Tráfico em guerra, população amedrontada

Tráfico em guerra, população amedrontada

Forças de segurança atuam para tentar conter mortes após conflito iniciado entre duas facções. Os grupos ora entram em embates violentos, que deixam mortos e aterrorizam moradores, ora convivem em uma paz ilusória

Por
Paulo Tavares

Tarde de terça-feira, 29 de março, duas equipes da Força Tática do 1 BPM fazem mais uma patrulha pelos locais conflagrados na Vila Cruzeiro, na zona Sul de Porto Alegre. Desta vez, o patrulhamento não é como normalmente os PMs estão habituados, intervindo em tiroteios e, às vezes, participando deles, mas agindo como uma força de paz. Tentando coibir atentados e assassinatos. O conflito entre duas facções, iniciado no dia 15 de março, fez as forças de segurança planejarem medidas para conter mortes. Os policiais militares seguem a geografia imposta por essas facções, que dividem o território, ora entrando em conflitos violentos, que deixam mortos e aterrorizam os moradores das ruelas e avenidas que ficam perto do “espaço” de uma das quadrilhas, ora convivendo em uma paz ilusória.

Duas facções dividem os pontos de drogas e os lucros da venda de entorpecentes em seus “territórios”, distantes cerca de dois quilômetros um do outro. Na terça-feira, os policiais militares foram aos dois locais para inspecionar. O 1 BPM atende aos bairros Tristeza, Vila Nova, Glória, Cascata Belém Velho, Nonoai, Teresópolis, Aberta dos Morros, Camaquã, Cavalhada, Espírito Santo, Guarujá, Ipanema, Jardim Isabel, Pedra Redonda, Serraria, Vila Assunção e Vila Cruzeiro.

Jane (o nome é fictício), uma jovem de 27 anos, considerou ótima a presença dos policiais militares na área. Ela afirmou que o medo dos tiroteios, que podem atingir seus parentes e colegas de trabalho, é constante. Jane recordou de um dos conflitos. “Eram 9h, lembro bem porque o caminhão de lixo estava na frente do local onde trabalho, quando ocorreu o tiroteio”, disse. “Foi assustador, um carro passou em alta velocidade e sei que esse conflito fez com que duas creches, situadas na rua ao lado, fechassem, pois os tiros acertaram as fachadas das duas escolinhas”, contou.

Jane disse temer que os confrontos acabem atingindo o estabelecimento comercial em que trabalha. Plano de fuga? Ela ressalta não ter nenhum. “Se ocorrer alguma coisa deste tipo (invasão do estabelecimento), a minha única saída é ir para uma outra peça do estabelecimento e me trancar lá”, afirmou a jovem.

Um pouco mais adiante do estabelecimento onde Jane trabalha, uma comerciária de 37 anos comparou o conflito à guerra na Ucrânia. “Eles (supostos invasores) pensaram que seria algo fácil. Chegar e dominar, mas não foi. Parecida com a história dos russos”, comparou.

Em outro ponto, a dois quilômetros de onde Jane trabalha, os integrantes da Força Tática revistaram algumas pessoas, que foram liberadas pouco depois. Na esquina das ruas Caixa Econômica com Madre Brígida Pastoriza, um imóvel vazio e em péssimo estado de conservação é usado como “cracolândia”. Na cerca em cima de um muro, com uma parte desmoronada, estão vários tênis, deixados pelos usuários da droga. Dentro da casa, cães entram e saem livremente.

Na incursão dos brigadianos, uma senhora de 67 anos saudou a presença dos PMs, afirmando que era ótimo eles estarem no local”. “É bom ver vocês aqui”, afirmou. As duas equipes do 1 BPM vistoriaram mais locais dentro da Vila Cruzeiro, verificando como estava a situação. “A disputa entre eles as facções), em parte, é por vingança. Uma das gangues vem ao local onde a outra atua e desfere tiros. O grupo rival vai até o lugar da oponente e também efetua disparos”, comentou o soldado Vagner Machado, que comandou uma das equipes da Força Tática.

Operação

Devido à violência que eclodiu na segunda quinzena de março, com atentados a tiros e mortes, a Brigada Militar, a Polícia Civil e a Susepe começaram a monitorar a situação na Vila Cruzeiro e outros bairros da zona Sul de Porto Alegre onde ocorreram atentados a tiros e mortes. A BM, inclusive, dentro de um programa elaborado pela corporação e que tem pareceria com as outras instituições de segurança pública, tem realizado patrulhamento não somente de dia, mas na madrugada, para coibir a onda de violência. Mesmo assim, alguns homicídios foram registrados durante as operações, tanto de dia como à noite.

Em 25 de março, a Susepe removeu dois apenados, considerados lideranças nas duas facções e apontados como os mandantes dos últimos assassinatos, do Presídio Central para outros presídios. O destino não foi divulgado por questão de segurança. O diretor do Departamento de Segurança e Execução Penal da Susepe, Vagner Cogo, considerou que a transferência dos dois detentos e a união de forças foi importante para coibir ações de organizações criminosas que estão no sistema prisional.

A Polícia Civil afirma que permanece monitorando a situação e não descarta a adoção de novas medidas, caso ocorram novos conflitos. No dia 26 de março, o diretor da Divisão de Homicídios do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Eibert Moreira Neto, comentou que a disputa entre as duas facções tinha, aparentemente, “arrefecido”.

Atenuação da pandemia não tem relação com mais violência

O diretor da Divisão de Homicídios do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Eibert Moreira Neto, considera que o fato de a pandemia ter amenizado não teve influência alguma no recrudescimento da violência entre duas facções na zona Sul de Porto Alegre. O delegado ressalta que, durante a fase mais aguda da Covid-19, a violência em outros estados até aumentou. “Não vejo relação entre os dois fatos”, disse o delegado.

De acordo com Moreira Neto, o conflito entre as duas facções é histórico e, nos últimos tempos, estava mais adormecido, mais calmo, no entanto, não deixou de existir. Os dois grupos criminosos têm os seus pontos de venda na Vila Cruzeiro, a uma curta distância um do outro. “Mas, mesmo com esta proximidade, havia um respeito recíproco. Sem agressões de ambas a partes”, comentou o diretor da DHPP.

O estopim desta onda de violência perpetrada pelas duas organizações criminosas seria, de acordo o delegado, uma dívida de compra de entorpecentes, que a facção originária da Vila Cruzeiro teria comprado e não teria efetuado o pagamento à outra facção, que tem sua base no Vale do Sinos. “Não significa que a facção que vendeu tenha tentado invadir o território da outra. Pelo contrário, o grupo da Vila Cruzeiro é que começou este conflito”, afirmou o diretor do DHPP. “Não concordo com a comparação de que a facção do Vale do Sinos agiu como a Rússia na guerra da Ucrânia e foi surpreendida. Até porque essa facção do Vale do Sinos foi a agredida e não a agressora.”

Os ataques e homicídios tiveram início no dia 15 de março, quando um homem foi assassinado a tiros na Vila do Funil, na rua Marechal Hermes, no bairro Tristeza, zona Sul da Capital. O crime ocorreu por volta das 19h e os agressores fugiram logo após o ocorrido. A motivação está sendo investigada. De acordo com o delegado, este crime teria desencadeado uma onda de vingança, com represálias de ambos os lados, um atacando o ponto de venda de drogas do outro. “Não é um conflito para dominar o território do oponente”, disse Moreira Neto. “Nitidamente é uma forma de revanche, de represália”, analisou o diretor da Divisão de Homicídios de Proteção á Pessoa.

Toque de recolher

O delegado de homicídios revelou que os áudios impondo toque de recolher nas comunidades muitas vezes são lançados pelas próprias facções. Sempre que eclode um conflito, explica o diretor do DHPP, uma das facções lança um áudio para chamar a atenção da Polícia. “Eles querem a Polícia em seus territórios por algum motivo”, comentou Moreira Neto.

O diretor da divisão do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa ressaltou que as duas facções estão sendo monitoradas. Segundo ele, a situação na região do conflito, aparentemente, está mais calma, mas dois assassinatos ocorridos no último dia 26 estão sendo investigados. “Tivemos dois homicídios que, em princípio, não teriam relação com esta disputa entre facções”, comentou o delegado. “As equipes da delegacia estão investigando estes crimes e acredito que em breve teremos um retorno sobre a autoria desses assassinatos e ver o que os motivaram”, disse.

Os dois grupos, ressaltou Moreira Neto, estão sendo monitorados e já existem ações em planejamento. “Caso haja qualquer sinalização de que a disputa não vai parar, nós vamos promover outras medidas que estão em planejamento e, no momento oportuno, serão executadas”, afirmou o delegado Eibert Moreira Neto. “Nós vamos trabalhar com medidas bem firmes também dentro do sistema penitenciário, com aval das secretarias envolvidas”, acrescentou o delegado em uma entrevista ao Correio do Povo no último dia 28.

O comandante do 1 BPM, tenente-coronel Eduardo Michel, também não acredita que o fato de a pandemia do coronavírus ter amenizado tenha levado à eclosão do conflito entre duas facções, na zona Sul de Porto Alegre, que se iniciou em meados de março. Segundo o tenente-coronel, crimes violentos ocorreram e em grande escala no período pré-pandemia e em toda a cidade. “Não vejo relação entre a situação da pandemia estar amenizando e a eclosão da violência”, afirmou Michel.

Quanto ao patrulhamento da Brigada Militar estar sendo feito na madrugada, isso também não levou os criminosos a matarem os seus rivais no período da manhã. Segundo Michel, assassinatos também foram cometidos no período noturno e na madrugada, sendo que à luz do dia foram dois homicídios.

O comandante do 1 BPM acredita que, para entender a motivação deste conflito especificamente, tem que se levar em conta o momento e o perfil da facção. Para o tenente-coronel, os confrontos podem estar ligados, em um determinado momento, à vingança, que seria praticada devido ao ataque sofrido pelo grupo e que matou algum integrante e, por isso, ocorreu um contra-ataque. “Pode ser também algo do ponto de vista comercial, visando o ponto de venda de drogas e o dinheiro que advém dele”.

Disputa entre facções ocorre há anos

A disputa entre facções rivais não é novidade em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Entre 2016 e 2018, grupos criminosos costumavam atacar os rivais e, além de matá-los, os esquartejavam. Os corpos eram deixados pelos criminosos em lugares públicos e não raro tinham a sigla da facção, em uma demonstração de poder perante os oponentes. Em 26 de setembro de 2016, o corpo de um homem foi encontrado na rua Gioconda, quase esquina com a avenida Circular, no bairro Vila Jardim, na Capital. Todas as partes do corpo estavam em sacos de ráfia e de pedaços plásticos. Em alguns locais do tecido que envolvia o corpo foi deixada a inscrição “Os Bala na Cara mandam abraços aos Anti-Bala”, este último grupo é ligado a facção V7. O recado foi escrito à tinta.

Em 28 de dezembro de 2016, um homem teve o corpo esquartejado e os pedaços foram abandonados no bairro Passo das Pedras, zona Norte da Capital. O corpo foi localizado perto da Avenida 10 de Maio, onde teria ocorrido um tiroteio minutos antes. Partes do corpo foram deixadas no local em um carrinho de mão e ao lado estava um Gol incendiado. A região seria dominada pelo tráfico de drogas e o crime pode ter sido cometido por vingança de facções rivais. A Polícia explicou que a região era dominada pelos Bala na Cara e, provavelmente, a facção Anti-Bala deve ter matado um integrante do grupo rival e deixado o corpo naquele local como uma afronta.

Em 10 de janeiro de 2018, um SpaceFox, com placas de Gravataí, foi encontrado em chamas por volta das 5h na rua Podalírio João da Rocha, bairro Jardim Carvalho, zona Leste da Capital. Dentro do carro, que ficou totalmente destruído, havia um corpo esquartejado que também ficou carbonizado. Segundo a Polícia Civil, o crime teria relação com os conflitos que estavam ocorrendo entre facções que atuavam em Gravataí, na Região Metropolitana.

Conflitos entre facções já deixaram ao menos 12 mortos em Porto Alegre

A recente onda de conflito entre facções, com atentados a tiros e assassinatos em diversos pontos de Porto Alegre, já deixou ao menos 12 pessoas mortas, conforme informou a Polícia Civil. O primeiro assassinato dentro da “guerra” entre as gangues ocorreu em 15 de março, no bairro Tristeza, quando um homem foi morto a tiros na Vila do Funil, e a morte mais recente, no dia 23 de março, no bairro Medianeira. Desde o início de março, teriam ocorrido ao menos 36 mortes violentas em Porto Alegre, não necessariamente resultado do confronto entre as facções.

No dia 15 de março, houve mais uma morte dentro do conflito entre quadrilhas. Um homem foi assassinado a tiros no Morro Santa Tereza e seis pessoas ficaram feridas. Eles estavam na frente de um bar na rua Edison Pires. Além dessas duas execuções, também ocorreram homicídios nos dias 16, 17, 18, 19, 20 e 23, sem contar os atentados que não causaram mortes. Os confrontos, no entanto, tiveram o seu embate mais forte no dia 21 de março, quando dois tiroteios, ocorridos no início da manhã, um deles entre integrantes de uma facção e policiais militares, resultaram em três presos, quatro feridos e dois mortos, na Vila Cruzeiro, em uma área dominada pela facção oriunda do Vale do Sinos.

Após a troca de tiros, os policiais militares apreenderam seis armas, sendo quatro pistolas, uma espingarda e um revólver, além de munição, celulares e quatro automóveis. O motivo da troca de tiros, segundo as autoridades, seria revanche. De acordo com a BM, integrantes de uma facção foram atacar os rivais. Eles entraram na área do oponente no final da madrugada para pegar os rivais de surpresa. Em seguida, ocorreu o ataque.

Após o confronto entre os criminosos, os policiais militares foram acionados. Quando chegaram, ocorreu uma nova troca de tiros, desta vez entre o grupo originário da região e os PMs. Nenhum brigadiano ficou ferido. Os dois confrontos fizeram com que a Unidade de Saúde Moab Caldas, na avenida de mesmo nome, permanecesse fechada todo o dia, sendo reaberta normalmente no dia seguinte. A Guarda Municipal esteve no Posto de Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul, que continuou funcionando após os dois tiroteios.

No dia 23, uma execução em plena luz do dia surpreendeu a todos, população e autoridades. O crime ocorreu no final da manhã na rua Coronel Neves, no bairro Medianeira. Um homem, trajando bermuda, tênis e moletom com capuz, foi alvo de ao menos cinco tiros desferidos por um dos ocupantes de um Chevrolet Agile. A Polícia Civil e a Brigada Militar prenderam dois homens próximo de onde ocorreu o crime, que, segundo os policiais, estaria relacionado ao conflito entre as duas facções.

Houve a apreensão de dois revólveres e uma pistola, além de dois celulares e o Agile, que seria o veículo usado no atentado. No dia, o comando do 1 BPM se manifestou por nota: “A Brigada Militar informa que continua incessantemente desenvolvendo ações para coibir crimes e proporcionar segurança para a comunidade”.

Segundo o diretor da Divisão de Homicídios, delegado Eibert Moreira Neto, os suspeitos detidos são de uma facção da Vila Cruzeiro. O rapaz, segundo ele, atuava no grupo rival, estabelecido em um condomínio popular na avenida Princesa Isabel, no bairro Santana. O homem foi sequestrado por seus algozes e estava sendo levado para a vila quando aproveitou um descuido dos seus rivais e saiu do carro, escapando correndo a pé. Mas não foi muito longe. Foi alcançado e um dos executores desceu do Agile e desferiu os tiros.

Fake news

O que também tem sido vítima neste conflito entre as facções é a verdade. Muitos áudios e vídeos têm sido postados nas redes sociais informando que tal “área vai ser invadida” ou que a facção de um certo local está a ponto de atacar uma determinada área. Um dos posts fez com que motoristas de aplicativos começassem a recusar corridas para a Vila Cruzeiro e regiões próximas, temendo serem envolvidos no conflito. Em um post de 2 minutos e 50 segundos, uma mulher afirma que uma determinada facção está “montando uma força-tarefa” para atacar o território da gangue rival.

A mulher afirma conhecer internos da Fase e que estes “lhe revelaram” o que estaria sendo planejado. Ela aconselha a todos os moradores da área a “ficarem em casa após o anoitecer”. “Também estão sendo feitas negociações para permitir que certos eventos possam ser feitos.”

A situação ficou tão grave que a Brigada Militar veio à público para desmentir os áudios e vídeos e tranquilizar a população. A Brigada Militar publicou posts nas redes sociais afirmando que todas as unidades da corporação estão a postos e patrulhando as ruas de Porto Alegre.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895