A doce luta de quem quer empreender

A doce luta de quem quer empreender

Afroempreendedorismo cresce no país, sobretudo entre as mulheres, mas financiamento ainda se impõe como desafio

Correio do Povo

Silvia Rosane Domingues, moradora de Alvorada, deixou para trás a realidade do trabalho doméstico em casa de família para empreender no próprio sonho

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Foi-se o tempo em que só cabiam à população negra cargos de funcionários em uma empresa ou instituição, em papéis secundários ou subalternos. O movimento atuante de empoderamento da etnia em todo o planeta, potencializado na última década, contribuiu para que, cada vez mais, negros assumam o protagonismo e se tornem empreendedores. O afroempreendedorismo, ligado majoritariamente ao universo feminino, cresce no Brasil.

Segundo dados do estudo “Empreendedorismo negro no Brasil”, realizado pela organização PretaHub, a população de pele negra no mundo dos negócios movimenta mais de R$ 1,7 trilhão de reais por ano – mais da metade, 52%, são mulheres. A afirmação do orgulho da negritude aparece na pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada entre os anos de 2015 e 2018, em que o único que cresceu foi o de pessoas que se declararam pretas ou pardas. Neste sentido, o afroempreendedorismo aparece como ferramenta para dar vazão às tendências de mercado deste grupo, tanto para clientes, quanto empresários. Neste último caso, conforme a pesquisa, a maioria dos negros que empreendem tem até 40 anos (34,7% entre 30 e 39 anos e 33,9% entre 18 e 29).

A pesquisa divide os perfis de empreendedores negros em três: engajado, quando há desejo de empreender, muitas vezes somado à vontade de exercer atividade autoafirmativa, voltada para o público afro; por necessidade, quando há dificuldade de inserção no mercado de trabalho; e vocação, familiaridade com a atividade e desejo de ser autônomo. Sudeste (40%) e Nordeste (31%) concentram maior parte dos empreendedores negros. A região Sul tem apenas 6%. É nesta restrita faixa que se encontra a confeiteira Silvia Rosane Domingues, 49 anos, que prepara sozinha as mais variadas iguarias em sua casa, em Alvorada, e as entrega com o mesmo sorriso largo que a caracteriza. Um talento que descobriu cedo. “Sempre morei em casa de família, onde minha mãe trabalhava como empregada doméstica. A dona da casa, que eu chamava de ‘Vó’ fazia muitos doces e eu ali aprendia com elas, além de comer a ‘rapinha’ nas panelas”, lembra.

Silvia desconhecia as raízes negras até os 13 anos, quando foi morar com sua mãe em um lugar só delas. Ao descobrir o mundo exterior, se viu maravilhada com a beleza da cor preta que encontrava nas ruas. “Quando saí da casa na avenida Carlos Gomes e fui para o Centro de Porto Alegre, aí vi outro mundo. A referência que eu tinha eram os cabelos lisos e compridos da neta da ‘Vó’, mas adorei o que passei a ver: me encontrei”, revela. Até então, a adolescente que provava um a cada dois docinhos que criava, ouvia que o futuro lhe reservaria apenas o emprego de babá. “Se as crianças da casa de família brigavam, alguém dizia ‘só podem ter aprendido com a negrinha!”, lembra.

Pois Silvia quis ir longe, estudou e chegou à universidade, se formando secretária-executiva bilíngue na PUCRS. Foi nessa época que aliou duas paixões. “Trabalhava em uma faculdade e levava ‘negas malucas’ para vender na cantina, onde gostaram muito. Fiquei conhecida como a ‘Senhora dos Doces’. Comecei a diversificando os produtos. Quando fui demitida, em 2019, decidi trabalhar só com isso”, conta. 

Com a pandemia, os eventos que encomendavam seus bolos artísticos escassearam, mas a confeiteira não se limitou a reclamar. Pelo contrário. “Criei os quindins de café, em setembro de 2020, e continuei com as entregas e trabalhando em casa”. Como empreendedora, ela não sentiu discriminação por ser negra, mas sabe que muitas pessoas da sua etnia têm dificuldades para começar. “Não pode ter medo e se deixar intimidar. Não acreditar que não pode chegar lá. Levanta a cabeça e vai à luta”, ensina a confeiteira que sonha, um dia, em ensinar o que sabe para outras mulheres que também desejam seguir sua doce trajetória. 

Resiliência

A perda de um cachorro em um atropelamento levou Samara Silva, 30 anos, e o noivo Levi a criarem uma pet shop especializada em proteção dos animais. O vira-lata Mandela inspirou o nome e a marca da loja, Madiba, um dos apelidos do ex-presidente da África do Sul, vencedor de um prêmio Nobel da Paz. O casal, ambos negros, aposta em uma fábrica de coleiras e outros acessórios para cães e gatos. “Estamos no início da nossa história, esperamos crescer no ramo”, confessa. Samara e Levi hoje têm outro companheiro de quatro patas, o Martin. “É por causa do Martin Luther King (líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos). Somos muito ligados à causa.” Samara enxerga oportunidade no mercado para a população negra. “Somos muito fortes, criativos e resilientes. A gente vai se adaptando durante a vida, desde situações que ocorrem na escola até quando chegamos a ter o nosso negócio. Mas podemos chegar lá, acreditando que é possível”, diz ela, hoje formada em Gestão Estratégica de Negócios.

Caminho às vezes é a única opção

Autor da dissertação “Mercado e equidade: o empreendedorismo negro no Brasil”, o mestre em Direito, Lucas Sena Silva, teve um exemplo bem-sucedido em casa. “Venho de uma família de mulheres negras fortes, aguerridas, que nunca tiveram apoio governamental para tocar os negócios, mas sempre empreenderam”, lembra. A experiência pessoal o levou a estudar o tema. “Pude perceber que, para efetivar a igualdade de oportunidades, é necessário pensar esse conceito na prática”, explica, sugerindo uma recapitulação do histórico do negro no país, desde a escravidão, para entender o contexto atual. “Mesmo após a abolição da escravatura, a mão de obra negra era desvalorizada em face do trabalho imigrante europeu branco”, explica. “Isto resultou em um processo de invisibilidade e marginação do trabalho industrial negro”, contextualiza Sena. Segundo ele, a consequência do que ele chama de “apagamento histórico”, culminou em falta de oportunidades no mundo do trabalho. “Restou o caminho da informalidade e do subemprego. A população não era vista como empreendedora, mas era obrigada a se tornar empreendedora por necessidade”, sustenta.

Instalada frente parlamentar

Foi instalada no início deste mês, na Câmara Municipal de Porto Alegre, a Frente Parlamentar do Afroempreendedorismo. A iniciativa, de autoria da vereadora Laura Sito, busca criar um ambiente favorável para surgimento de novos empreendedores negros. O coordenador da Reafro/RS, Cleiton Chiarel, avalia que a Frente representa um “pontapé inicial para a construção de uma rede com foco no desenvolvimento não apenas da economia, mas, também, das pessoas.” 


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