Pandemia deixa marcas em quem está por trás das máscaras

Pandemia deixa marcas em quem está por trás das máscaras

Mais de 307 mil profissionais de saúde foram infectados com o novo coronavírus

Christian Bueller

Nas Américas, dados indicam que 570 mil profissionais da saúde foram contaminados pela doença

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Quando você chega em casa de trabalho e se olha no espelho, o que você vê? Para muitos profissionais de saúde que estão na linha de frente no combate contra a Covid-19, há a sensação do dever cumprido, mas também de lamento pelas pessoas que não conseguiram se salvar. Tudo isso se mistura com a preocupação de não levar o vírus para casa e infectar alguém que ama. Dados de setembro deste ano da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde indicam que 570 mil profissionais da saúde foram contaminados pela doença nas Américas, desde o início da pandemia. Destes, 307 mil são brasileiros, a maioria na área de enfermagem, em especial, técnicos e auxiliares. Para se ter uma ideia, a enfermagem gaúcha já perdeu dez profissionais e outros 1,6 mil foram contaminados. A pandemia deixou marcas em muitos deles. Marcas que vão além dos sulcos deixados pelos elásticos das máscaras, presas por horas nas faces. Marcas impregnadas nas memórias e nos sentimentos de trabalhadores, ora aplaudidos no início da crise e, que ainda necessitam do carinho da população, mesmo que muitos entendam que a pandemia já acabou. As mortes diárias que insistem em engrossar as listas de governos no Brasil e pelo mundo provam que não.

Por conta do isolamento social que restringiu o contato entre as pessoas desde que o novo coronavírus aportou, os profissionais ainda tiveram que ficar longe de seus familiares. Foi o caso de Crislene Heerbach, 38 anos, fisioterapeuta na UTI do Hospital Conceição. Situação comum a seus colegas, está há meses longe de quem sempre foi próximo. Justamente este tipo de convívio foi o início de sua história na profissão. “Na adolescência, quando a gente escolhe para que prestaria vestibular, eu me interessava por reabilitação, especialmente desportiva. E a minha avó, na época, precisava de fisioterapia por ter tido um AVC, então eu acompanhei esse processo”, lembra. Acalentava a menina ver a recuperação de movimentos, o retorno das atividades, a volta à vida normal. “É algo que dá muita satisfação saber que a gente fez parte disso, que tem um dedinho nosso ali, sabe?”, confessa.

Os relatos da Covid-19 que vinham de outros países começaram a alertar a equipe em que Crislene trabalhava. “Ninguém tinha ideia do tamanho, proporção e do tempo que duraria. Procuramos nos capacitar, fazendo treinamentos e buscando artigos, baseados nessas experiências de fora. Tivemos um misto de ansiedade e medo”, revela. Apesar das dúvidas se os profissionais estavam preparados para um advento desse porte, havia a vontade de fazer o melhor pelos pacientes e de se manterem seguros por eles e suas famílias. “Já usávamos máscaras para atender pacientes com outros tipos de doença, mas nunca por tanto tempo. Chega a cinco horas direto, até porque tem o intervalo, mas às vezes, o turno ainda é dobrado”, lembrou. No início, era pior, segundo ela, porque o medo de pegar o novo coronavírus, obrigava a usar a máscara bem apertada no rosto, para “o vírus não vazar”. “Atualmente, temos um jeitinho, umas técnicas para ajustar, dando uma puxada aqui e ali, o que alivia um pouco. Mas tem dias que é muito sufocante”.

As lembranças boas vêm de alguns pacientes que, de fato, conseguem se reabilitar. Saem do hospital e voltam à sua vida normal ou o mais próximo disso. “Muitos deles ficam internados, por muito tempo, e a gente acaba se envolvendo muito. Ficamos sabendo das suas histórias e, muitas vezes, vira uma torcida. Como se fosse alguém conhecido”, explica Crislene, que participou dos “corredores de aplausos”. A solidão é a parte triste deste período. “Infelizmente, alguns pacientes pioram o quadro, outros vão a óbito. Não se ganha sempre. Estes pacientes que testam positivo acabam internando, isolados da família. Podem piorar, piorar e piorar. E os familiares não conseguem acompanhar esse processo visualmente”. As notícias vão e vem por telefone. “A pessoa acaba morrendo sozinha e longe de seus familiares, a verdade é essa. Embora tenha toda uma equipe ali que dá todo o suporte e o máximo de conforto a esse paciente. É a parte que mais me dói. Não é humano”, lamenta.

Vendo pessoas que vão embora sem se despedir de quem amam, Crislene ressalta a importância de se valorizar o que realmente importa. “Estar perto da família, dos amigos... poder abraçar, compartilhar. Precisamos menos de celular e mais de estarmos junto”, conta a fisioterapeuta que tem um filho de 2 anos, o Daniel.

Foto: Alina Souza

Pedido e o resgaste do cuidado

“As marcas são internas e externas, fazem parte da nossa história. Se não fossem as marcas na vida, não estaríamos tão fortalecidos e prontos para novos desafios”. A afirmação é de Andiara Cossetin, 38 anos, enfermeira no Grupo Hospitalar Conceição. Ela integrou a equipe da Central de Triagem Covid-19 do GHC) e diz que estar na linha de frente do combate à Covid-19 foi o maior desafio profissional que recebeu. “A minha história tem uma situação peculiar porque eu estava em uma área mais administrativa. Quando veio a pandemia e começaram os primeiros movimentos de ‘o que vamos fazer diante deste problema?’, eu estava em um espaço confortável, em um trabalho nais vinculado ao computador e reuniões com outros setores. Mas senti algo mais forte, de resgatar o cuidado de lá atrás e não tive dúvida”, garante.

Recém-vinda de férias, Andiara não conseguiu pensar em outra coisa: entrou em contato com a enfermeira responsável pelo hospital e falou que iria ir para a linha de frente. “Não quero deixar meus colegas sozinhas em uma situação deste tipo, não me via em outro lugar. Me sentia corajosa, estava segura. E foi bom para mim, um empoderamento, ser protagonista da nossa história profissional”. Se sentiu emocionalmente pronta para se colocar a serviço da população. “Ainda mais, trabalhando em uma instituição pública. Sinto orgulho da nossa profissão”, acrescenta. Ela diz que era enfermeira muito antes de ser de fato. “Na infância, em Cruz Alta, tinha um vínculo muito forte com a minha avó paterna, Carmelina, de cuidado, que é a missão da nossa profissão. Eu ajudava a cuidar e fazia companhia a ela. Nunca a deixava sozinha. A gente fazia rodízios, plantões, entre os netos. Ter essa prática agregada ao meu cotidiano desde criança me fez, naturalmente, escolher ser enfermeira. O cuidado como valor na minha vida”, contextualiza.

Muitas coisas marcaram e emocionaram Andiara durante esse período. Uma delas, o trabalho em equipe, a união entre o grupo. “De sair do hospital e pensar ‘que bom que posso contar com os colegas. Meu trabalho só foi ágil porque tinha os colegas da higienização o tempo inteiro, os técnicos de Enfermagem sempre junto, verificando os sinais vitais para que eu pudesse avaliar adequadamente e tomar as decisões”, saúda. Coletar de material para encaminhar o exame RT-PCR (aquele do cotonete) aos laboratórios é o momento de maior risco para contágio da Covid. Teve dias que tive que fazer mais de 130 coletas no mesmo turno. “A pandemia veio para me fazer uma profissional melhor. A questão da empatia, de se colocar no lugar do outro. Isso dava força para voltar no outro dia”, conta a enfermeira.

Em muitas situações na vida, o trabalho é tão automático que na vida profissional, às vezes, se perde isso. Mas numa pandemia, emoções se desdobram. “Vendo o desespero com que as pessoas chegavam, e muitos sintomas de medo, ansiedade, a gente precisou se colocar no lugar dessas pessoas. Muitas vezes, voltava para casa e chorava, lembrando de algumas das histórias delas. Algumas delas, pessoas com câncer, mais a Covid”, recorda Andiara. Como retorno positivo, alguns pacientes cuidados por ela telefonaram para agradecer pelo atendimento em todos os setores. “Tão gentis! Também houve quem nos ligasse para dizer que estavam levando doações de máscaras de tecido, ligações com mensagens de força e carinho. Me senti cuidada e valorizada”, conta, emocionada.

Andiara relata uma história que a marcou durante a pandemia. “Era uma mulher jovem, da minha idade, com muitos problemas de saúde. Vi no olhar dela que se sentia acolhida por mim. Ela começou a falar de sua vida e fiquei paralisada. No mesmo dia, fiquei sabendo que a noiva do meu irmão estava com o mesmo câncer desta paciente. Foi um dia pesado para mim, o mais difícil. Mas temos que encontrar forças porque eu não podia me desestabilizar emocionalmente”. Outro fator complicado é o uso da máscara por tanto tempo seguido. “Tu não respira o ar. É como se nos tirassem o que temos de mais bonito que é o sorriso”, descreve. Os sentimentos, emoções, comunicação acabam se dando pelo olhar. Outro impacto, mais específico ao universo das mulheres, tem relação com a autoestima. “É muito forte essa coisa da mulher se cuidar, usar batom. Isso ficou um pouco de lado também. Não é como era antes”, frisa.

A enfermeira acredita que a pandemia trouxe o questionamento sobre o papel das pessoas na sociedade, a missão de cada um para encarar o cenário incerto dos próximos meses. “O momento nos traz fragilidades e fortalezas. Que a gente possa agregar valor com as pessoas com quem convivemos, estar mais unidos e reclamar menos. Que se possa reinventar as formas de se relacionar. Não vai ter mais espaço para individualismo. Esperamos que o future se materialize em boas ações e atitudes”, conclui Andiara.

Foto: Alina Souza

Sem xixi e a experiência na própria pele

Quando se machucou jogando basquete pelo Grêmio Náutico União, que Andres Felipe Paim, hoje com 40 anos, se aproximou da profissão que escolheu. “Ainda estudante do Colégio Sévigné, no Centro de Porto Alegre, assisti palestras sobre o assunto. Só conhecia a fisioterapia esportiva e me aprofundei na hospitalar. Desde então, já tinha cravado que era o que eu cursaria”, relembra. Formado pela Ulbra, fez concurso para o GHC, onde trabalha há 14 anos. Para ele, o trabalho na pandemia da Covid-19 foi mais tranquilo que o surto de H1N1, de 2009. “Desta vez, os pacientes chegaram aos poucos em março deste ano, aumentando gradativamente”. Quando a doença apareceu na China e nos outros países, a equipe de Andres começou a se preparar porque logo a Covid-19 chegaria aqui. “No início, muito profissionais tinham receio de trabalhar neste setor, muitos eram do grupo de risco. Mas como o aumento de pacientes não foi de um dia para outro, de uma semana para outra, deu tempo para a equipe ser treinada e se atualizar mais do que estava acontecendo com os outros pacientes”, explica.

No entanto, em 2009, houve muitas mortes em pouco espaço de tempo. “Em 2020 também, mas se compararmos a duração das duas ocasiões, chocou mais o H1N1. Houve outros surtos, mas não tão impactantes quanto a de 2009. Achei que haveria mais óbitos da Covid-19, o que foi um ponto positivo na preparação da equipe”, lembra. Mas um fato ocorrido neste ano marcou Andres para sempre. Ele pegou a Covid-19. “Fui afastado por duas semanas. Não tive sintomas respiratórios mas, sim, gastrointestinais. Tive diarreia, vômito, febre, azia, mal estar. Eu não sabia se teria mais sintomas e pioraria. Me balançou”. Da família, somente o filho Lucas, de nove anos, testou positivo para anticorpos. O pequeno teve contato com a doença, mas sem sintomas, apenas um dia de tosse, sem febre. “Estamos acostumados a situações de UTI, mas quando passamos para o outro lado, e nos tornamos doentes, não é fácil. A gente conhece as consequências, sabemos de todos os processos que acontecem até uma pessoa chegar neste estágio”, ressalta.

Andres também é pai de Eduarda, de seis anos, que testou negativo, assim como a esposa. Depois do afastamento de duas semanas, a perícia médica autorizou a volta, que durou uma semana. “Tive, na sequência, mais 15 dias de férias. Então deu para voltar inteiro”. Ainda ninguém bateu o martelo sobre uma segunda contaminação na mesma pessoa, mas, seguro e com anticorpos, já voltou à linha de frente. “Fico mais tranquilo porque já peguei a doença, mas as proteções e precauções continuam. A tensão do ‘não posso pegar’ diminui e o trabalho fica menos pesado psicologicamente”, reflete o fisioterapeuta.

Das sequelas pós-contágio, ficou a dificuldade de retomar os exercícios físicos. “A Covid-19 mostrou que todos somos iguais, ninguém é inatingível. Atingiu os mais favorecidos e os menos também. Claro, analisando pelo lado social, os mais pobres se contaminaram mais. Mas vi desde funcionários da higienização até os médicos, todas as categorias no hospital, pegaram o vírus”, frisa Andres. O uso de EPIs é necessário, mas quem está na área de isolamento sente mais porque a máscara aperta. Isso, sem falar no face shield, dois jalecos e mais a roupa, segundo ele, que passou poucas e boas. “ Particularmente, o pior é ficar muito tempo sem ir ao banheiro: ficamos praticamente um turno inteiro dentro da unidade, então tento me hidratar somente depois do trabalho. Procuro não tomar muito líquido antes de começar o expediente”.

Andres acredita que o brasileiro tem muita dificuldade com a prevenção por pensar nas consequências depois do problema acontecer. “Se tivéssemos mais consciência e educação, não só sobre a Covid-19, mas também em relação a diabetes, hipertensão e outras doenças, não precisaríamos correr tanto atrás de leitos de UTI, de profissionais e de um aparato para tratar esses doenças”, opina.

Médica, mãe e psicóloga

Desde muito pequena, a médica intensivista Juliana Cao pensava em exercer essa profissão. Fez faculdade, residência em clínica médica e, quando passou no estágio na UTI, se identificou com o trabalho feito no setor. Aos 37 anos, atua há onze só em terapia intensiva. Quando a pandemia chegou, ela e os colegas do Hospital Conceição perceberam que seria diferente de tudo o que já tinham visto. Os pacientes que se dirigem para a instituição costumam ser delicados, mas a gravidade dos casos de pessoas contaminadas por Covid-19 a impressionou.

“A quantidade de pacientes do novo coronavírus é mais ou menos a mesma que já vínhamos atendendo antes. Em torno de sete a oito por turno. Mas é uma rotina mais demorada: tem toda a paramentação, então levamos muito tempo nos vestindo e higienizando”, conta Juliana. No início, o processo era ainda mais devagar, até a equipe se adaptar a todo protocolo. “Demanda mais tempo porque as ventilações mecânicas neste caso são mais difícil de ajeitar. Sem falar que é um trabalho tenso, a gente fica muito focado e acaba sendo desgastante por tudo: por receio, por querer ajudá-los”, explica. Quanto às máscaras, no início era mais complicado utilizar por tantas horas seguidas. “Uma machuca um pouco mais outa menos, mas te digo: a gente tem que chegar lá e fazer o trabalho, que é atender aqueles pacientes. Dar atenção e ajudá-los da melhor forma possível. Eu meio que esqueço da máscara. Fico tão segura que já nem me incomoda mais”, garante Juliana.

Isso tudo acabou afetando a rotina em casa. “Há toda uma modificação, crianças sem escola. Quando chego em casa, faço toda a rotina de me higienizar e vou direto para o banho”. Em seguida, a médica fica com filhas, Carolina, 5 anos, e Mariana, de 2 anos, para ajudar com as atividades escolares. “Não tem como não se preocupar com as crianças, mesmo sabendo que não o grupo de maior risco, não estão livres de se infectar, né?”, pondera. Pensar na sua família é lembrar dos parentes de quem ficou internado no hospital. A médica não consegue esquecer dos contatos telefônicos que testemunhou. “Honestamente, é bem impactante ouvi-los nas conversas com pais, mães, irmãos. As angústias, os medos, as tristezas. E eles também nos contam outros problemas. Fico feliz de ajudá-los de alguma forma”.

Não que, antes, não houvesse toda uma preocupação, mas no momento em que pacientes e profissionais da saúde passam pela mesma situação de distanciamento, ambos os lados ficam mais sensibilizados. “Um fator positivo são as altas dos pacientes, quando conseguimos extubá-los. Acompanhamos quando saem da UTI e ficamos sabendo, em seguida, que foram para casa. É recompensador porque vemos que deu certo, que fizemos o melhor que podíamos”, relata Juliana.

A médica conta um caso de uma jovem paciente de 28 anos que tinha tido uma bebê recentemente. Ela internou quando a criança estava com quatro meses de vida. “Foi muito demorado. Ela precisou ser pronada (procedimento em que o paciente é colocado de bruços para permitir que os pulmões se expandam novamente) muitas vezes. A ventilação mecânica era muito pesada. Foram vários dias de muito trabalho até que conseguiu ser extubada”. Em determinado momento, veio o pedido insperado. “Quando intubada ela pediu que não a deixasse morrer porque tinha uma bebê para cuidar. Ainda mais para mim que também sou mãe, fiquei muito feliz por ela ter saído bem”, relembra.

Juliana soma duas importantes lições aprendidas durante a pandemia. “Lição na minha profissão: pude reforçar a importância que já dava ao trabalho em equipe. Ter ao meu lado profissionais que são meus amigos e que tem os mesmos objetivos em ajudar faz toda diferença e me motiva a continuar”. Ela pretende manter o foco e fazer o melhor que pode por seus pacientes. Com otimismo, mesmo sem saber quando isso vai terminar. “No lado pessoal, a lição é saber a importância de manter a união e a serenidade, aprendendo todo dia a ser mais tolerante”, conclui.

Aprendizados de 2009 e duas Natálias

Por influência dos pais, cirurgiões dentistas, Natália Maia, assim como a irmã, ingressou na área da saúde. Ela escolheu a fisioterapia, mesma profissão do marido, Guilherme. Formada há 14 anos, trabalha há 13 na UTI adulto do Hospital Conceição. Assim como os colegas entrevistados, faz um paralelo da pandemia atual com a de H1N1, de onze anos atrás. Naquela ocasião, a doença exigia de dez a doze leitos, não mais do que isso. A UTI atual tinha 25, para se ter uma ideia. “O trabalho foi exaustivo, claro. Me lembro de pacientes extremamente graves que chegavam de manhã e, à noite, faleciam. Inclusive, jovens. Mas o universo em torno da Covid-19 é bem mais grave”, afirma.

Natália lista outras diferenças entre as duas ocasiões. Naquela vez, por exemplo, não se falava na possibilidade de a cidade entrar em lockdown, um debate constante durante 2020. “As escolas não fecharam e nem teve restrição de comércio como agora. Além disso, não houve uma repercussão política associada, como foi agora”, acrescenta. A carga de trabalho também aumentou de lá para cá. Até o início do ano, a UTI do Conceição era composta por quatro áreas com, ao todo, 59 leitos. Hoje, são seis áreas e 75 leitos, sendo 45 para atender Covid-19. “É raro ter um leito vago, se fica é por algumas horas. O que assustava muito lá em 2009, já era esperado neste ano”. A fisioterapeuta diz que o maior medo dos profissionais da saúde em 2020 não era a gravidade dos pacientes em si, mas, sim, de o sistema colapsar. “Imagina se algumas pessoas ficassem sem leito e os médicos tivessem que aplicar a ‘escolha de Sofia’. Graças a Deus, em Porto Alegre, passamos dessa fase. As UTIs estão cheias, mas até este momento, a situação está sob controle”.

O que mais pesou na pandemia da Covid-19 vivida pela profissional é que, em 2009, a Natália não era mãe. Agora, a fisioterapeuta Natália é mãe de Tomás (de três anos) e Antonella (dois anos). Definitivamente, foi a maior diferença entre as duas pandemias. “Hoje, eu entro na UTI pensando o tempo todo que eu tenho que me cuidar, que eu não posso me contaminar porque vou chegar em casa e tem duas pessoas me esperando. Vão vir correndo me abraçar. Mas eles sabem que não pode porque a mamãe e o papai entram em casa ‘sujos’ precisam tomar banho”. Ela e o marido, que trabalham no mesmo hospital, mas em horários diferentes, se revezam para cuidar dos pequenos.

Muitos dos pacientes que Natália atendeu vieram a falecer. Ela presenciou, inclusive, dois colegas técnicos de Enfermagem morrerem na UTI. Mas também outros colegas que se internaram em estado gravíssimo tiveram alta. Em função da maternidade recente, ela se apega às pacientes puérperas (que deram à luz há bem pouco tempo). Ela cita três casos em especial. “O primeiro que me lembro é de uma moça de 29 anos que tinha uma bebezinha de quatro meses. Estava em casa desde que a nenê nasceu e acabou pegando a Covid-19 do esposo, que estava trabalhando”. Esta paciente foi entubada em estado gravíssimo mas o tratamento deu uma guinada surpreendente e teve alta.

Já, outro caso deixou Natália extremamente chateada. “Uma paciente internada há 30 dias, jovem, 32 anos, veio a falecer com dois filhos pequenos, uma de três meses e um filho de 6 anos. O que mais choca é que o mais velho não conseguiu dar tchau para essa mãe”. Por conta das medidas de precaução contra a propagação da Covid-19, o mais velho não teve o direito da despedida. “Como explica para uma criança que, em um dia, a mãe vai para o hospital ganhar a irmãzinha, não sai do hospital, meses depois piora, vem a morrer e essa criança não viu mais a mãe? Algo que não dá nem para imaginar”, lamenta. Há, ainda, um terceiro caso, que a equipe de Natália chama de “sobrevivente”. “Uma mulher, internada em 2009 por H1N1, também pegou Covid e se internou novamente. Mas está bem, os colegas até fizeram uma videochamada para ela poder ver filhos e netos. Temos histórias ruins, mas também desfechos positivos, que é onde temos que nos apegar”, ressalta.

Natália não lembra de ter ficado tão incomodada com a máscara em 2009 como ficou agora. “O que acontece com as marcas é que, como trabalho à noite, e por vezes, por conta da escala, já estou no hospital na manhã seguinte, eu chego ainda com as marcas do dia anterior. Ao fim desde praticamente turno seguido, o rosto fica bem inchado. Mas sabemos que é necessário e dá para sobreviver”, resigna-se.

O pequeno Tomás já entendeu a logística do trabalho dos pais fisioterapeutas. “Ele diz ‘mamãe, quem vai trabalhar de manhã e quem vai de noite?” e “quem está de plantão no final de semana?’”. Para Natália, a lição que fica é que as pessoas precisam aproveitar mais as famílias. “Dar valor às aglomerações de família, dar valor às visitas aos avós. Não vejo a minha avó desde março. Tenho uma clínica de fisioterapia que decidi suspender todos os atendimentos”. As pessoas precisam “abusar do bom senso e da tolerância”, segundo a profissional. “Ficar brigando por causa de pontos de vistas diferentes não leva a nada. Nós, como cidadãos, temos que seguir mantendo o distanciamento social e tomar os cuidados, como o uso das máscaras”, orienta. Como ela diz, “as pessoas precisam aprender a viver o hoje. Porque não vivemos nem o ontem e nem o amanhã”.


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