Nada será como antes: um ano e meio depois do primeiro caso de Covid-19 no Rio Grande do Sul

Nada será como antes: um ano e meio depois do primeiro caso de Covid-19 no Rio Grande do Sul

Dez de março de 2020 foi um marco simbólico da história do coronavírus no Estado

André Malinoski

UTI Covid-19 no Hospital Conceição.

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O dia 10 de março de 2020 mudou para sempre a vida das pessoas no Rio Grande do Sul. Naquela data, uma terça-feira, foi confirmado o primeiro caso de contaminação pelo coronavírus no Estado. O homem, de 60 anos, residente de Campo Bom, inaugurou uma estatística que ultrapassa atualmente 1,4 milhão de casos confirmados, conforme dados atualizados do governo estadual no Painel Coronavírus RS.

“Por ser epidemiologista, muito antes do primeiro caso, eu sabia que era questão de tempo para o vírus chegar. Minha dúvida sempre foi quando a situação sairia de controle”, contou a diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), Cynthia Molina Bastos, que na época atuava como médica de família na atenção primária no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. “O meu temor era ver corpos sendo largados na rua. Outra coisa que eu não queria saber em hipótese alguma era a possibilidade de eu contaminar os meus pais", revelou.

O secretário Municipal da Saúde, Mauro Sparta, trabalhava como médico na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Moacyr Scliar quando teve início o caos. “A sensação foi de preocupação. Antes disso, quando apareceu o coronavírus na China, todos pensavam como algo distante. Mas então o vírus começou a se alastrar. As cenas dos italianos com dificuldades para respirar sendo transmitidas pela televisão me marcaram muito”, afirmou.

A Secretaria Estadual da Saúde (SES), por meio do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), tornou público o caso do primeiro gaúcho contaminado. Com histórico de viagem para Milão, na Itália, entre os dias 16 e 23 de fevereiro, a contaminação foi importada, ou seja, ainda não havia a chamada transmissão comunitária do vírus entre os gaúchos. Na ocasião, o anúncio foi feito pelo governador Eduardo Leite em coletiva de imprensa no Palácio Piratini. A vida como era mudou em um piscar de olhos. E as ruas da Capital ficaram vazias e menos alegres.

“Naquele momento estávamos com a sensação de estarmos preparados para mais uma pandemia que teria um início, meio e fim naquele mesmo ano, considerando a nossa vivência com a pandemia pelo H1N1 de 2009. Por outro lado, estávamos observando um cenário epidemiológico diferente em outros países, apontando para uma população bem definida de maior vulnerabilidade como os idosos e profissionais de saúde. Além disso, o número de mortes estava sendo maior. Com isso, fomos adequando os protocolos institucionais de acordo com as normas técnicas com maior rigor e maior detalhamento”, relatou a coordenadora do Serviço de Epidemiologia do Grupo Hospitalar Conceição, Ivana Varella.

O início de sintomas de febre e tosse no homem iniciaram em 29 de fevereiro. Primeiro o paciente se dirigiu até uma clínica particular de Novo Hamburgo, onde foi verificado quadro com sintomas leves. Após o Laboratório Central do Rio Grande do Sul (Lacen-RS) confirmar a contaminação, ele foi orientado a ficar em isolamento domiciliar até a melhora, sendo monitorado pela vigilância epidemiológica do município. Não houve necessidade de internação hospitalar. Os familiares também foram acompanhados pelas autoridades de saúde, assim como o caso confirmado até a melhora do quadro. Até aquele dia 10, haviam sido notificados 190 casos no Estado como suspeitos. Outros 103 foram descartados para o novo coronavírus e 86 ainda permaneciam em investigação.

O efeito imediato do anúncio foi o medo da população em se contaminar. Afinal, muitos sequer sabiam o que era o coronavírus e jamais tinham ouvido falar de Wuhan, cidade da China, onde tudo começou meses antes. Dessa maneira, as pessoas tinham receio até de apertar a mão de um amigo. Máscaras de proteção e o uso de álcool em gel viraram uma febre, não por modismo, mas por necessidade. Bastava um espirro em um ambiente fechado para tensionar o ambiente, especialmente em restaurantes, cinemas ou salas fechadas. Em seguida, decretos da Prefeitura de Porto Alegre começaram a regular os horários e quantas pessoas podiam frequentar o comércio. 

Os números da Covid-19 no Rio Grande do Sul são acachapantes, difíceis de definir. Além do 1,4 milhão de casos confirmados, aconteceram 34,4 mil óbitos. Para se ter uma ideia, há muitos estádios de futebol que não comportam sequer um público de 30 mil torcedores. Desse modo, pode-se dizer que mais de um estádio cheio já perdeu a vida em função do coronavírus em solo gaúcho. A primeira morte ocorreu em 24 de março de 2020. A vítima foi uma idosa de 91 anos, que estava na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Moinhos de Vento, e havia entrado na instituição um dia antes em estado gravíssimo. A SES divulgou no dia desse óbito que o Rio Grande do Sul registrava 112 casos confirmados de coronavírus. Desde então, apenas Porto Alegre teve mais de 5,5 mil vítimas fatais. A faixa etária predominante da maior parte dos mortos fica entre 70-79 anos, com quase 8,6 mil vítimas. Os homens morrem mais, com quase 4,8 mil registros. “Infelizmente, percebemos que o individualismo se mostrou o maior problema, porque as pessoas não olhavam para o coletivo. Mesmo as pessoas que viveram tudo isso só pensam de maneira egoísta em seus próprios umbigos”, lamenta Cynthia. A diretora do Cevs acredita que a experiência para todos é uma grande transformação: “Ninguém volta ao normal depois disso”.

Com as semanas e os meses avançando, os números foram crescendo gradativamente. Mas nada representa melhor a letalidade da Covid-19 do que o mês de março de 2021. Foram mais de 8,4 mil vidas perdidas em apenas um mês, segundo dados da SES. Em média, 272 vidas foram perdidas por dia, ou seja, um óbito a cada 11,3 minutos. O mês seguinte ainda registrou mais de 4,5 mil mortes. “Para o:Rio Grande do Sul o momento mais difícil e crítico foi quando houve o colapso do sistema de saúde com a necessidade de aumento abrupto de vagas de UTI em março de 2021, momento em que houve a introdução da variante P1 que surgiu em Manaus”, diz a epidemiologista Ivana Varella. Na mesma linha, o secretário Municipal da Saúde, Mauro Sparta, lembra das dificuldades de março. “Sem dúvida, aquele 25 de março foi terrível. Estávamos no período mais agudo da pandemia, com 870 pacientes internados em UTIs de Porto Alegre.”

A vacinação, que teve início em 18 de janeiro deste ano no Rio Grande do Sul, é uma importante ferramenta para que os números de contaminados e óbitos comecem a cair. Outras medidas também são necessárias. “Atualmente os cenários epidemiológicos se apresentam de acordo com a variante em circulação. A vacinação sempre foi uma das medidas mais importantes para o controle das doenças, entretanto devemos valorizar cada vez mais as medidas não farmacológicas, como uso de máscaras, higienização das mãos e o distanciamento social concomitantes. No atual cenário, com a introdução da variante delta, percebemos o quanto é importante mantermos todas estas medidas porque a transmissão desta variante do vírus ocorre tanto em não vacinados como em vacinados. Felizmente, as formas graves de doença são reduzidas com a vacina completa, com duas doses, mas o risco ainda existe, principalmente em idosos particularmente a partir de 70 anos e pacientes com comorbidades múltiplas. Nestes casos, a terceira dose está se fazendo necessária”, conclui Ivana Varella. O certo é que nada será como antes depois de tudo isso.


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