Mesmo em crise, Argentina vê migração de brasileiros crescer 80,8% em um ano

Mesmo em crise, Argentina vê migração de brasileiros crescer 80,8% em um ano

Em Buenos Aires, número passou de 41.300 para 75.000 entre 2016 e 2017

R7

Em Buenos Aires, número passou de 41.300 para 75.000 entre 2016 e 2017

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Nem mesmo o cenário de juros altos, hiperinflação e recessão econômica que se arrasta desde 2016 na Argentina foi impeditivo: no período de um ano, a migração de brasileiros para o país cresceu 80,81%, de acordo com levantamento feito pelo R7 com base em dados do Itamaraty.

Segundo os registros do órgão, em 2016 havia 46.870 brasileiros morando na Argentina. Já no final de 2017 — data da mais recente apuração —, o número saltou para 84.750.

Angela Tsatlogiannis, professora de Direito Internacional nas Faculdades Integradas Rio Branco, de São Paulo, atribui o aumento significativo da migração brasileira a uma série de fatores.

“O Brasil, infelizmente, está em uma situação bastante difícil. As pessoas estão saindo para buscar melhores condições de trabalho e estudo em lugares onde o custo de vida seja compatível com os ganhos. Há desempregados com curso superior cujo currículo pode se destacar na Argentina — que é um país geograficamente próximo onde se fala um idioma não muito diferente do nosso”, diz.

O acesso relativamente fácil às universidades argentinas, segundo Angela, também é um chamariz importante.

“Muitos brasileiros reprovados em faculdades públicas daqui buscam os cursos lá — que, muitas vezes, não exigem vestibular, apenas bom desempenho no histórico escolar. O valor do curso, somado aos custos de acomodação e alimentação, sai mais barato do que uma faculdade particular no Brasil”, completa.

A maior parte da comunidade brasileira está em Buenos Aires: são 75.000 pessoas, de acordo com o último estudo feito pelo Itamaraty. Em 2016, eram 41.300 — o aumento foi de 81,5%.

O carioca Leonardo Failde, de 34 anos, é um dos que se mudaram recentemente. Entre idas e vindas, Failde — que trabalhava como educador físico no Brasil — se estabeleceu por lá de vez em março de 2016.

“Eu sempre vinha a turismo, até que uma amiga me abriu os olhos para a possibilidade de estudar arquitetura. Com toda a crise e a violência no Brasil, além do fato de que eu havia perdido meus pais, cheguei à conclusão de que vir para cá seria uma oportunidade para recomeçar minha vida”, conta.

O objetivo de se tornar arquiteto não foi concretizado, mas o brasileiro acabou por cursar administração hoteleira em uma das escolas mais concorridas do ramo em Buenos Aires.

“Hoje, trabalho na área e ganho o equivalente a R$ 4.500,00 por mês (pouco mais de 43.000 pesos argentinos, a depender da cotação), valor que cobre minhas despesas e ainda sobra um pouco para o lazer. Fora que aqui as questões como segurança e saúde pública são, na minha opinião, dez vezes melhores do que no Brasil”, completa.


Arte/R7

Crise econômica


Em 2018, o peso argentino se desvalorizou mais de 50% em relação ao dólar. O Fundo Monetário Internacional ainda estima que a inflação argentina fique em 40,5% neste ano e o Banco Central elevou os juros para 72,8% no último dia 19. A recessão exacerbada levou a cortes em subsídios de utilidade pública que elevaram contas de serviços como energia elétrica. Na expectativa de conter a crise, o presidente Mauricio Macri fechou um acordo de US$ 57 bilhões com o FMI.

Apesar dos contratempos, o carioca Failde diz que, atualmente, não pensa em voltar — ao contrário da professora paulista Neusa Correa, de 54 anos, que se mudou para Buenos Aires há um ano e dez meses para casar com um argentino. Ela dá aulas particulares de português e sente no dia a dia os efeitos da crise econômica pela qual passa o país.


“Quando me mudei, o salário do meu marido equivalia a R$ 4.000,00. Hoje, esse valor caiu pela metade. Eu ajudo, mas ainda ganho pouco mais de 10.000 pesos argentinos — o que dá aproximadamente R$ 1.000,00. Nós já combinamos que, se a situação não melhorar em breve, é melhor retornarmos ao Brasil”, afirma Neusa.

Mercado de trabalho

A especialista Angela Tsatlogiannis recorda que nem sempre os brasileiros recém-chegados são vistos com bons olhos na Argentina.

“Já existe, tradicionalmente, essa rixa entre brasileiros e argentinos. Fora isso, eles sabem que nós vamos para lá concorrer no mercado de trabalho. Na minha percepção, quem sai daqui sem qualificação encontra grandes dificuldades. As empresas não costumam contratar brasileiros para serviços menores, que não exigem diploma. Preferem venezuelanos, bolivianos, paraguaios, que já dominam o idioma.”

Dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República da Argentina revelam que, no último trimestre, a taxa de desemprego no país subiu de 9,1% para 9,6%. Mesmo com o diploma de Direito e a carreira de uma década na advocacia, o paulistano Waldemar Lima, de 35 anos, se mantém hoje com um trabalho informal em uma agência de turismo em Buenos Aires — que lhe rende até 15 mil pesos (cerca de R$ 1.500,00) por mês.

“Eu já estava um pouco desmotivado na minha área no Brasil. Eu também tinha um pequeno comércio e era muito descontente por ter de pagar tantos impostos, tributos e taxas para manter tudo funcionando. Busquei uma mudança grande na minha vida”, relata Lima — que se mudou em março de 2018.

Ele garante que sabia sobre a crise argentina, mas isso pouco interferiu em sua decisão de mudar.

“Qualquer país do mundo tem seus problemas internos. Consigo me sustentar bem aqui porque tenho, além do trabalho, uma fonte de renda no Brasil, que é o aluguel de um antigo apartamento. Mas conheço os efeitos da recessão. Na rua vejo muitas lojas fechando, espaços ociosos, muita coisa para alugar”, acrescenta.

Fora o emprego, Waldemar faz um curso preparatório para entrar na faculdade de medicina.

Desafios futuros

Para a professora de Direito Internacional, a evasão de estudantes brasileiros para as faculdades argentinas — especialmente as de medicina — cria desafios para os alunos que pensem em retornar no futuro: “A pessoa se forma lá fora, volta, tem que revalidar o diploma, às vezes cursar dois anos de residência para se colocar no mercado. É complicado. Ir estudar na Argentina não significa necessariamente ter um currículo melhor aqui no Brasil”, aponta a especialista.

Waldemar Lima diz não saber se pretende voltar. “Sinceramente, é incerto. Cursar medicina é um projeto de longo prazo — são sete anos de faculdade. Hoje existe o Revalida, mas o Brasil acabou de eleger um novo presidente. Voltar vai depender da situação política.”

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