooperação com uma empresa que faz versão e tradução de documentos. A ideia é amenizar o custo para regularização migratória, revalidação de diplomas e revalidação de carteira de motoristas. Apesar disso, Fuentes reconhece que é difícil atender à atual demanda sem a parceria da sociedade civil, do governo federal e das organizações internacionais. “É um propósito trabalhar de forma articulada e unindo esforços com a rede, tanto local, quanto intersetorial, intergovernamental e interinstitucional. Senão não conseguiremos mitigar e muito menos atender a demanda crescente e o fluxo de migração.”

Confrontos ficaram para trás

Houve um tempo em que, além das dificuldades de adaptação a um país novo, os imigrantes chegaram a sofrer com discriminação e xenofobia em Porto Alegre. A ponto de denunciarem, em 2018, abusos e agressões feitas por forças da segurança pública em abordagens ao comércio ambulante, que serve de ganha-pão a algumas pessoas. “Eu quero vender, esse é o meu sustento” e “somos trabalhadores, polícia só para ladrão” eram frases de protesto em frente ao Paço Municipal naquele ano. No entanto, segundo o camelô senegalês El Hadji Seck, o cenário não é mais o mesmo e as abordagens policiais ou da Guarda Municipal não passam dos limites. “É normal, comigo e com os meus amigos. Do mesmo jeito com os brasileiros”, relata.

O haitiano presidente da Ainteso, James Derson, vai na mesma direção de El Hadji. Para ele, as forças de segurança em Porto Alegre não extrapolam o seu poder como já ocorreu anteriormente. “A Polícia está no seu papel e tem o direito de fazer a abordagem”, diz, acrescentando que o Brasil é um dos países mais rápidos e viáveis no processo de regularização de documentação de imigrantes.

O presidente da Cohmisul, Henry Pérez López, acredita que seus compatriotas não costumam ser interpelados pela Polícia pelo fato de não trabalharem na rua, como ambulantes, ao contrário de imigrantes de outros países. “Não acontece com venezuelanos. Um haitiano me relatou que sentiu muita discriminação e exploração já no país deles, por isso prefere trabalhar na rua”, conta López. Ele garante que boa parte dos venezuelanos que vieram para o Estado tem qualificação profissional. “São contadores, professores e até enfermeiros”, relata o líder da organização que congrega migrantes da Venezuela, Peru, Cuba, Equador e Bolívia.

O impacto financeiro e social potencializado pela pandemia foi um fator preponderante para o momento menos conflituoso entre forças de segurança em Porto Alegre e imigrantes. Segundo o comandante da Guarda Municipal, Marcelo Nascimento, a relação, no momento, é de entendimento entre as duas partes. “Tivemos muitas perdas para a Covid-19, mas também graves consequências na área econômica. Dentro deste contexto, o Executivo atual procurou alternativas a quem continua trabalhando na informalidade. Ainda assim, a fiscalização prossegue, com um olhar mais social, de compreensão sobre esta atividade, o que não significa permissividade”, explicou. Nascimento esclarece que quaisquer erros que possam ocorrer por parte da postura da Guarda são apurados e eventualmente punidos. “O objetivo é sempre fazer se cumprir a lei. Mas, com relação aos imigrantes ambulantes, procuramos a resolução consensual, deixando as medidas mais incisivas como último recurso”, afirma, garantindo que a fiscalização é direcionada à atividade e não ao fato de os vendedores serem imigrantes ou não.

À frente do Comando de Policiamento da Capital (CPC) da Brigada Militar, o coronel Fernando Gralha Nunes vai na mesma direção. “Devido à pandemia, priorizamos outras ações que não a repressão ao comércio ilegal, praticada por alguns imigrantes, especialmente os senegaleses. Mas os confrontos deixaram de acontecer por conta da delicadeza do momento”, relata. Coronel Nunes ressalta que foi estabelecida uma relação de acordo entre BM e os ambulantes. “Eles cederam em alguns aspectos de ocupação de certos espaços no Centro de Porto Alegre”, diz o comandante, que não descarta retomar as abordagens assim que a pandemia passar. “A ordem e a regularização urbana são questões essenciais para a segurança pública”, ressalta Nunes.

O “censo” dos migrantes

Segundo o relatório mais recente do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), de 2020, dos três estados, o Rio Grande do Sul é o terceiro a abrigar mais imigrantes (45.967), tendo o Paraná (48.826) e Santa Catarina (47.413) à frente. Predominam os estrangeiros da América do Sul e Caribe, com destaque para venezuelanos e a haitianos.

Os solicitantes de refúgio e refugiados são caracterizados, na sua maioria, por serem do sexo masculino, em idade ativa e com nível de escolaridade de Ensino Médio e Superior. De 2011 a 2019, foram registrados no Brasil 1.085.673 imigrantes, dos quais 399.372 foram mulheres. A região Sul é a segunda no país a receber mais imigrantes, 142.2016 (22% do total), só atrás da região Sudeste (276.761).

A pesquisa atestou que o total de imigrantes empregados com carteira de trabalho assinada passou de 55,1 mil, em 2010, para 116,4 mil, em 2014, e depois para 147,7 mil, em 2019. Entre 2018 e 2019 o número de imigrantes no mercado formal de trabalho brasileiro cresceu cerca de 8,3%. O OBMigra destaca a imigração haitiana como a principal responsável por este crescimento. A partir de 2016 os imigrantes venezuelanos também contribuíram para o aumento do volume de trabalhadores no mercado formal.

Em se tratando dos informais, estão divididos trabalhadores em serviços e comércio, indústria, profissionais das ciências e intelectuais. A composição etária dos imigrantes no mercado de trabalho informal é de 20 a 29 anos. Mais de 50% dos trabalhadores imigrantes no setor informal possuíam nível de instrução médio completo ou superior. O estudo sugere que boa parte dessa força de trabalho encontra-se em ocupações que exigem menor qualificação do que elas possuem.

Correio do Povo
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