Nebulização com hidroxicloroquina causou reações adversas em pacientes, diz hospital

Nebulização com hidroxicloroquina causou reações adversas em pacientes, diz hospital

Tratamento alternativo e sem eficácia comprovada contra a Covid-19 foi oferecido por médica em Camaquã

Angélica Silveira

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Três pacientes com Covid-19 que estavam internados no Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Camaquã, morreram entre segunda e quarta-feira desta semana. Eles haviam recebido nebulização com hidroxicloroquina diluída em soro, medicamento que não tem comprovação de eficácia em casos do novo coronavírus. O hospital informa que não há como relacionar os três óbitos com o tratamento, mas diz que todos esses casos apresentaram reações adversas após o procedimento. Um outro paciente, da cidade de Dom Feliciano, foi o primeiro a receber essa nebulização, ministrada pela médica Eliane Scherer.

Conforme o diretor técnico do hospital, Tiago Bonilha, a profissional ofereceu o tratamento alternativo e esse paciente se recuperou. “A partir disso, primeiramente cinco famílias de pacientes entraram na Justiça em busca do mesmo tratamento, sendo que uma acabou declinando." Segundo ele, nos demais casos, os pacientes receberam o tratamento com a médica: três faleceram e um teve alta. O Ministério Público fará investigação a partir de denúncia recebida do hospital, que também informou os fatos ao Conselho Regional de Medicina (Cremers). A médica foi procurada pela reportagem e disse que no momento não iria falar com a imprensa.

Até o último dia 10, Eliane compunha a escala do Pronto-Socorro do hospital. Ela era terceirizada, contratada da empresa que administra a escala de plantões do estabelecimento. A pedido da direção do hospital, ela foi afastada da escala após ter “tentado obrigar a equipe assistencial a administrar via inalatória uma solução com hidroxicloroquina, de procedência desconhecida, não prescrita em prontuário, manipulada pela própria médica”, diz a nota da instituição. Após isso, houve grande mobilização em torno do seu desligamento da escala sob o pretexto de o tratamento estar salvando vidas, inclusive com o depoimento de um paciente em um veículo de imprensa local. Ela teria passado a ofertar o tratamento aos familiares e pacientes que chegavam ao Pronto-Socorro, bem como aos internados na instituição.

Bonilha acredita que a maneira como foi apresentado o primeiro caso influenciou as famílias a irem atrás da médica após ela ser desligada da escala para acompanhar os pacientes. “A maneira como foi apresentado o caso com o efeito milagroso tendenciou as famílias a irem atrás. O hospital tem um tratamento mais conservador, com protocolo de terapia de suporte aos pacientes”, disse. 

A médica foi contratada pelas famílias para acompanhar os pacientes, solicitando, assim, que fosse administrado o tratamento. Como se tratava de algo experimental, alguns médicos se negaram a prescrevê-lo àquelas pessoas que estavam sob seus cuidados, razão pela qual as famílias foram à Justiça para permitir que fosse feito o tratamento com inalação da solução de hidroxicloroquina. Uma liminar foi deferida para que isso fosse administrado, na condição de que a profissional assumisse integralmente a assistência dos pacientes. Por isso, o hospital firmou com outras famílias que tinham o mesmo interesse termo de acordo no qual a médica e os familiares se responsabilizavam pelas consequências do tratamento e tinham ciência de que não havia comprovação científica.

“Não temos como estabelecer uma linha direta com a medicação, o que constatamos é que eles não melhoraram e não houve efeito benéfico aos pacientes”, destaca o diretor técnico. Ele conta que os três tiveram taquicardia e um arritmia algumas horas após receberem a nebulização. Dois deles já estavam em estado grave geral, com insuficiência respiratória em ventilação mecânica, e o outro encontrava-se estável, recebendo oxigênio por máscara, com boa evolução. 

Em nota, o hospital afirma que os indícios sugerem que o tratamento alternativo contribuiu para a piora. “Todos os casos (de óbito) apresentaram reações adversas após o procedimento. O hospital continuará com todos os esforços para atender seus pacientes, respeitando protocolos aprovados por órgãos de saúde nacionais e internacionais." O estabelecimento de saúde afirma que este tipo de terapia transcende o que é chamado de prescrição off label. “A instituição não tem experiência com este tratamento experimental, já que não há referências seguras para a aplicação, portanto, opta por não fazê-lo. Infelizmente, permitimos que, via judicial e de maneira formalizada, os pacientes que desejavam receber esta terapia, assim o fizessem”, destaca na nota.  

O Cremers recebeu denúncia do hospital sobre o caso. O Conselho diz que a denúncia, assim como todas que recebe, é tratada de forma sigilosa e já foi encaminhada à sua corregedoria para investigação. 

Pelo Ministério Público, a promotora de Justiça Fabiane Rios afirma que está apurando a conduta da médica durante todo o período em que ela trabalhou no hospital. “Recebi denúncia que apura 17 fatos em que ela teria adotado uma posição que não era pertinente a cada caso, não só em relação a tratamento de Covid-19”, relata. Não há um prazo determinado para o final da investigação. “Preciso ouvir testemunhas, a médica e verificar documentos. Se for apurado algum tipo de imperícia, o caso será encaminhado para a esfera criminal." A Polícia Civil também vai investigar o caso no hospital. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895