Guatemala vai votar lei que anistia crimes de guerra

Guatemala vai votar lei que anistia crimes de guerra

Proposta liberta criminosos condenados por assassinatos extrajudiciais e tortura durante conflito armado que assolou o país entre 1960 e 1996

Eric Raupp

Guerra Civil da Guatemala deixou mais de 200 mil mortos e desaparecidos entre 1960 e 1996

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Em meio a uma crise constitucional, a Guatemala está perto de dar mais um passo atrás na garantia dos Direitos Humanos. Criminosos de guerra condenados por execuções extrajudiciais, tortura e escravidão sexual poderão em breve sair impunes e permanecer em liberdade se os legisladores sancionarem uma anistia geral para os crimes cometidos durante o conflito armado que assolou o país durante 36 anos e deixou mais de 200 mil mortos ou desaparecidos — entre 1960 e 1996, a nação latina esteve imersa em uma sangrenta guerra interna que colocou o exército em combate contra grupos guerrilheiros. O Congresso votará esta semana para modificar a Lei de Reconciliação Nacional, assinada ao final do evento histórico, e dar absoluta impunidade aos crimes contra a humanidade, incluindo genocídio, estupro e desaparecimento de pessoas, sejam eles guerrilheiros ou militares.

A nova iniciativa é apoiada por generais reformados enfurecidos por uma onda de condenações recentes pelos tribunais nacionais, que obtiveram maior autonomia nos últimos anos. Os criminosos que se beneficiariam da anistia incluem generais de alto escalão do período mais sangrento da guerra de contrainsurgência, quando comunidades indígenas rurais e ativistas sociais urbanos foram perseguidos. Sob os termos da legislação proposta, todos os condenados sairiam livres dentro de 24 horas da promulgação. Vários outros que estão na prisão aguardando julgamento também seriam libertados. A votação ocorre com o presidente Jimmy Morales, apoiado por uma poderosa rede de elites militares e econômicos, condenado internacionalmente pelo seu regime totalitário que busca derrubar sabotar o tribunal constitucional.

Para que uma lei seja aprovada na Guatemala, ela deve passar por três sessões legislativas. O projeto de lei é discutido nas duas primeiras sessões, e na terceira sessão as emendas podem ser introduzidas e uma votação final é feita. Se uma simples maioria aprovar o projeto, ele será encaminhado ao Executivo para aprovação e promulgação. A argumentação dos defensores da Anistia é de que os promotores atacaram injustamente as forças de segurança ao invés das “guerrilhas esquerdistas”. Contudo, 93% das violações dos Direitos Humanos foram cometidas por forças do governo apoiadas pelos Estados Unidos, em comparação com 3% por grupos guerrilheiros, segundo a Comissão de Clarificação Histórica do pós-guerra.

A lei atual isenta crimes políticos e é considerada um marco para a justiça do pós-guerra desde que entrou em vigor ao longo dos acordos de paz de 1996. Entretanto, o poder continuado dos militares e a fraqueza das instituições jurídicas significavam que as autoridades judiciais eram reticentes em investigar criminalmente os crimes cometidos no período. Apenas alguns casos de alto perfil, incluindo o assassinato, em 1990, da antropóloga Myrna Mack chegaram ao tribunal. Diante dessa impunidade institucionalizada, associações de vítimas e seus aliados na sociedade civil persistiram em suas demandas por responsabilidade, coletando evidências para documentar graves violações de direitos humanos, incluindo depoimentos de testemunhas, provas físicas e documentos oficiais.

À luz da omissão dos tribunais internos, elas também começaram a pressionar suas reivindicações por verdade e justiça perante os tribunais regionais e internacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado da Guatemala em 27 casos, e ordenou às autoridades que investigassem, processassem e punissem os responsáveis por esses crimes. Enquanto essa pressão externa aumentava, as instituições legais da Guatemala estavam mudando. Uma nova liderança na Procuradoria-Geral da República afirmou a necessidade de investigações independentes sobre crimes do passado. A Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), patrocinada pela ONU, contribuiu para o fortalecimento da autonomia dos promotores e juízes.

Entre 2008 e 2018, os tribunais guatemaltecos proferiram 16 sentenças em casos de crimes graves, condenado 30 ex-oficiais, comissários militares e ex-membros da patrulha de defesa civil, por tortura, desaparecimentos, execuções extrajudiciais, e agravada violência sexual e escravidão sexual e doméstica. Os primeiros casos que chegaram a julgamento se concentraram principalmente em oficiais de baixa patente durante a guerra. Mas o ímpeto se deslocou para a acusação de militares do alto escalão.

O mais notável foi o julgamento de 2013 contra o ex-ditador General Efraín Ríos Montt, considerado culpado de genocídio e crimes contra a humanidade contra a população Maya Ixil e sentenciado a 80 anos de prisão, e seu chefe de inteligência militar, General José Mauricio Rodríguez Sánchez, que foi absolvido. Dez dias após a sentença, sob intensa pressão das elites empresariais e dos setores militares, o Tribunal Constitucional decidiu, em decisão dividida, suspender parcialmente o processo, desocupando o veredito e forçando um novo julgamento. Ríos Montt morreu em abril de 2018 em meio ao seu novo julgamento. Sánchez foi absolvido pela segunda vez em outubro do ano passado, embora o tribunal tenha concluído por unanimidade que o Exército da Guatemala cometeu genocídio contra os Maya Ixil.

Fermín Solano, de 60 anos, conhecido durante a guerra guatemalteca como tenente David, tornou-se o primeiro líder guerrilheiro guatemalteco a ser condenado por crimes cometidos durante o conflito armado que sangrou o país entre 1960 e 1996. Em 2014, o Tribunal de Condenação de Chimaltenango, cidade localizada a 60 quilômetros a oeste da capital, o condenou a 90 anos de prisão, 60 deles por assassinato de forma contínua e 30 por crimes contra a humanidade. Ele foi considerado culpado pelo chamado Massacre de El Aguacate, ocorrido na aldeia de El Aguacate, município de San Andrés Itzapa, Chimaltenango, entre 22 e 25 de novembro de 1988.

A polêmica lei

O Projeto de Lei 5377, inicialmente introduzido em novembro de 2017 pelo congressista Fernando Linares Beltranena, visa alterar a Lei da Reconciliação Nacional, aprovada pelo Congresso em dezembro de 1996, no contexto dos acordos de paz intermediados pela ONU. Essa lei prevê anistia para crimes políticos, mas exclui explicitamente a possibilidade de anistia para crimes internacionais, incluindo genocídio, tortura e outros crimes contra a humanidade. A proposta de reforma assinada por 12 outros membros procura eliminar essa exclusão com base no argumento de que “para alcançar a verdadeira paz e a reconciliação deve haver uma anistia geral para todos os atores do conflito armado”. Dessa forma, estabeleceria a extinção total da responsabilidade criminal em casos relacionados ao conflito armado interno, bem como a aplicação do princípio da não retroatividade da lei em qualquer um desses casos.

Conforme o International Justice Monitor, o projeto alega que o desequilíbrio nas acusações contra oficiais militares e contra ex-guerrilheiros é prova de que a acusação de casos de crimes graves constitui “uma forma de assédio judicial de apenas um dos atores do conflito, os militares”. O projeto também acusa “ativistas de Direitos Humanos” de tentarem estender o crime de genocídio a “ideologias e militância política”. Beltranena tem sido um forte opositor da CICIG e dos esforços de combate à corrupção e investigações apontam que ele tem ligações estreitas com altos oficiais militares aposentados que estavam ativos durante os anos de contrainsurgência. De acordo com o jornal El Periódico, o congressista representou Luis Francisco Ortega Menaldo, um ex-oficial de inteligência militar relacionado a Manuel Callejas y Callejas – fundador da rede de crime organizado Cofradía – e um dos quatro oficiais militares que foram condenados em 2018.

Outros legisladores que apoiam a iniciativa são aliados próximos de Otto Pérez Molina, o ex-presidente que em 2015 foi forçado a deixar o cargo e que atualmente está sendo julgado por corrupção. Depois que o projeto foi apresentado, ele foi enviado para revisão em janeiro de 2018 a duas comissões, a Comissão de Legislação e Assuntos Constitucionais e a Comissão de Direitos Humanos. Cada um foi encarregado de preparar um relatório recomendando aprovação ou rejeição.

Em junho de 2018, a Comissão de Legislação e Assuntos Constitucionais, presidida por Beltranena, recomendou a aprovação da lei. A Comissão de Direitos Humanos, no entanto, decidiu pela rejeição, afirmando que ele violava a lei internacional e representaria um sério revés para as vítimas do conflito. A legislação proposta não foi votada até agora. O país balança à beira de um colapso constitucional, enquanto o Executivo se recusa a sustentar uma decisão do Tribunal Constitucional que bloqueia a decisão do presidente de encerrar a CICIG e a Suprema Corte decidiu adiantar os processos de impeachment contra os magistrados do Tribunal Constitucional.

"Retrocesso dramático"

A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, considera que a medida vai "reabrir velhas feridas e destruir a confiança das vítimas no Estado e suas instituições". "A Lei de Reconciliação Nacional, em seu conteúdo atual, tem sido a base legal para os julgamentos históricos dos tribunais nacionais em casos relacionados a graves violações de Direitos Humanos cometidas durante o conflito armado interno", defendeu em um comunicado. Ela ressaltou que, se o novo projeto de lei for aprovada, representaria “um retrocesso dramático”, tanto para o Estado de direito quanto pelos direitos das vítimas.


Sentimento de impunidade vai prevalecer, afirma Bachelet | Foto: Johán Ordóñez / AFP / CP

Bachelet, ex-presidente da República do Chile, considera que isso que poderia "levar a retaliações contra vítimas, testemunhas, juízes, procuradores, advogados e organizações, que, em seu dia a dia, promoveram a justiça por crimes cometidos no passado". De acordo com um comunicado do Escritório do Alto Comissariado, em 17 de janeiro, o Congresso guatemalteco aprovou a emenda da lei em primeira leitura, apesar da decisão contrária à sua própria Comissão de Direitos Humanos. Para alcançar seu processamento, o projeto deve ser discutido em três leituras e depois aprovado artigo por artigo.

"Este é um novo desenvolvimento alarmante que, se confirmado, atrasaria o país em décadas. Anistias nunca podem ser aplicadas a genocídios e crimes contra a humanidade", disse Sebastian Elgueta, pesquisador da Anistia Internacional na Guatemala. "Com tal decisão, as autoridades destruiriam, com uma assinatura, décadas de progresso quando se trata de justiça para as dezenas de milhares de pessoas que morreram e desapareceram durante os anos sombrios do conflito". Ele lembrou que qualquer esperança de justiça para as mais de cinco mil crianças desaparecidas durante a guerra seria esmagada, assim como anularia as sentenças proferidas em uma sentença histórica de 2016 contra dois oficiais condenados por escravizar sexualmente 15 mulheres Mayan Q'eqchi na aldeia de Sepur Zarco depois que seus maridos camponeses foram mortos.


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