Dia da Mulher: empreendedoras chefiam mais de 40% dos negócios abertos no RS

Dia da Mulher: empreendedoras chefiam mais de 40% dos negócios abertos no RS

Cerca de 406 mil mulheres que decidiram ser chefes de seus futuros profissionais a partir do último ano

Kyane Sutelo

publicidade

A abertura de negócios chefiados por mulheres despontou no Rio Grande do Sul. Segundo a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM/RS), 43% dos novos empreendedores no RS, em 2022, são do sexo feminino. São cerca de 406 mil mulheres que decidiram ser chefes de seus futuros profissionais a partir do último ano. Não é que a presença delas nesse cenário seja uma novidade, visto que, desde a primeira edição desse estudo no Estado, há seis anos, o índice já era superior a 40%. Mas um fator sacudiu a economia nos últimos anos: a pandemia.

As dificuldades econômicas durante o período de isolamento por causa da Covid-19 impactaram mais as empreendedoras. De acordo com a GEM/RS, de 2018 para 2020 houve uma queda de 25% dos negócios criados por mulheres, enquanto entre os homens a redução foi de 2,4%. E é por isso que o dado atual salta aos olhos positivamente no quesito gênero, mostrando que elas se recuperaram deste impacto e estão de volta ao jogo.

Algumas, inclusive, começaram a jogar na fase mais difícil. Dani Poletto, de 45 anos, empreendeu no auge da pandemia, em 2020, com moda íntima feminina. A comerciante, que começou sozinha com um investimento de R$ 600,00, agora atua junto a uma equipe de 20 vendedoras comissionadas e afirma ter triplicado a renda de casa em comparação ao tempo em que trabalhava no formato CLT. “Todos os empregos que eu tive, trabalhei para pagar as contas. A chave virou muito depois”, conta a empreendedora. Apesar do crescimento rápido, a jornada até se ver como uma mulher de negócios foi longa.

Dani é de Guaporé e, desde a adolescência, já buscava a própria renda sendo babá. Na cidade natal também chegou a atuar em fábrica e, aos 18 anos, mudou-se para Porto Alegre, em busca da “vida na cidade grande”. No âmbito profissional, a realidade não mudou muito e ela precisou se manter voltando a cuidar de crianças. Também trabalhou como atendente, telefonista e recepcionista. E foi no dia a dia do mercado de trabalho que percebeu a importância da qualificação. Começou a faculdade de Administração, mas não concluiu. Focou em cursos: recepção, dicção e oratória, atendimento. Foi galgando degraus até chegar à área Comercial e encontrar sua vocação.

Conforme o Sebrae/RS, 46% das empreendedoras foram motivadas a começar por uma oportunidade de abrir um negócio na área em que gostavam. Mas Dani demorou para encontrar a oportunidade que considerava certa de ser dona de um empreendimento. Ela chegou a ter uma equipe de vendedoras de semijoias, mas sentiu que ainda não era o momento e o negócio certo. Até dois anos atrás, ela sustentava o filho, de 15 anos, trabalhando para empregadores. Como corretora, também teve uma amostra do que era o ganho de rendimentos semelhante ao de um autônomo.

Mas voltou para a segurança da contratação por CLT. “É algo que está enraizado dentro da gente. Aprendi com a minha mãe que é melhor ter pouco do que nada”. Para ela, esse pensamento pode estar relacionado à cultura patriarcal da sociedade. “Talvez venha de uma massa antiga onde o homem era mais provedor. Sendo mais provedor e a mulher mais dona de casa, a mulher tem menos coragem”, avalia, conforme os exemplos que teve, do pai que consertava bicicletas e da mãe que trabalhava em uma creche.

Separada há 13 anos, a empreendedora acredita que o fato de sustentar o filho sozinha foi crucial para que decidisse ter seu próprio negócio. “Eu não consigo relaxar e tão pouco me contentar com o salário de CLT, porque eu tenho um compromisso comigo e com meu filho”, explica Dani. Assim como ela, a maioria das mulheres que empreendem possuem filhos. São 77% conforme a pesquisa do Sebrae/RS. Entre elas, 27% são as únicas responsáveis pelo sustento da casa e mais de 50% compartilham a responsabilidade com mais alguém.

Para Dani, não é apenas o sustento que importa. Ela também quer passar para o filho o exemplo. Com 15 anos, Lorenzo estuda no turno da tarde e atua como jovem aprendiz do Senai pela manhã. Além disso, desenvolve o próprio negócio de vendas com amigos, no formato dropshipping. A mãe contribui ensinando que ele pode conseguir o que quiser, desde que coloque a mão na massa, e mostrando na rotina dela que é possível. “O exemplo arrasta, tanto para o lado ruim quanto para o lado bom”, acredita Dani.

A trajetória de Dani se cruza em muitos trechos com a de diversas empreendedoras pelo Estado. Entre as mulheres ouvidas na pesquisa do Sebrae/RS, por exemplo, há outro ponto em comum: a faixa etária. Ela abriu seu negócio aos 42 anos, se enquadrando na faixa etária que é maioria no levantamento, que é de 40 a 44 anos. E o destaque no mundo das mulheres que empreendem, segundo a pesquisa, está na maturidade. Das pessoas ouvidas, 63% têm mais de 40 anos.


Dani Poletto empreendeu no auge da pandemia | Foto: Mauro Schaefer

Dani acredita que o caminho profissional, de mais de três décadas, trilhado até ser a própria chefe, foi necessário para desconstruir crenças limitantes e amadurecer os projetos. “Me arrependo só de não ter feito o que eu faço hoje a vida toda”, diz a comerciante. Mas a ideia é ir mais longe. Ela aposta em cursos, mentoria e um rígido controle em planilhas para ampliar o negócio. Até 2024, pretende dobrar o número de parceiras vendendo os produtos e, em dois anos, quer abrir um showroom. Entre as metas de longo prazo, além de garantir uma aposentadoria confortável, está ajudar outras mulheres a empreender assim como ela.

Seja pela falta de orientação, dinheiro ou tempo, ir planejando o projeto ao mesmo tempo em que ele se desenvolve é uma marca no empreendedorismo feminino. Conforme o levantamento do Sebrae/RS, 40% das empreendedoras consideram a etapa de planejar um dos principais desafios. A união das palavras fazer e planejamento, a expressão fictícia “fazejamento” vem sendo usada em palestras no meio dos negócios para caracterizar o ato de agir sem antes ter planos bem definidos.

Para a presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas de Erechim, Débora Lunardi, a dificuldade é uma herança de décadas de um mercado dominado pelos homens. “A gente teve que entender com muita rapidez como é que funciona todo essa questão de mercado financeiro. Historicamente sempre foram palcos muito masculinos”, avalia ela, que também é empreendedora, no ramo de moda e beleza feminina. Mas Débora defende que a cultura do “fazejamento” entre as mulheres não é totalmente negativa, pois acredita que elas têm “espírito empreendedor”. Além disso, a profissional acredita que a prática de planejar com detalhes vem crescendo no ambiente feminino de negócios e o “fazejamento” está ficando para trás. “Hoje a gente tem uma caminhada grande aí. As mulheres estão bastante instrumentalizadas já e usando todas as ferramentas que o mercado oferece”, acredita ela.

Rede de apoio

A Débora dirige um grupo criado para compreender o cenário feminino do empreendedorismo e apoiar as gaúchas a abrirem seus negócios. O Núcleo Mulher Empreendedora da Federação Varejista do RS foi criado em julho de 2022, após a constatação de que, das 82 CDLs do Estado, 34 são lideradas por mulheres. “A rede de apoio que as mulheres criam é uma coisa muito importante. Normalmente, quando a mulher assume um papel no empreendedorismo, leva com ela outras e eu acho que isso é justamente o que nós, em termos de federação, estamos fazendo”, analisa a diretora.

Neste primeiro ano de atuação, ela explica que a ideia é realizar uma série de reuniões, presenciais e online, com as empreendedoras para compreender os anseios e necessidades nas mais diversas regiões do Estado onde já existe atenção especial aos negócios femininos. Em paralelo, Débora conta que pretendem estimular mais grupos focados no tema e realizar um evento estadual. “Estaremos apresentando uma cartilha de formação e de instrumentação para que se criem novos núcleos nas demais CDLs e, em outubro, ainda com data a confirmar, teremos o nosso primeiro Encontro Estadual do Núcleo da Mulher Empreendedora”, afirma a gestora do Núcleo.

Os esforços para fortalecer a rede de apoio às empreendedoras refletem um cenário que se consolida, uma vez que 61% das entrevistadas pelo Sebrae/RS participam de grupos com outras mulheres. E o chamado associativismo é maioria no levantamento, sendo 74% em grupos vinculados a associações ou entidades empresariais, como é o caso da Federação Varejista do RS. Outra entidade que, há seis anos, possui um grupo focado nos negócios femininos é a Associação Comercial de Porto Alegre, que recentemente também empossou sua primeira presidente mulher em 164 anos de história, Suzana Velhinho.

O Núcleo da Mulher Empreendedora da ACPA tem como propósito contribuir com o desenvolvimento das integrantes por meio de eventos, palestras e reuniões quinzenais. A troca de experiências e organização resultou, entre outros projetos, na publicação do livro “20 Histórias para Empreender”, lançado na Feira do Livro de Porto Alegre do ano passado.

Empreendedorismo e raízes

União feminina e literatura também são as peças principais da construção da empreendedora que Maiza Lemos, de 67 anos, se tornou. Escritora e poeta, ela integra o coletivo Afro Aya, criado há três anos por oito mulheres negras, para difundir suas raízes e gerar subsistência a partir de suas artes. Por muitos anos, ela foi a Maria Luiza, casada, mãe de seis filhos que trabalhou como doméstica, faxineira, cozinheira, para ajudar no sustento da família. A mulher que sofreu um atropelamento, que cuidou da mãe doente até seus últimos momentos de vida e que terminou o ensino fundamental por meio do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja).

As tantas vivências regaram dentro dela a Maiza. O nome artístico floresceu junto com sua própria arte. O refúgio que a guria de oito anos achava na escrita, tornou-se profissão décadas depois. A primeira incursão como autora foi no início dos anos 2000, em um projeto da escola de um dos filhos. “Descobri uma oficina na escola e resolvi fazer. Aí que eu me descobri poeta”, relembra a escritora. Após participar de coletâneas acabou se afastando e retornou a projetos escolares com a neta, sua “maior fã”.

A autora tem três livros publicados: a coletânea “Letras na Lomba”, “Desabafos Poéticos”, do projeto Afroativos, e “Maiza Lemos: uma vida de escrevências”. Ela ainda é personagem de livro. Sua história foi contada na obra infantil "Maiza", de autoria da aluna do Afroativos, Ketllyn Vieira. Mas no Afro Aya o protagonismo é dividido entre as oito integrantes e, além dos trabalhos na escrita, ela atua também como artesã.

No coletivo, cada uma divulga e comercializa seus trabalhos individuais, assim como as criações feitas em conjunto, em feiras e eventos. Baseado na economia solidária, o grupo divide a renda em partes iguais, independentemente de quais itens forem vendidos. Além disso, uma parte fica para um fundo criado para gastos da rede de apoio. “Na pandemia mesmo, o socorro de muitas nós foi o nosso fundo. A gente foi pegando uma cesta básica para uma ou uma linha pra outra fazer coisas para vender. Então, é na base da solidariedade, da igualdade e da justa distribuição de renda”, conta a empreendedora.

O coletivo Afro Aya surgiu a partir de um projeto das criadoras para divulgar os Adinkras, símbolos que, conforme Maiza, eram utilizados por povos africanos para se comunicarem. “A gente quer mostrar que existe uma história por trás disso, que não é só um desenho. Assim nasceu o Afro Aya. E aí a gente faz as bags com os Adinkras, faz chaveiros, faz canecas e está tentando resgatar essa cultura”, explica a integrante. Agora, elas têm o plano de expandir a atuação como rede de apoio.

O grupo desenvolveu a Feira de Mulheres Negras Empoderadas, que conta com mais de 50 participantes e está na fase jurídica de criação, conforme Maiza. O movimento vai contra a maré, visto que apenas 13% das mulheres empreendedoras no Estado são pretas ou pardas, conforme o Sebrae/RS. A ideia da rede é fazer outras mulheres entenderem que podem ser empreendedoras também, com algo que já sabem fazer, ficando livres de vínculos com maridos ou patrões pela subsistência. “Essa é a luta feminina que a gente sabe que a mulher batalha desde que abre os olhos”, afirma.

Ela garante que quer seguir abrindo portas para novos mundos, seja em sua escrita ou na atuação coletiva. “Tem muita mulher que não sabe como vai ganhar o pão pra pro café da manhã e ela sabe fazer muita coisa, sabe escrever, sabe bordar. Esse é o foco, é chegar nelas e fazer elas entenderem que existe uma luz atrás daquela porta fechada”, ressalta Maiza.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895