Um dia para lutar, refletir e mudar

Um dia para lutar, refletir e mudar

Data símbolo da luta dos negros é encarada como oportunidade para que toda a sociedade repense atitudes cotidianas

Correio do Povo

A atendente Emili Oliveira foi vítima de racismo

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“Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. A frase da filósofa e ativista norte-americana Angela Davis ganhou as redes sociais recentemente, na expectativa de que perpasse o ambiente virtual e se torne realidade. O Dia da Consciência Negra, neste 20 de novembro, é sempre lembrado mais pela reflexão do que por alguma comemoração: de que os negros sejam conscientes da sua identidade e de seus direitos e que os não negros reflitam sobre seus pensamentos e ações.

O racismo estrutural faz lembrar que o preconceito está inserido em conjunto de práticas, hábitos, situações e falas em nossos costumes e, na maioria das vezes, não é perceptível por quem a propaga. A própria língua portuguesa, importada e imposta pelos colonizadores brancos, ainda carrega diversas expressões que têm sua origem no período escravocrata ou associam o povo negro a conotações pejorativas. São termos que ainda podem passar despercebidos no dia a dia, mas que contam muito sobre a história de um país marcado pela escravidão. Expressões como “meia tigela”, “a dar com pau” e “fazer nas coxas” são algumas das expressões que carregam o contexto histórico de toda a opressão sofrida pelo povo negro, antes e depois da abolição da escravatura. “Denegrir” no sentido de “difamar” é outro exemplo. “As pessoas usam certos termos, convivem com atitudes racistas e nem percebem. Em um país em que mais de 50% da população é negra, isso é muito grave”, aponta Paulo Sergio Gonçalves, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Estácio/RS e doutorando em Literaturas Africanas. 

Criminalização

Somente em 1989, a lei 7716 do Código Penal brasileiro previu pena de reclusão de um a três anos e multa a quem praticasse o crime de racismo, inafiançável e imprescritível. Na última quinta-feira, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o projeto de lei que equipara os crimes de racismo e injúria racial. Portanto, “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” será tipificado como crime de racismo. O projeto ainda aumenta a pena para quem comete o delito. Pela proposta, a reclusão passa de um a três anos para dois a cinco anos, além de multa.

A porto-alegrense Emili Oliveira, 24 anos, tem orgulho de sua origem e, por conta disso, passou por um episódio de racismo no ambiente de trabalho. Em 2019, ao colocar tranças coloridas e longas para prestar seus serviços de atendimento em uma clínica, se deparou com uma reação negativa de sua supervisora. “Ela ficou chocada, perguntou se eu tinha ficado louca”, relembrou a jovem, explicitando a contrariedade da chefe. Após vestir o jaleco e atender o paciente, Emili foi chamada na sala da superior para uma conversa. “Ela me disse que não era orientação da empresa aquele cabelo que eu tinha colocado. Só que outras funcionárias, brancas, podiam deixar cabelos soltos”, afirma.

A gota d’água discriminatória, segundo Emili, foi a proposta de mudança de setor, longe do atendimento ao público. “Perguntou se eu queria trabalhar no call center para poder permanecer na empresa. Além de ser um lugar fechado, eu teria o salário reduzido”, contou. A sugestão não foi aceita. Resultado: demissão após quatro anos de serviços prestados ao estabelecimento. Emili não pensou duas vezes. “Fiz uma ocorrência no Palácio da Polícia e, depois, com o auxílio de um advogado, entrei com uma ação judicial contra a clínica”, conta. Ela recebeu indenização a partir de um acordo entre as partes. Hoje, na farmácia onde trabalha, Emili pode usar o cabelo que quiser.

A discriminação, contudo, não poupa nem personalidades bem-sucedidas, alçadas ao nível de ídolos e com salários milionários. O atacante Taison Barcellos Freda, 33 anos, nascido em Pelotas e conhecido por sua passagem pelo Internacional, saiu do Estado em 2010 para jogar na Ucrânia. Nem sua convocação para a Copa do Mundo de 2018 o livrou de passar por uma desagradável experiência. Um ano depois, quando atuava por seu segundo time naquele país, o Shakhtar Donetsk, ele e o Dentinho foram alvos de insultos racistas nas arquibancadas durante uma partida. Ao sofrer uma falta no segundo tempo, Taison mirou a torcida adversária que gritava, chutou a bola com raiva e fez um gesto obsceno àquelas pessoas que o agrediam verbalmente. O árbitro paralisou o jogo tentando interromper os cânticos racistas mas, ao retomar a partida, expulsou Taison em virtude de sua reação. Ele deixou o campo chorando e a partida seguiu normalmente. Naquele dia, o seu time venceu e o racismo também.

Desde então, o atacante do Inter, sempre que faz um gol, ergue o braço direito, com o punho cerrado, em referência ao movimento Black Power. O gesto ficou mundialmente conhecido com os atletas negros Tommie Smith e John Carlos no pódio dos 200 metros rasos nos Jogos Olímpicos de 1968. “Não podemos parar, não podemos nos esconder. A gente que lutar todos os dias, não só eu, não é você: todos nós passamos por isso diariamente. Então, juntos, somos mais fortes e vamos lutar. Não se calem. Não ao racismo”, frisa Taison.

Foto: Ricardo Giusti / CP Memória

Morte em supermercado completa um ano

Completou nesta sexta-feira, um ano da morte de João Alberto Freitas, o Beto, de 40 anos, espancado e morto por dois seguranças no estacionamento da unidade do Carrefour, no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre. O crime foi registrado em vídeo por testemunhas e as imagens ‘viralizaram’, reproduzidas em veículos de comunicação de todo o mundo, chocando pela brutalidade do ataque. As testemunhas do assassinato chegaram a acionar equipes de socorro, que não chegaram a tempo de salvar a vítima. Beto morreu na frente da esposa Milena Alves. 

A perícia indicou que a causa da morte tenha sido asfixia. Seis pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público por participação no homicídio triplamente qualificado, por motivo torpe, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa. Giovani Gaspar da Silva, de 24 anos, e Magno Braz Borges, de 30 anos, seguranças que realizaram a agressão, estão presos. Adriana Alves Dutra, funcionária que tenta impedir gravação de imagens no momento das agressões, está em prisão domiciliar. Paulo Francisco da Silva, funcionário da empresa de segurança Vector, e Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende, funcionários do supermercado, respondem em liberdade.

Em junho, o Carrefour fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com autoridades do Rio Grande do Sul. O documento prevê o pagamento de R$ 115 milhões em ações antirracistas. O grupo afirmou que os membros da família da vítima foram indenizados, o modelo de segurança nas lojas foi internalizado e compromissos assumidos vêm sendo postos em prática com objetivo de combater o racismo e promover a equidade. No último dia 4, a empresa Vector assinou um TAC onde se comprometeu a investir R$ 1,7 milhão, valor que será direcionado ao combate ao racismo estrutural, à discriminação e à violência. Os funcionários serão treinados e uma ouvidoria independente também deverá ser criada.

Empresa investiu em capacitação

  • O Carrefour reconhece o que ocorreu com Beto, mas enfatiza que o ato que resultou na sua morte não representa e nem condiz com os valores da companhia. Em abril de 2021, o Grupo Carrefour Brasil realizou um fórum com mais de 10 mil fornecedores, anunciando uma cláusula antirracista em todos os seus contratos, como parte da Política de Tolerância Zero. Os canais de denúncia, internos e externos, foram ampliados.
  • “Estamos trabalhando em um sistema muito sério, de integridade que reflete um impacto positivo na sociedade, com uma política de tolerância zero”, explicou a diretora de Compliance e Controles Internos Holding do Carrefour, Chantal Pillet. Segundo ela, há uma mobilização neste sentido de todas as cadeias que integram no ecossistema do Carrefour. “A criação de ações afirmativas nos faz ficar mais presentes em um tema tão urgente para uma sociedade que precisa ter um desenvolvimento sustentável, ético, humanizado e íntegro”, completa. O novo modelo de segurança busca diretrizes de inclusão e respeito, além de novas regras para lidar com conflitos. Os profissionais também contarão com câmeras corporais.
  • De dezembro de 2020 até início de outubro, foram contratados mais de 1.100 agentes de acordo com o novo conceito de segurança. Desse número, 67% são pessoas negras e 36% mulheres. A participação das mulheres na função na empresa cresceu de 19%, em 2020, para 36%, em 2021. A expectativa é de esse número chegue aos 50% em 2022.

Estudo escancara realidade no RS

Os negros (pretos e pardos) representam 21% da população gaúcha, cerca de 2,3 milhões de habitantes. Um estudo do Departamento de Economia e Estatística (DEE), vinculado à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG), divulgado nesta sexta-feira, mostra a desvantagem na comparação com os brancos em uma série de indicadores relativos à educação, saúde, mercado de trabalho e representação política no RS.

Entre pessoas com 15 e 17 anos, por exemplo, a taxa de analfabetismo é de 5,2% em relação aos 2% dos brancos, chegando a 16% entre a população negra com 60 anos ou mais contra 5,2% na mesma faixa etária entre os brancos. Em termos de escolaridade no Estado, 16,4% dos brancos tinham Ensino Superior completo em 2019 contra 6,3% dos negros. Já entre a população com Ensino Fundamental incompleto, o percentual entre os negros era de 38,8% contra 31,5% dos brancos. Entre os matriculados na Educação Básica, os brancos representavam 84% do total dos estudantes, contra 10% de pardos e 5% de pretos. Há, ainda, maior distorção idade-série entre negros (percentual de alunos que têm idade acima da esperada para o ano em que estão matriculados).

Na saúde, quanto à taxa de letalidade hospitalar em função da pandemia da Covid-19, a população preta inscrita no Cadastro Único registrou percentuais maiores do que a branca e a parda para faixas etárias mais altas. Na faixa etária entre 60 a 79 anos, no período entre março de 2020 e junho de 2021, a taxa chegou a 49,6% entre os pretos, 45,5% nos pardos e 45,8% entre os brancos. Na faixa etária de 80 anos ou mais, os percentuais foram de 67,1% entre a população preta, 59,1% entre os pardos e 59,2% nos brancos.

Na taxa de desemprego por raça/cor no Rio Grande do Sul, o percentual é mais expressivo entre os pretos e pardos em relação aos brancos. No primeiro trimestre de 2020, o último antes dos maiores efeitos da pandemia do Covid-19, a taxa era de 13,5% entre a população preta, 12,8% entre os pardos e 7,2% entre os brancos.

O relatório técnico “Panorama das desigualdades de raça/cor no Rio Grande do Sul” contempla dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua), Censo Escolar, Censo do Ensino Superior, Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), Pesquisa Nacional da Saúde (PNS), Sivep/Gripe, DataSus, Departamento Penitenciário Nacional, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Cadastro Único.


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