Mesmo com papel relevante, negros estão ausentes na história de formação do Rio Grande do Sul

Mesmo com papel relevante, negros estão ausentes na história de formação do Rio Grande do Sul

No Censo de 2010, 1,72 milhão de pessoas se diziam negras, o que representa 16,13% do total da população gaúcha

Correio do Povo

História do povo negro no Rio Grande do Sul é desconhecida

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“Ao longo da minha trajetória, e de boa parte dos negros, a gente nunca se viu de fato representado, nunca teve aquela figura negra. Nos livros de história, monumentos, eu nunca me enxerguei.” Foi assim que pessoas como o jornalista Flávio Bandeira, de 34 anos, nascido e criado em Porto Alegre, cresceram, sem ver pessoas como eles na história da sua cidade e Estado, e ouvindo durante toda a vida que o papel que lhes cabia estava longe do sucesso profissional e da possibilidade de ocupar cargos de relevância por conta da sua cor de pele. 

Essa falta de protagonismo nos livros de história, nos nomes de ruas e monumentos contraria a realidade, já que mesmo negada, a presença negra na história do Rio Grande do Sul foi fundamental para que o Estado chegasse a ser um dos mais importantes do país ainda no tempo do Império. Até hoje uma parcela significativa da população do RS se autodeclara negra. No Censo de 2010, 1,72 milhão de pessoas se diziam negras, o que representa 16,13% do total da população. Somente em Porto Alegre são 285 mil negros, ou seja, 24,18% dos habitantes da cidade. Historiadores relatam que os primeiros africanos a chegar no Estado datam de 1717, tão logo se iniciou a colonização da região. Mesmo assim, isso não garantiu que seus nomes fossem gravados em placas de bronze.

Historiadores não apontam uma data e um movimento específico no qual tenha iniciado esse apagamento da história. No entanto, alguns fatos são considerados importantes para que se entenda como os negros ficaram de fora da história oficial do Estado. Um deles é a chegada dos primeiros imigrantes europeus que desembarcaram em solo gaúcho no final do século XIX, vindos para substituir a mão de obra que deixava de ser escrava.

O historiador Jorge Euzébio de Assumpção aponta que o processo migratório seguido da invisibilidade negra seguiu uma linha ideológica. “O Rio Grande do Sul foi um dos estados mais escravagistas. Esse peso da mão de obra escravizada é sonegado ideologicamente, porque a história é ideológica também. Ela faz parte de todo esse contexto do cientificismo político, do branqueamento e também do não querer ser brasileiro como os outros. 'Somos os melhores porque no nosso sangue tem pouco sangue negro'. Isso tudo é uma ideologia de que aqui no Sul formou-se uma sociedade baseada na mão de obra livre e não escravizada.

Doutora em História, Fernanda Oliveira, vai na mesma linha do historiador, e em sua análise é possível perceber que no mito do gaúcho não cabiam outras etnias que não as europeias. “O ideal de Rio Grande do Sul se reporta ao século XIX, quando os primeiros memorialistas começam a narrar que lugar é esse, e aí vai se criar todo um mito de quem é o gaúcho, que aqui no Rio Grande do Sul não tem traços negros e indígenas, ele é um homem branco do campo. Então, a gente tem uma história oficial que vai ser construída para dizer que lugar é esse desde o século XIX, e que vai dizer que esse é um lugar branco”, aponta. Com o tempo, esse imaginário vai criar espaços de segregação seguidos de expulsão de populações negras para dar lugar aos novos habitantes brancos do Estado. Em Porto Alegre, isto está registrado ao conhecer a formação do bairro Rio Branco, hoje considerado um dos lugares nobres da cidade.

Durante o século XIX e meados do século XX, o bairro Rio Branco era chamado de Colônia Africana e abrigava uma grande parcela de alforriados e libertos após a Lei Áurea de 1888. E assim foi durante muito tempo, com a comunidade negra criando ali seu espaço de moradia e convívio social, tanto que na região foi reconhecido, já no século XXI, o primeiro quilombo urbano do país, o Quilombo dos Silva. Porém, a chegada de europeus foi aos poucos tornando a área uma região de conflito e não demorou para que o local ganhasse um novo perfil e a história dos negros que ali vivam apagada da região, tudo de uma maneira sutil.

Mas este não seria o único caso de uma população negra retirada do espaço que habitava. A criação do bairro Restinga, no Extremo-Sul de Porto Alegre, é, na visão de Assumpção, mais um capítulo dessa história de apagamento e afastamento dos negros dos olhos da cidade. “O bairro é oriundo do pessoal da Ilhota que foi expulso na década de 1960 durante a urbanização de Porto Alegre. Uma limpeza higiênica, a Ilhota foi retirada e todos foram enviados para a Restinga. Então não é à toa que o bairro tem essa grande população negra, pois ela é oriunda daqueles que estavam na Ilhota. 

Autor de “Além da Invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante o pós-abolição”, Marcus Vinicius de Freitas Rosa aponta outro momento para se entender o apagamento dos negros na Capital: a política adotada no início da Nova República, na década de 1930. Ele diz que a identidade nacional está baseada em uma ideia de miscigenação entre índios, europeus e africanos, e o Rio Grande do Sul acredita que tem uma identidade pura, o que nunca se evidenciou”, observa Rosa.

 


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