Contexto da atividade rural aumenta quadros de depressão no interior

Contexto da atividade rural aumenta quadros de depressão no interior

Trabalhadores relatam que são poucos os produtores que não enfrentam a doença

Nereida Vergara

Contexto da atividade rural aumenta quadros de adoecimento emocional no interior

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A depressão é considerada pelos especialistas uma doença multifatorial. Pode envolver questões de foro íntimo, aspectos da vida social e outras ligadas ao trabalho. No caso do trabalhador rural, o peso da atividade profissional é ainda maior em quadros de adoecimento emocional. “Muitas vezes o agricultor, por variáveis que ele não pode controlar, como uma enchente ou um temporal de granizo, perde uma lavoura que representou um ano inteiro de esforço. É bem compreensível que entre os problemas que tenha esteja um quadro depressivo”, diz Patrícia Fagundes, psicóloga do Centro Regional de Saúde do Trabalhador na Região dos Vales (Cerest/Vales).

Dois agricultores da Região Central do Rio Grande do Sul contaram ao Correio do Povo o calvário por que passam e o reflexo das dificuldades em sua saúde emocional e suas relações familiares e com a comunidade. A pedido dos entrevistados, os nomes usados nos textos são fictícios.

Há sete anos, quando decidiu desfazer uma sociedade familiar e iniciar uma lavoura de arroz num empreendimento próprio, Pedro, hoje aos 46 anos, sofreu um revés com o qual não contava. Toda a primeira plantação, dentro de uma propriedade de cerca de 90 hectares, foi perdida em um único vendaval. A situação foi o gatilho para episódios de síndrome do pânico, doença que surge associada aos quadros de depressão e quando o paciente tem sintomas que acredita que o levarão à morte, como taquicardia, alterações de pressão e suor frio. “Na época eu perdi tudo e minha família ficou com medo até que eu fosse me matar”, conta Pedro.

O agricultor deve hoje R$ 1,5 milhão aos bancos, o que representa mais da metade de seu patrimônio. Pedro trabalha desde os 13 anos de idade, quando encerrou os estudos para ajudar o pai, também lavrador. Pai de duas filhas, uma de 15 anos e outra de 3 anos, diz ter vivido uma recaída da depressão no início deste ano, quando voltou a procurar atendimento psicoterápico. “Fui em busca de ajuda para administrar essa situação. A terapia é fundamental. Já tomei remédio tarja preta, mas hoje tenho preferido não tomar remédio. Só que é difícil. As vezes a gente acorda e não consegue mais dormir. A cabeça nunca para de pensar. Senta-se à mesa e não tem vontade de comer, por não saber o dia de amanhã”, relata.

Pedro chama a atenção para a dificuldade que é buscar uma alternativa para mudar de vida, sair do prejuízo e dos efeitos trazidos pela depressão. “Eu não me vejo fazendo outra coisa. Além do arroz, estou tentando diversificar com a soja e a pecuária, mas é difícil. O agricultor trabalha com uma atividade onde consegue prever as coisas só até certo ponto. É uma empresa sem telhado e as perdas vão se acumulando e levando a vida da gente”, desabafa.

Pedro diz ainda que na região onde mora são poucos os produtores que não passaram por perdas e que não estão sofrendo problemas de saúde decorrentes do trabalho. “Eu arrisco dizer que aqui na região 60% dos produtores estão com problemas financeiros e de saúde por conta do acúmulo de problemas ao longo dos anos. Mas as pessoas têm vergonha e se recolhem para não ter de compartilhar”, revela.

“A gente não dorme, não come, nunca tem paz”

“Sou um condenado cumprindo prisão domiciliar”. Com esta frase, João, de 56 anos, arrendatário de uma área de 200 hectares para o plantio de arroz, define a situação a que chegou hoje, depois de 40 anos de vida como agricultor. João diz que há tempos não consegue mais viver sem o uso de antidepressivos e tranquilizantes. “Já tentei, mas não há como enfrentar os dias e as noites sem eles”, revela.

Divorciado, João vive sozinho. Decidiu que sozinho é que tem de lidar com os problemas gerados por uma dívida de tamanho desconhecido com o banco e com os fornecedores. O agricultor só não está em débito com os proprietários da terra que arrenda. “Esse pagamento é religioso para mim, em nome de uma relação de confiança que tenho com os donos do terreno”, diz.

João está com o nome incluído no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), sofre execuções de bancos e outros credores e já teve de entregar parte do maquinário para saldar dívidas. “Já deixei para os bancos dois tratores e uma plantadeira. Eu tinha oito funcionários, hoje só tenho dois”, lamenta. Sem capital, João já percebeu queda na produtividade, comprometida pela falta de insumos e mão de obra. “Antes eu conseguia administrar, agora tenho de trabalhar no campo junto com os funcionários que sobraram”, compara.

A única filha de João, de 20 anos, não vai suceder o pai no negócio, mas é, segundo ele, a razão para continuar lutando e buscando ajuda para sobreviver à depressão. “É um inferno, a gente não dorme, não consegue comer, nunca tem paz. Os amigos somem e até tentam aproveitar a tua situação”, completa, denunciando que outros agricultores, sabendo de sua fragilidade, assediam a área que arrenda com ofertas melhores ao proprietário. “Hoje eu posso dizer que não tenho como sair da situação que estou. Não tenho como resolver o problema principal, que são as dívidas. Vou levando. Na minha idade não tenho nem como tentar outra profissão. Ser agricultor é o que eu sei fazer”, conclui.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895