A polêmica da "carne de Chernobyl" no Rio Grande do Sul

A polêmica da "carne de Chernobyl" no Rio Grande do Sul

Faltava carne no Brasil em 1986 e as aquisições feitas na Europa deixaram os consumidores apreensivos com a possibilidade de contaminação

Danton Júnior

Manifestação do Movimento Verde do PDT contra a carne contaminada de Chernobyl

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Sucesso recente de público e crítica, a série Chernobyl reconta a história do maior acidente nuclear da história, ocorrido em 1986 na Ucrânia, então parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Na madrugada de 26 de abril daquele ano, uma explosão no reator da usina Vladimir I. Lenin despejou elementos radiativos na atmosfera, que chegaram a ser detectados em grande parte do continente europeu. O episódio provocou impactos até no Brasil. A importação de carne da Europa enfrentou contestações, mesmo que o país estivesse passando por fase de desabastecimento, porque temia-se que o produto estivesse contaminado.

Quando o reator de Chernobyl explodiu, o Brasil vivia os primeiros meses do Plano Cruzado, lançado pelo governo de José Sarney em fevereiro de 1986. A principal marca havia sido o congelamento dos preços. Tanto alimentos quanto combustíveis e produtos de limpeza, entre outros, passaram a ter os valores tabelados. A política levou ao desabastecimento de produtos, principalmente aqueles que estavam na entressafra, como era o caso da carne. O governo federal passou a acusar os pecuaristas de não querer abater os animais. A solução encontrada foi a importação de carne da Europa, que ficou conhecida como “carne de Chernobyl”. A operação originou polêmicas por vários anos. 
A escassez de carne forçou uma mudança nos hábitos dos consumidores. Com falta de matéria-prima para abate, frigoríficos gaúchos passaram a demitir trabalhadores. Na edição de 17 de setembro daquele ano, o Correio do Povo noticiava que “Gaúchos podem comer churrasco à francesa”, numa referência ao país de origem do alimento.

Também informava que o produto recém-chegado havia sido “aprovado pelos técnicos depois de minucioso exame”. Temendo contaminações, entidades manifestaram-se contrárias ao consumo e organizaram protestos. Ao mesmo tempo, a lei delegada nº 4, o decreto-lei nº 2 e a Lei de Economia Popular permitiam a desapropriação de rebanhos. 

Segundo o Correio do Povo do dia 15 de setembro de 1986, vozes da comunidade científica demonstraram preocupação com a possibilidade de a carne conter resíduos radiativos. O agrônomo Sebastião Pinheiro considerou absurda a importação em razão dos riscos de radioatividade e defendeu a compra de alimentos produzidos no Hemisfério Sul.

Desabastecimento

Na época, os pecuaristas culparam o governo pelo desabastecimento. Durante a abertura oficial da Expointer daquele ano, o então presidente da Farsul, Ary Marimon, aproveitou a presença do ministro da Agricultura, Iris Rezende, para criticar a política praticada naquele momento. “Não podemos nos conformar com a acusação generalizada que se faz de que o pecuarista gaúcho está retendo seu gado no campo. Nossa pecuária, em decorrência do continuado desestímulo que os governos nos têm dado, praticamente estagnou em termos quantitativos. Em resumo, senhor ministro, falta carne porque está faltando gado”, disse, conforme a edição do Correio do Povo de 8 de setembro de 1986. 

Nos anos seguintes, a importação da “carne de Chernobyl” provocou reações na comunidade local. O então prefeito de Porto Alegre, Alceu Collares, publicou um decreto proibindo a venda do produto, medida que recebeu apoio de comerciantes. As amostras encontravam-se estocadas nos armazéns da Cibrazem, em Canoas, onde permaneceram durante anos. O imbróglio chegou à Justiça, que liberou a comercialização de 7,2 mil toneladas.

Embora alguns consumidores afirmem terem sentido um gosto estranho na carne consumida na época, o atual presidente do Fundo de Desenvolvimento e Defesa Sanitária Animal (Fundesa), Rogério Kerber, atribui isso à lenda que se criou. “Foram feitos testes em laboratório sem a detecção da existência de radiatividade”, observa. De acordo com Kerber, algumas plantas, na época, importaram carne suína procedente da Bélgica, onde níveis de radiação chegaram a ser registrados após o acidente. 

A Conab, que absorveu a Cibrazem, não soube informar a quantidade de carne importada consumida no período. O superintendente do órgão no Rio Grande do Sul, José Ramão Kuhn Bicca, lembra que o produto ficou em armazéns da Cibrazem e também em outros, privados. Recorda, ainda, que parte da carne liberada para consumo após decisão judicial foi direcionada à produção de embutidos. 

Brasil passou a abastecer o mercado internacional

Da época do Plano Cruzado e do desastre de Chernobyl para a atual, o Brasil passou de importador para maior exportador mundial de carne bovina. Na segunda metade dos anos 1980, o país contava com 130 milhões de cabeças de gado. O abate anual fiscalizado representava 2,2 milhões de toneladas. Em 2017, o Censo Agropecuário apontava um rebanho de 171 milhões de cabeças. Em 2018, o segundo o IBGE, o abate correspondeu a quase 8 milhões de toneladas. O volume embarcado para fora do país em 2018 foi de 1,64 milhão de toneladas, segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).

O professor José Fernando Piva Lobato, do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), afirma que Chernobyl demonstrou quanto o Brasil precisava ser autossuficiente na produção de alimentos. “O país está respondendo a isso com as exportações”, observa. Um exemplo recente é a epidemia de peste suína africana ocorrida na China. A demanda do gigante asiático pela carne suína está sendo suprida, em grande parte, pela produção brasileira. Porém, segundo o especialista, não foi a “carne de Chernobyl” a responsável pelo aumento da produção, mas sim a evolução da pesquisa no setor e a sua implantação na prática.

 


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