Integrantes da segurança e entidades demonstram preocupação com decreto que facilita porte de arma

Integrantes da segurança e entidades demonstram preocupação com decreto que facilita porte de arma

Maior número de armas em circulação é um dos principais temores de especialistas

Franceli Stefani

Integrantes da Segurança Pública demonstraram preocupação com decreto que facilita porte de arma

publicidade

Armar a população evitará que ela seja pega de surpresa por criminosos? O questionamento começou a ser feito depois da publicação do Decreto 9.785/2019 do presidente Jair Bolsonaro, nesta quarta-feira, no Diário Oficial da União (DOU). O documento dispõe sobre aquisição, cadastro, registro, posse, porte e comercialização de armas de fogo e munição sobre o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e o Sistema Nacional de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma). 

A nova legislação também facilita o porte de arma de fogo para políticos, advogados, oficiais de justiça, proprietários de estabelecimentos que comercializem armas de fogo ou escolas de tiro ou dirigentes de clubes, residente em área rural, jornalistas que atuem na cobertura policial, conselheiro tutelar, agente de trânsito, motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas, entre outros. Além disso, o texto altera as regras sobre importação de armas e sobre o número de cartuchos que podem ser adquiridos por ano – que passam de 50 para mil em caso de calibres restrito e cinco mil, nas de uso permitido.

De acordo com o subchefe da Polícia Civil gaúcha, delegado Fabio Motta Lopes, a ampliação do porte para pessoas que não necessitam do objeto para exercício de sua atividade profissional foi exagerada. “Se ampliou demais. Quem tem que andar armado é o agente da segurança pública. Começa a armar demais, serão mais armas nas ruas e, amanhã ou depois, vão parar nas mãos dos criminosos e podem ainda potencializar os riscos de morte em caso de alguma ocorrência”, expressa. Ele cita como exemplo um caminhoneiro autônomo, que transporta cargas para diversos lugares do país. Sozinho, está com um artefato na cintura, porém o indivíduo que planejou o ataque não está sozinho e, na maioria dos casos, com armamento pesado. “Se perceberem que a vítima está armada podem matá-lo e o que ele portava poderá parar nas mãos dos criminosos”, diz.

Lopes vai além. Em sua visão, as armas podem potencializar mortes em brigas de trânsito, desentendimentos em festas e também aumentar o número de feminicídios. “Liberar o porte para quem não tem extrema necessidade, sou contrário, vai do lado oposto ao que estabelece o Estatuto do Desarmamento, que vedava para particulares. O texto amplia consideravelmente as exceções”, detalha. Quanto a posse, que é a possibilidade do cidadão ter a arma em casa, desde que a pessoa tenha capacidade técnica e psicológica, o delegado não vê problema.

De acordo com o comandante-geral da Brigada Militar (BM), coronel Mario Yukio Ikeda, hoje a criminalidade não usa armas registradas. Elas não têm procedência e, devido a isso, ele não acredita no aumento do poder bélico dos grupos devido a ampliação do porte. “Teremos mais armas circulando e também haverá a facilidade de parte delas chegarem aos criminosos” explica. O comandante chama atenção para três pontos que preocupam a instituição: o aumento de casos como latrocínio, feminicídio e suicídio. “No primeiro ponto, com o porte as pessoas poderão reagir a assaltos e, consequentemente, serem alvejadas. Segundo a violência doméstica, que aumenta a cada ano, com acesso à arma pode potencializar o feminicídio. Outra preocupação é o suicídio. O Estado lidera o ranking nacional, aquilo que era uma ação impetuosa tendo ao alcance a arma de fogo pode se concretizar com mais facilidade.”

Sobre homicídios em brigas de trânsito e discussões públicas, Ikeda pondera que para ter a arma o cidadão terá que passar em exames, inclusive o psicológico. “Ter o porte nos confere uma responsabilidade grande. É preciso estar atento a todas as movimentações que ocorrem ao nosso redor. Nossa orientação é que a pessoa não reaja aos assaltos, se possível antecipar e evitar tudo, mas depois de rendido não aconselhamos qualquer reação.”

Entidades 

Na Associação Beneficente Antônio Mendes Filho (Abamf), o presidente José Clemente da Silva Corrêa, também demonstra preocupação. Na sua visão, aumentará o trabalho dos policiais militares que diariamente atuam nas ruas. “Em um momento de abordagem, por exemplo, vamos ter que descobrir quem são essas pessoas que estão armadas. O tempo que vai levar até chegarmos a todas essas informações é elevado. Mais armas na rua gera preocupação”, pondera. A entidade ainda não se reuniu para discutir sobre o tema. “Hoje vemos uma grande circulação de armas ilegais e de grosso calibre que nem as forças de segurança têm. Grandes crimes têm ocorrido em todo o Estado e não é armando a comunidade que o problema da violência será resolvido. Parece que não houve estudo, uma avaliação, um estudo prévio para essa liberação”, expressa.

Clemente questiona se todos aqueles que terão o porte, depois de passar pelo curso de tiro, avaliações técnicas e psicológicas, poderão avaliar quando é o momento correto de utilizar a arma de fogo. “Nós, policiais, temos essa capacitação e diariamente estamos em treinamento e mesmo assim erramos, será que o cidadão terá a visão correta”, questiona. O elemento surpresa, quando a vítima é abordada na rua, também deve ser levado em consideração. “Uma pessoa que está armada, se deslocando e não tem o hábito de zelar pelo que porta, poderá ser vítima da criminalidade e daquilo que está portando. Os criminosos não pensam, assaltam, matam e levam a arma que servirá para outro delito”, expressa.

Opinião semelhante tem o presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (Asdep), delegado Cleiton Freitas. Experiente na profissão, acredita que o mais forte é o fator surpresa. “Isso é que faz com que o bandido esteja a frente, porque ele planeja o roubo, o momento em que vai assaltar. Situação que pode fazer com que o cidadão use a arma de forma antecipada, fora do momento e pode pagar o erro com a vida. Esse elemento faz com que ele tenha um ponto a menos. Além disso, a pessoa, via de regra, tem sentimento de sociedade e pensa antes de tirar a vida de outra. O criminoso não”, detalha.

O momento que vive o Brasil, com ânimos acalorados e discussões por incontáveis assuntos, com a liberação da arma pode ser um risco a mais. O presidente da Asdep diz existem situações de conflito nas ruas, que envolvem motoristas, agente de trânsito e que, em um momento de elevado estresse, pode resultar em homicídio. “Arma tem que ser dada para policiais, que são os garantidores da segurança da comunidade. Não conheço nenhuma pesquisa que arma tenha aumentado a segurança de um local.”

Frente ao Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores de Polícia do Rio Grande do Sul, o Ugeirm, o presidente Isaac Lopes Ortiz, reconhece o direito do cidadão se armar, mas se preocupa com o número delas nas ruas. Ele teme pelo aumento do risco policial e chama atenção para o aumento do número de homicídios. “Quanto mais gente armado, mais inseguro para nós. Não lidaremos só com bandido. Se não tiver uma avaliação criteriosa, pessoa por pessoa, a situação pode se tornar pior do que está.” De acordo com ele, com a crise econômica e parte dos brasileiros com os nervos “a flor da pele”, discussões banais podem acabar em tragédia. “Temos uma preocupação muito grande pelo contexto. Uma coisa é tu usar em casa, ter a posse, outra é andar para cima para baixo. As armas estão cada vez mais mortais.”

Tentativa de driblar Estatuto do Desarmamento 

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública vê com preocupação a assinatura do decreto presidencial para facilitar o acesso às armas de fogo e munições a caçadores, atiradores e colecionadores (CAC). “A medida é claramente uma tentativa de driblar o Estatuto do Desarmamento, que está em vigor no país desde 2003, e ignora estudos e evidências que demonstram a ineficiência de se armar civis para tentar coibir a violência em todos os níveis”, detalha nota emitida. 

De acordo com o documento, além de contrariar a legislação atual, o decreto carece de uma análise do Congresso Nacional, e “parece ter sido feito sob medida para agradar alguns eleitores do atual presidente da República, que dá sinais claros de realmente acreditar que Segurança Pública começa dentro de casa”.

A nota termina dizendo que “o decreto é nada mais que uma artimanha para desviar o foco do que realmente interessa, que é a implantação de uma política pública de segurança construída a partir da coleta de dados e pesquisas que possam de fato reduzir a violência. O Governo Federal deveria trabalhar para identificar as razões que levaram à queda dos homicídios em 2018, e assim documentá-las para serem replicadas, em vez de insistir na aposta de receitas comprovadamente equivocadas para o setor.”

“Conflito banal pode se tornar homicídio”, frisa Rolim

Presidente do Instituto Cidade Segura, Marcos Rolim, observa que o decreto é, no mínimo, questionável quanto a sua legalidade. “Nos parece que é uma clara tentativa de driblar as vedações impostas pelo Estatuto do Desarmamento. Ele generaliza o porte, liberando para 20 categorias. É uma discussão que será decidida na Justiça”, acredita. O ponto mais grave ponderado por ele é que a mudança não está amparada em evidências científicas. Há estudos pelo mundo que mostram que quanto mais disponibilidade de armas em circulação, maiores as chances de homicídios.

“A letalidade da violência cresce de acordo com armas de fogo. No caso brasileiro, nossa impressão é que nosso risco é maior pela situação que vive a população. Nosso país está tensionado pelas disputas variadas, produzido discurso de intolerância. Misturar isso com mais armas é uma receita certa para o aumento da letalidade”, opina. Rolim fala que as pessoas imaginam que com o porte estarão seguras diante da criminalidade, mas lembra que na prática isso não acontece. “Como regra os criminosos têm a surpresa a seu favor. Dificilmente a vítima armada tem chance da reação, quando o faz acaba sendo morta e a arma acaba nas mãos dos bandidos. Alguém armado na rua vai enfrentar mais conflitos que não são criminais, como discussões, acidentes de trânsito, várias circunstâncias que podem fazê-la perder a calma. Conflito banal pode se tornar homicídio.”


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895