Olhar o futuro sem esquecer o passado

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Startup reúne pessoas negras para driblar cenário de desigualdade racial que ainda persiste no mercado de trabalho brasileiro

Correio do Povo

“Os lanceiros”, como se autodenominam os jovens fundadores da Lanceiros Tech, startup gaúcha especializada no desenvolvimento de softwares.

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Ainda que o movimento negro tenha amplificado sua atuação, mostrando a necessidade da conscientização sobre o protagonismo e empoderamento, a cor da pele ainda é fator prevalente nas diferenças quando o assunto é mercado de trabalho. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 8 milhões de pessoas perderam o emprego entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020 no Brasil. Destes, 6,3 milhões (71%) eram homens e mulheres negras.

Ainda, segundo o IBGE, a renda média dos trabalhadores negros, que representam mais da metade da população (56%), é de R$ 1.865, enquanto o restante da força de trabalho nacional recebe R$ 3.509, em média. Contabilizando pessoas com ensino superior completo, o salário médio de homens negros é de R$ 4.990 por mês. A dos não negros é 46% maior, de R$ 7.286. Entre as mulheres com ensino superior, a média das negras é de R$ 3.067 e a das não negras de R$ 4.566 (49% maior), o que evidencia uma realidade desigual, mesmo com formação equivalente.

Foi neste contexto de falta espaço no mercado de trabalho que nasceu a startup Lanceiros Tech, há um ano, especializada no desenvolvimento de softwares. A inspiração para o nome está na luta histórica dos Lanceiros Negros e a ideia da iniciativa é abrir caminhos e promover visibilidade na inclusão, empregando apenas pessoas negras. Uma lança, instrumento de luta na época, dá cara ao logo da empresa de forma estilizada. O conceito partiu da união de ideias do profissional da Transformação Digital e da Inovação, Fausto Vanin, e a contadora e empreendedora social, Onilia Araújo.

Atualmente, a startup conta com 15 pessoas na equipe. “Estamos crescendo muito rápido e somando pessoas de outras partes do país. Para alguns, a pandemia significou uma perda em termos de geração de empregos, mas para nós foi um renascimento”, conta a assistente comercial responsável pela comunicação, Mychelly Alves. Jovens de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia se juntam aos gaúchos nos serviços tecnológicos, que incluem construção de sites, aplicativos, bancos de dados, gestão e criação de marca visual. “Uma família onde sempre cabe mais um”, resume Mychelly que, aos 28 anos, confessa já ter passado por situações em que sentiu a discriminação de perto antes de se tornar uma lanceira, como os integrantes da equipe se autodenominam. “É muito difícil de ver pessoas negras em cargos no universo da tecnologia. Não adianta ter o currículo perfeito, sendo negro, dificilmente se consegue emprego”, diz. 

Recentemente, representantes da Lanceiros estiveram em uma atividade com jovens do Morro da Cruz, no bairro Vila São José, em Porto Alegre. “É uma forma de podermos dar voz à comunidade preta que são como nós, que também viemos da periferia. Conhecemos um projeto social incrível desenvolvido lá, com cursos de computação e software, nos quais a Lanceiros se juntou”, explica. Segundo ela, entre os planos da empresa está criar cursos e ensinar os conhecimentos sobre tecnologia a outros negros que possam trabalhar com afrofuturismo e não teriam oportunidade de aprender. “Só queremos o que nos foi tirado”, ressalta Mychelly.

Busca de talentos

A organização Mais Diversidade oferece consultoria na elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas e práticas de diversidade e inclusão no ambiente de trabalho, traçando estratégias para contratação, desenvolvimento e retenção de talentos de pessoas negras, além de outros grupos como mulheres, LGBTQIA+ e pessoas com deficiências. Para a consultora da empresa, Janaina Gama, a precarização do trabalho negro, desde a escravidão, ainda acontece, mesmo com o esforço dos movimentos ativistas e de políticas públicas. “Os dados comprovam a desigualdade em nosso país e a importância destes números para debater o racismo. O preconceito ocorre dentro das companhias, muitas não têm dados, não faz pesquisas e acha errado discriminar, mas acaba discriminando também”, observa.

Janaina acrescenta que há talentos negros qualificados, mas muitas empresas não enxergam. “Os esterótipos que diferenciam as pessoas pelo contexto racial estão tão fortes a arraigados que as organizações não percebem que também foram impactadas pelo racismo. Da forma como estão fazendo a seleção de vagas e atração de talentos, não conseguiram mapear o que precisam”, relata a especialista. No entanto, ela destaca que há um movimento de empresas que admitiram pertencer a este cenário e buscam remodelá-lo. “Estão percebendo isso e fazendo parcerias com escolas técnicas e desenvolvendo programas de trainees e de estágios com pessoas negros. Os talentos negros estão aí e esta diversidade trará um ganho às organizações”, salienta.

Iniciativas para diminuir a invisibilidade nas empresas

Em 2019, a Magazine Luiza desenvolveu uma política de diversidade criando um programa de trainees somente para negros. A iniciativa deu tão certo que, desde então, novos talentos da etnia têm surgido na empresa. Atualmente, 51,8% dos funcionários da Magalu se consideram pretos ou pardos. Destes, 41,5% ocupam cargos de liderança, 47% no setor de operação, ou seja, nas lojas, e 21% nos escritórios. A ideia da empresa é que nos cargos de liderança, o número de pessoas negras represente a demografia brasileira, ou seja, 56,1%.
 
Mas o programa da gigante do varejo brasileiro não é uma ação isolada. Outra iniciativa é a criação da Rede Jornalistas Pretos, em parceira com o Instituto de Gestão e Desenvolvimento de Recursos Humanos, que organiza vagas para ajudar a colocação de pessoas negras da área de comunicação no mercado de trabalho. O objetivo é que mais empresas invistam em diversidade nos seus setores de comunicação, e os profissionais de pele preta que procuram oportunidades tenham um local específico para isso.
 
O Carrefour também lançou recentemente um Fundo Antirracista, no valor de R$ 115 milhões, com validade de três anos. A estrutura surgiu após a morte de João Alberto Silveira Freitas no estacionamento do hipermercado em Porto Alegre, há exato um ano, e visa ações internas de combate à discriminação racial e promoção da equidade, de mobilização da rede de fornecedores e parceiros, além de atividades voltadas à empregabilidade, educação e empreendedorismo de pessoas negras.
 
Coordenadora de Recursos Humanos do Carrefour, Marinildes Queiroz destaca dois projetos de cunho antirracista já desenvolvidos. “O primeiro é o programa de estágio, que teve, este ano, uma turma exclusiva para negros, mas com um diferencial: ao invés de irmos às universidades e disputarmos os mesmos perfis que as outras empresas, buscamos jovens que não tinham condições de cursar faculdades, em uma parceria com a Central Única das Favelas”, relata. O outro programa é Talentos do Futuro - Liderança Negra. “Foram quase 3 mil inscritos. Profissionais de nível sênior que não tiveram oportunidades de seguir uma carreira e, com isso, poderemos aumentar o número de líderes negros na empresa.” Dados de setembro de 2021 indicam que a companhia tem 61% de pessoas negras e 54,7% de negros em cargos de liderança.

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