Sem perspectiva de voltar, brasileiros tripulantes de cruzeiros sofrem dificuldades em alto mar

Sem perspectiva de voltar, brasileiros tripulantes de cruzeiros sofrem dificuldades em alto mar

Empresas responsáveis pelos navios não apresentam previsões para o retorno dos funcionários

Nicholas Lyra

Isolados em navios, tripulantes aguardam há dois meses para retornar para casa

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Muitos brasileiros enfrentaram dificuldades com fechamentos de fronteiras pelo mundo durante a crise da Covid-19. Espalhados pelos oceanos, funcionários de cruzeiros vivem além de tudo, o drama da incerteza em relação ao retorno para casa, envolvidos num cotidiano quase sem ter como se distrair e com tempo limitado para ver o sol. Alguns tripulantes esperam há mais de dois meses nas águas de Miami, nos Estados Unidos, apor definições.

Brasileiros que não podem desembarcar nos Estados Unidos não vão à terra firme e ainda não sabem se terão o retorno ao país por vias aéreas, já que não há  comerciais, ou se terão de navegar novamente até a América do Sul. A indefinição e o isolamento forçado provocam inclusive situações extremas, inclusive casos em que os tripulantes não recebem mais salários.

A brasileira Myrella Allgayer, funcionária da Oceania Cruises, operada pela Norwegian Cruise Line, uma das empresas operadoras de navio de cruzeiro com sede em Miami, além de "ilhada" há dois meses, já passou por três navios.

Segundo ela, apenas trabalhadores essenciais para o funcionamento do navio seguem trabalhando. Está sem função desde a primeira troca de navio. Nesta semana, a companhia concedeu dez dólares de crédito para compras de navio, que variam desde bebidas até itens de higiene pessoal.

Conforme o relato, a preocupação começou quando a Covid-19 se espalhou por países asiáticos, como Filipinas, Japão, Indonésia e Tailândia, nacionalidades com mais tripulantes a bordo. Quando a pandemia atingiu a Europa, a apreensão começou a se instalar. Até então realizando cruzeiros no Caribe, havia a expectativa de navegar para o continente em abril, por conta da proximidade do verão e da temporada de cruzeiros no Hemisfério Norte. No entanto, isso nunca aconteceu. 

Rotina alterada 

A partir daí, com o fechamento dos portos italianos, a situação passou a mudar rapidamente, dia após dia. As reuniões eram constantes, e as mudanças, bruscas. “Os passageiros começaram a cancelar as viagens”, explica. No dia 10 de março, houve uma última tentativa de cruzeiro, ainda pelo Caribe, mas que durou apenas dois dias. A empresa não conseguiu atracar em Porto Rico, e o capitão do navio anunciou que, por decisão do governo dos Estados Unidos, todas as companhias deveriam encerrar as atividades. 

Então, um primeiro retorno a Miami, e depois volta ao Caribe, onde o navio permaneceu um mês no porto de Bahamas. Alguns asiáticos desembarcaram e, depois de um mês, novo retorno a Miami, desta vez em definitivo. 

Já nos Estados Unidos, nos primeiros dias foram adotadas medidas rígidas para evitar uma eventual disseminação de Covid-19 no navio. Qualquer pessoa com sintoma de gripe era isolada imediatamente, em uma parte reservada do navio. Também houve isolamento total por algum tempo, com os tripulantes permanecendo em cabines, saindo apenas para fazer refeições ou trabalhar. “Nos deram apenas um horário, divididos por departamentos, para fazer as refeições e ver o sol”, comenta.

Nos momentos mais rígidos enfrentados pela tripulação, apenas quem trabalhava podia deixar as cabines. Ela destaca que, neste período, a agenda mudava conforme os turnos trabalhados. Funcionária do restaurante, a rotina resumia em cumprir o expediente e retornar ao quarto. “Para quem não trabalhava mais, era só dentro da cabine, esperando o tempo passar”, explica.

De acordo com ela, não havia muito o que fazer neste tempo livre. A internet, normalmente cobrada para a tripulação ter acesso, foi liberada. Enquanto não estava trabalhando, tentava se distrair assistindo TV. Quando liberada para sair ao ar livre, com tempo já estipulado, caminhava ou corria. “Tentava me manter ativa, para o tédio não me enlouquecer”, comenta.

Então, veio a primeira transferência de navio. E, com ela, a expectativa de finalmente retornar ao Brasil. No entanto, mais uma vez, nada aconteceu. Antes de ser transferida ao terceiro navio, onde encontra-se atualmente com outros brasileiros e latino-americanos, quase não houve desembarques. “Os dias eram absurdamente iguais”, lamenta-se.

Expectativa para o retorno

O governo dos Estados Unidos, juntamente com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão de regulamentação sanitária do país, estabeleceu uma série de normas para os tripulantes. Eles não puderam desembarcar para pegar voos comerciais (também em função da restrição e dos cancelamentos de diversas companhias). 

Só poderiam deixar os Estados Unidos em voos fretados, e sem utilizar os espaços do aeroporto. Caso houvesse a possibilidade, deveriam sair do navio e entrar em um transporte que deixaria já na pista, embarcando diretamente no avião para retornar aos seus países de origem. “Por isso, a gente ficou completamente dependente dos voos fretados”, explica.

No entanto, segundo ela, os voos “nunca aconteciam”. Por uma vez, houve um rumor de retorno, algo que não se confirmou. Cidadãos hondurenhos tiveram seu voo cancelado às vésperas e, aos poucos, várias companhias desistiram de fazer o voo fretado. 

De acordo com ela, uma das poucas repatriações feitas nesses dois meses ocorreu em um voo para cidadãos argentinos. No entanto, não houve informação se a repatriação foi feita pela companhia ou se partiu de ações coordenadas pelo governo do presidente Alberto Fernández. “Foi um dos únicos que vi acontecer”, explica.

No momento, Myrella encontra-se no terceiro navio nos últimos dois meses. Está com outros brasileiros e latinos, na expectativa de um voo fretado ou de navegar novamente até a América do Sul. “Agora é para ter um voo pra gente. Ainda estão tentando”, resume.

O que diz a empresa

Procurada, a empresa Norwegian Cruise Line Holdings no Brasil, que responde pela Oceania, manifestou-se em nota. No texto, destaca que a empresa se adaptou “para enfrentar situações nunca antes experimentadas”, com a pandemia de Covid-19. Frisa, ainda, que a equipe vai continuar a trabalhar com o objetivo de proporcionar uma viagem segura à tripulação. “Procuramos estabilizar nossa frota ao redor do mundo para ajudar a trazer nossos tripulantes para casa com segurança”, encerra.

Questionada diretamente sobre a promessa de voos e tentativas de repatriar os tripulantes em prazos estabelecidos, a empresa destacou que não tinha “nenhuma outra informação disponível”. 

De acordo com Myrella, a empresa “diz muito pouco” à tripulação. No início, a companhia encaminhou cartas mas, segundo ela, respostas de praxe “não diziam o que queríamos saber”. A tripulação pode receber avisos conforme o navio e o comandante em que está. Esses boletins costumam acontecer de dois em dois dias. “Há ainda a opção de procurar o escritório de recursos humanos, mas raramente há atualizações concretas”, lamenta-se.

O Itamaraty também foi procurado para esclarecer situações referentes a possíveis repatriações de brasileiros. No entanto, até a publicação desta matéria, não houve qualquer retorno do governo Federal.


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