Três anos de prejuízo na agropecuária

Três anos de prejuízo na agropecuária

Intensidade foi diferente a cada ano, mas estiagem se repete mais uma vez e já causa perdas estimadas em R$ 20 bilhões na safra atual, preocupando produtores de todas as regiões na hora de fechar suas contas

Por
Nereida Vergara

“O sol está moendo tudo.” A frase do produtor de grãos Alcione Giovani Mingotti, de Erechim, resume a percepção que tomou conta da agropecuária gaúcha com o agravamento da estiagem neste início de 2022. O fenômeno, que  se repete pelo terceiro verão consecutivo, causou prejuízos generalizados aos agropecuaristas gaúchos no ciclo 2019/2020, limitados ao milho na safra 2020/2021, e novamente generalizados na lavoura atual (2021/2022). Mingotti calcula que vai perder entre R$ 200 mil e R$ 300 mil da renda anual que esperava obter com o cultivo de 20 hectares de milho e 40  de soja.

No milho, em vez dos 160 sacos por hectare que havia estimado, o agricultor vai colher apenas 20. Mesmo que sobre alguma quantidade de grão, esta será destinada à complementação da alimentação das 50 cabeças de gado de corte (misto de Hereford e Charolês) que servem de renda alternativa para a família. “Não teremos o que vender, vamos guardar um pouco de grão para os animais e passar a máquina para fazer palha para silagem também”, comenta.

Na soja, o agricultor acredita que a perda pode chegar até a 50% dos 60 sacos por hectare, em média, que esperava produzir. Ele explica que as plantas germinaram, mas chegaram a um determinado estágio de desenvolvimento em que pararam de crescer e não floresceram. A maior preocupação de Mingotti é saldar os financiamentos que fez para a substituição de uma plantadeira e um trator, com parcelas que vencem em março e agosto. Para ele, o governo devia socorrer os agricultores com algum tipo de recurso a fundo perdido, para que tivessem capital de giro. “Adiar as parcelas da dívida não resolve muito, porque a dívida fica lá de qualquer forma”, pondera.

O produtor diz também se preocupar com o futuro dos dois filhos jovens que, ao verem a dificuldade da lida agrícola, podem desistir de ficar no campo. “A gente fica até sem ter o que dizer pra eles”, admite Mingotti.
Somadas as perdas de todos os produtores de milho e soja, os efeitos da estiagem sobre a safra de grãos 2021/2022 devem se refletir num prejuízo de pelo menos R$ 20 bilhões no Estado, conforme estimou a Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (FecoAgro/RS).

Na segunda semana de janeiro, a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, visitou o município de Santo Ângelo para ver a situação de perto e prometeu examinar as reivindicações de produtores, entidades e governo do Rio Grande do Sul, entre as quais a prorrogação das dívidas de custeio e financiamento. O socorro, entretanto, depende de Resoluções do Banco Central e dotações a serem disponibilizadas pelo Ministério da Economia.

Uma das regiões mais afetadas pelo estresse hídrico é a de Santa Rosa. Dos cerca de 800 mil hectares plantados com milho no Rio Grande do Sul, 125 mil estão na área abrangida pela Regional da Emater/RS-Ascar de Santa Rosa, assim como 737 mil hectares de soja. As perdas são de mais de 40% na produtividade do milho, estimada em 8,3 toneladas por hectare, e de 25% na soja, sobre uma produtividade projetada de 3,3 toneladas por hectare. “Mas é um número que muda todos os dias e dia após dia a falta de chuva agrava mais a situação”, relata o gerente da regional, José Vanderlei Waschburger. No ano passado, relembra, as perdas ocorridas nas duas culturas se concentraram em alguns municípios, mas neste ano atingem os 45 atendidos pelo escritório.

Waschburger também recorda que em secas intensas de anos anteriores, como as de 2005 e 2012, o estresse hídrico só foi sentido em meados de fevereiro. Na safra atual, no entanto, pegou as lavouras em seus estágios iniciais, ainda em novembro. “Em alguns casos ainda vai dar para reverter a situação de plantios de soja, mas não daquelas lavouras que já estão em floração. A produção da planta não tem como sair normal”, pontua.

Na região de Santa Rosa também está localizada uma das maiores bacias leiteiras do Estado, aponta o gerente da Emater. Os municípios com produção de leite indicam queda na captação, que, na região, em tempos normais, chega a 1,8 milhões de litros por dia. Waschburger observa que no leite a perda é mais difícil de quantificar, pois tem a ver com disponibilidade de alimentação e de temperatura. “Varia muito de uma propriedade para a outra, mas sabemos que os produtores de leite estão com dificuldades”, comenta. Somente neste escritório regional, a Emater já recebeu mais de 700 comunicações de prejuízo no milho para acionamento do Proagro.

Do ponto de vista climático, as perspectivas não são as melhores para os próximos dois meses, mas é preciso desfazer alguns mitos. A agrometeorologista da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Loana Cardoso, explica que para avaliar os efeitos da estiagem na produção agropecuária do Rio Grande do Sul é necessário ir além das condições climáticas. O fenômeno La Niña, que aparece como vilão na seca, não é o único responsável pelos problemas que agricultores e pecuaristas do Estado enfrentam neste início de 2022, diz ela. Características intrínsecas do verão gaúcho, como a distribuição irregular das chuvas e a ocorrência de pancadas rápidas também contribuem para os quadros de perdas nas culturas. Essa peculiaridade, afirma, tem comprovação em mais de 30 anos de observação de dados meteorológicos.

O potencial para estiagens cíclicas apontado por Loana reforça uma reivindicação permanente que vem sendo feita pelo agronegócio gaúcho: a mudança nas legislações que licenciam o uso da água, abrindo a possibilidade de reservação em Áreas de Preservação Permanente (APPs) e o caminho para a ampliação da irrigação da área plantada com grãos no Estado.

Pequenos padecem com novo revés na plantação

Diante da perspectiva de ter poucos grãos para vender depois da colheita da soja e do milho, agricultores temem enfrentar dificuldades para pagar custos básicos como energia elétrica e financiamentos que fizeram para cultivar a terra neste verão

Sem água suficiente para seu desenvolvimento, espigas de milho deixaram de crescer nas lavouras gaúchas. Foto: Rui Valença / Divulgação / CP

Acostumado a lidar com as dificuldades enquanto dirigente sindical, Rui Valença, coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar para a Região Sul (Fetraf/Sul), vê a estiagem com muita preocupação. Ele divide com o irmão, Glemir, uma área de plantio em Erebango, no Norte do Estado. São 14 hectares para o milho e 12 hectares para a soja. Do milho, acredita que já estão perdidos cerca de 150 sacos por hectare, de uma previsão inicial de 180 sacos. Na soja, a quebra se aproxima de 50% dos 70 sacos pretendidos.

De acordo com o dirigente sindical e produtor, a lavoura de milho foi feita dentro dos critérios agronômicos corretos, com aplicação de 450 quilos de adubo por hectare, 350 quilos de ureia por hectare e 2 mil quilos de cama aviária por hectare. “É uma lavoura limpa, sem invasoras, mas faltou chuva e não entendo como o Ministério da Agricultura e a Conab vinham insistindo em (prever) uma supersafra de milho quando estamos vivendo a pior seca dos últimos 50 anos”, reclama. Valença defende que o governador Eduardo Leite emita um decreto de emergência estadual para acelerar a ajuda aos agricultores e principalmente que o ministério anuncie o parcelamento das dívidas e ofereça uma linha de crédito de pelo menos R$ 20 mil para socorrer o agricultor familiar.

O socorro será bem-vindo para os produtores, como  Celoni Chappuis, proprietária de 17 hectares de terra em Linha Água Verde, interior de Marcelino Ramos, região Norte do Estado. Na propriedade, que comanda sozinha, ela plantou oito hectares com soja, com a expectativa de colher até 70 sacos por hectare. “Mas se não chover, acho que vamos perder tudo”, admite a agricultora, também dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais local.

A lavoura de soja de Celoni foi plantada em meados de novembro de 2021, chegando a receber chuva suficiente para germinar e crescer até a altura de dois palmos. “O problema é que com as altas temperaturas aqui na região (por volta dos 40° C), as plantas agora pararam de se desenvolver”, constata, preocupada. De acordo com a agricultora, a renda que esperava da soja seria aplicada para saldar custos da propriedade com energia elétrica, combustível, pagamento de insumos e financiamentos. “Vai ser uma dificuldade se a gente não conseguir colher nada”, diz ela, que também teve prejudicados os cultivos de milho silagem, batata, mandioca, frutas e hortaliças, os quais compõem a alimentação de subsistência da família. “Isso também é perda de renda”, acentua.

“São três anos seguidos de perda. Estamos descapitalizados, e não falo apenas por mim, mas por muitos agricultores familiares. O governo tem de nos ajudar”, destaca Celoni. No ano passado, a produtora lembra que precisou derrubar todo o plantio de milho e plantar soja em janeiro com os recursos do Proagro. Ao final, colheu 50 sacas por hectare, o que garantiu o pagamento das contas. “A soja e o milho são a renda mais importante, perdendo isso a situação fica muito complicada”, complementa.

Agrometeorologia

Embora volumosas, as chuvas da semana passada em algumas regiões do Estado não foram suficientes para resolver o problema dos produtores. Loana Cardoso, agrometeorologista da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) exemplifica com o que acontece na cultura da soja. Ela ressalta que o período crítico de estresse hídrico da oleaginosa é o de floração e enchimento de grãos. “A seca prolongada nos plantios feitos mais cedo, que já estão neste estágio de desenvolvimento, é crucial para a soja e a tendência é de que haja realmente prejuízo”, explica.

A agrometeorologista afirma que as previsões de longo prazo para o Rio Grande do Sul indicam chuva abaixo ou próximas da média até meados de março. Loana destaca ainda que nos dois últimos anos parte da produção se recuperou porque houve maior regularidade de precipitações a partir de janeiro, o que não está ocorrendo em 2022. “Se ficarmos com chuvas próximas da média em fevereiro e março até vai ser bom”, prevê. “Mas a recuperação das plantas é muito variável pois depende do estágio evolutivo”, admite.

Produtor fica sem chuva e começa a calcular a quebra

Lavoura de soja de Felipe Silva deveria ter plantas na altura de um metro se as chuvas estivessem normais.  Foto: Guilherme Almeida

Lemes reclama que a escassez de água é tão grave que não vale custo de arrancada do motor da bomba que irriga a sua lavoura de arroz.  Foto: Guilherme Almeida

Com risco de perda total nos 500 hectares que plantou com soja, Seibt terá de buscar refinanciamento para uma dívida que beira os R$ 5 milhões.  Foto: Guilherme Almeida

Dados compilados pelo agrônomo Jerson dos Santos indicam que desde outubro de 2021 as chuvas têm sido insuficientes em Cachoeira do Sul, grande produtora de arroz e soja na região Central do Rio Grande do Sul. O índice pluviométrico não passou de 84 milímetros em outubro, 85 em novembro e 32 em dezembro. Em janeiro, até dia 18, ficou em 23.

Em condições normais, a quantidade de chuva deveria chegar a 200 milímetros por mês, o que, para desespero dos produtores cachoeirenses, não têm perspectivas de acontecer tão cedo, levando-se em conta as previsões meteorológicas para o Rio Grande do Sul até o fim do primeiro trimestre de 2022.

Cachoeira do Sul já está com situação de emergência decretada desde o dia 11 de janeiro, com prejuízos consolidados, segundo cálculo da Emater/RS-Ascar, de R$ 228 milhões na soja (20% da área plantada de 108 mil hectares) e R$ 22,5 milhões no arroz (equivalente a 10% da área de 24 mil hectares). Mas o dano mensurado tende a aumentar e a dor de cabeça dos produtores também.

Bruno Seibt, da Agropecuária Seibt, no interior de Cachoeira do Sul, diz que ainda não sabe como fará para dar conta de uma dívida aproximada de R$ 5 milhões, que ainda reflete as perdas da estiagem na safra 2019/2020. Dos 400 hectares cultivados com arroz, ele acredita que 60% estão perdidos. Nos 500 hectares de soja, Seibt acha que o índice de quebra pode ser maior, com áreas onde não vai ter o que colher. O agricultor mostra uma lavoura de arroz com grande área arrasada pela ausência de chuva por 30 dias. “A chuva que caiu nos últimos dias não serviu para nada aqui”, lamenta.

Segundo Jerson dos Santos, consultor de Seibt, o produtor fez investimentos em adubação e cultivares que lhe garantiriam 9 mil quilos de arroz por hectare e 60 sacos de soja por hectare. O produtor ainda tem de pagar os custos de arrendamento da terra, equivalentes a 13 sacos de soja por hectare e 20% da safra do arroz. A maior parte da área plantada não tem seguro, por estar em litígio entre os proprietários, o que impede de fazer uma apólice. Santos afirma que, sem sombra de dúvida, esta é a pior estiagem vivida pelo município de Cachoeira do Sul nos últimos 17 anos.

Elton Domingues Lemes, da localidade de Piquiri, também acredita que terá perdas de 60% a 70% nas lavouras de 280 hectares de soja e 150 hectares de arroz. O Rio Piquiri, que serve a propriedade, está com o nível muito baixo, o que não permite, no caso do arroz, manter a lâmina d'água necessária ao desenvolvimento da lavoura. O levante (uso de bomba elétrica para retirar a água do rio e levar até as taipas que circundam o plantio), se ligado por duas horas esgota a água disponível. “Não vale nem o custo de arranque do motor para a puxar a água”, comenta Lemes. “Vamos ter de dar um jeito, renegociar dívidas e seguir. Acho que a gente continua plantando de teimoso mesmo”, confessa.

Área segurada

Na Agropecuária SRB, em Piquiri, Felipe Brendler Corrêa da Silva está preocupado com o resultado da safra, mas menos que Lemes e Seibt. O jovem de 28 anos, que desde os 24 comanda a propriedade da mãe, não tem custos de arrendamento, suas áreas de 90 hectares de arroz e 60 hectares de soja estão seguradas e ele considerou os possíveis efeitos do fenômeno La Niña antes de plantar.

Silva deixou 80 hectares da propriedade em pousio (repouso da terra sem semeadura). “Como é o primeiro ano que eu planto soja, preferi observar numa área menor”, conta. A soja plantada pela SRB, aponta o agricultor, deveria estar perto de um metro de altura, mas não passa de 30 centímetros e a perda é certa.

“Eu tenho estudado alternativas de irrigação, para tentar não perder tanto”, ressalta Silva. Como sua área de plantio está localizada em várzea, a irrigação por pivô não seria a adequada, mas há a alternativa de irrigar por canhão de água e mesmo por inundação. “A possibilidade de irrigar a soja por inundação existe também, sendo que neste caso a água é colocada e retirada mais rapidamente”, esclarece. Hoje, o município de Cachoeira do Sul tem apenas 5 mil hectares de lavouras de grãos irrigados.

Há perdas e danos também nos orgânicos

Mesmo que feito em menor escala, cultivo de frutas e verduras sem uso de agrotóxicos também sofre com a estiagem e contabiliza prejuízo

Bananeiras desidrataram sem a chuva necessária para a formação dos cachos e enfrentam pragas atraídas pelo calor. Foto: Marcos Evald / Divulgação / CP

Os cerca de R$ 80 mil anuais obtidos pelo produtor de frutas e legumes orgânicos Nilson Camatti devem cair para menos da metade em razão da estiagem que atinge a região da Serra do Rio Grande do Sul desde o último trimestre de 2021. A propriedade da família, de 7,5 hectares, fica em Capela São Roque/Linha 10 de Julho, interior de Antônio Prado. Lá, Camatti cultiva maçãs, pêssegos, uva, tomates, pimentões e morangos. Até há três meses, ele também plantava cenouras, couve-flor e verduras, mas optou por parar quando os quatro açudes do empreendimento começaram a secar.

Dirigente da Associação de Agricultores Familiares de Antônio Prado, Camatti acredita que vai perder cerca de 40% das uvas bordô (para processamento de suco) e niágara branca e rosa do parreiral, que tem 1,5 hectare. Segundo ele, as uvas vêm sofrendo com três anos de chuvas escassas e nem a irrigação conseguiu salvar a colheita que esperava para este ano, de 20 toneladas. “O parreiral de uva bordô, no qual coloquei irrigação, vai produzir um pouco melhor que no ano passado, quando colhi cinco toneladas”, compara. “Talvez (chegue a) umas seis toneladas e meia.”

O produtor diz ter contratado seguro para a uva e o pêssego, mas sua apólice cobre apenas danos causados pelo granizo. Os manejos adotados pela agroecologia, de uso de palhada para manter a umidade do solo, foram, de acordo com Camatti, vencidos pela falta de chuva. “A palhada que colocamos no pomar de pêssegos ajudou por um mês, um mês e meio, mas com tão pouca chuva não há milagre que se possa fazer”, reconhece. Até nos cultivos do tomate, pimentão e morango, plantados em estufas e que necessitam de muita água para a irrigação por gotejamento, o produtor não descarta perdas. As batatas foram queimadas pelo sol antes de serem retiradas da terra.

Banana

Em Três Cachoeiras, no Litoral, os problemas também se multiplicam na produção da banana, uma fruta que necessita de chuva pelo menos uma ou duas vezes por semana para a manutenção das folhas e correta formação dos cachos. Bananicultor em Morro Azul, interior de Três Cachoeiras, Marcos de Medeiros Evald está vendo a estiagem desidratar sua principal fonte de renda. Na propriedade de 21 hectares, seis hectares são dedicados às bananeiras, que garantem 40 toneladas de frutas por ano e um ganho líquido médio de três salários mínimos mensais à família.

“A falta de chuva está fazendo as folhas secarem e as bananas não crescem direito”, constata Evald. “Se voltar a chover, podemos esperar alguma melhora, mas já estamos contando com uma perda de 30% a 40% da produção”, admite. O agricultor afirma que, mesmo usando as técnicas de plantio orgânico, este foi um ano difícil até para afastar pragas do cultivo (atraídas pelo calor) como a Sigatoka e o Mal-do-Panamá, que afetam a produtividade e a qualidade das bananas.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895