Cientista-chefe da OMS critica desigualdade na vacinação anticovid

Cientista-chefe da OMS critica desigualdade na vacinação anticovid

Até o momento, apenas 0,3% de todas as doses administradas no mundo foram injetadas nos países pobres

AFP

Para Soumya Swaminathan, uma das lições da pandemia é que "a educação científica e sanitária é verdadeiramente importante"

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Há 20 anos, Soumya Swaminathan acompanhou as mortes, que em muitos casos poderiam ser evitadas, de seus pacientes infectados pelo HIV. Os medicamentos para salvá-los existiam, mas eles não tinham os recursos para pagar pelos remédios. "Eu tive pacientes que assisti às mortes... Mortes horríveis, prolongadas, quando os tratamentos já estavam disponíveis no Ocidente", recorda a cientista-chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS) em uma entrevista à AFP.

A preocupação com o acesso às vacinas anticovid-19 despertou na médica as recordações dolorosas do fim dos anos 1990 na Índia. "Perdi muitos pacientes, e muitas crianças acabaram órfãs. Imagens que continuam me atormentando", relata esta pediatra e cientista indiana, de 62 anos.

Os tratamentos eficazes para as pessoas com HIV foram apresentados em meados dos anos 1990, mas eram muito caros para os países pobres. Após quase uma década de esforços coordenados, os medicamento se tornaram acessíveis.

A pediatra, atualmente um dos principais nomes da luta contra a pandemia da covid-19 na OMS, considera decepcionante a repetição dos mesmos erros. "Temos que aprender com a história, mas parece que isto não acontece", destaca. Até o momento, apenas 0,3% de todas as doses de vacinas anticovid administradas no mundo foram injetadas nos países pobres, nações que, no entanto, representam 10% da população mundial.

"Isto é algo que é muito difícil de assistir, moralmente e do ponto de vista ético. É inaceitável", declarou, taxativa, a doutora Swaminathan. Resultado de um esforço internacional, o sistema Covax foi criado com o objetivo de lutar contra as desigualdades no acesso às vacinas. Mas os países ricos, pressionados pela opinião pública, reservaram a maior parte das doses disponíveis com a promessa de vacinar o maior número possível de pessoas.

Ao mesmo tempo, o sistema Covax, sem recursos suficientes e sem as vacinas que o governo indiano decidiu desviar para combater a explosão de casos de coronavírus em seu território, conseguiu cumprir apenas uma pequena parte de seu objetivo: vacinar 20% da população de todos os países participantes até o fim do ano. Apesar dos problemas, a cientista espera que o Covax consiga terminar com sucesso.

"Extremamente difícil"

Os primeiros meses da pandemia foram "extremamente difíceis", admite Soumya Swaminathan, cujo papel de cientista-chefe representou um "enorme senso de responsabilidade". Ela é a primeira pessoa que ocupa o cargo e, para desenvolver o trabalho, mudou-se da Índia para Genebra, deixando a família em seu país, onde os casos de Covid-19 dispararam nas últimas semanas.

"Em um canto de seu cérebro você se preocupa com sua família, sobretudo os parentes mais idosos", comenta. Seu pai, M.S. Swaminathan, um geneticista considerado o precursor da revolução verde na Índia, tem 95 anos, e sua mãe, Mina, uma renomada pedagoga, 88. Para evitar o estresse do trabalho, ela tenta manter um equilíbrio entre a vida privada e a vida profissional, apesar das longas jornadas de trabalho, que começam às 7h e prosseguem até a noite.

"Teorias da conspiração" 

Caminhar por Genebra ajuda, ela confessa. "A natureza é terapêutica para mim". Um alívio bem-vindo quando ela e sua equipe tentavam compreender um vírus de consequências até então desconhecidas para os humanos. "Estávamos construindo o navio e navegando, como dizem, e isso é sempre estressante", admite.

"Há dias em que você se sente terrivelmente deprimida, triste e chateada, especialmente quando vê as imagens de pessoas impactadas ao redor do mundo, os profissionais de saúde que morreram, meus próprios colegas e companheiros de classe que perdi", conta, embora também revele que, em alguns dias, sente-se "mais otimista".

Uma de suas maiores fontes de frustração procede dos ataques constantes do "movimento anticiência". "Não são apenas os céticos, também há pessoas que divulgam deliberadamente teorias da conspiração", critica. "Devemos combater a desinformação e as teorias da conspiração, tentando apresentar recomendações de saúde pública baseada em fatos", frisou.

"Infelizmente, quando você enfrenta um novo vírus e uma nova epidemia, não sabe tudo o que deve saber desde o primeiro dia", lamenta a cientista. Para ela, uma das lições da pandemia é que "a educação científica e sanitária é verdadeiramente importante".

 

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