Dez anos depois, as marcas entre os sobreviventes da boate Kiss que o tempo não cura

Dez anos depois, as marcas entre os sobreviventes da boate Kiss que o tempo não cura

Quem viveu aquela madrugada relata sobre os traumas físicos e psicológicos que seguem presentes em suas vidas

Paulo Roberto Tavares

Delvani Brondani Rosso, de 30 anos, teve 45% do corpo queimado no incêndio. Ele foi salvo pelo irmão, mas perdeu dois amigos

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Aquela madrugada de 27 de janeiro de 2013 parecia normal, com as ocorrências de praxe para uma cidade como Santa Maria. É o que recorda o soldado da Brigada Militar Altamir Teixeira da Rosa, na época com 38 anos. O policial militar conta que ele e o seu companheiro de patrulhamento, o também soldado Thiago dos Santos Flores, passaram na frente da boate já na madrugada, pouco antes de o incêndio começar, e perceberam que o movimento era grande. Em seguida, os dois PMs foram atender uma ocorrência na avenida Presidente Vargas, não muito distante da Kiss. Foi quando escutaram pelo rádio da BM sobre o início do fogo. “Nos deslocamos para lá para ajudarmos”, conta, ao se relembrar das cenas de horror que presenciou ao chegar no local: “Eram pessoas chorando, gritando, algumas atônitas, sem reagir, andando a esmo”, descreve. “São cenas que não dá para esquecer, parecia que uma bomba havia explodido ali, pois havia muitas pessoas deitadas no chão”. O incêndio causou a morte de 242 pessoas e ferimentos em mais de 600. 

Em seguida, Altamir e o colega de farda procuraram os colegas e se prontificaram a ajudar. O primeiro serviço foi transportar as pessoas que estavam passando mal para os hospitais da cidade. Eram ao menos quatro feridos por vez. Logo depois, Altamir começou a ajudar a retirar os corpos da boate e colocá-los nos caminhões que os levariam para o centro esportivo da cidade, conhecido como Farresão. “Ajudei a colocar os corpos em quatro caminhões. Durante o trabalho de remoção, encontrei um celular que tinha 72 chamadas, todas feitas pela mãe da menina, dona do aparelho. “No último caminhão que ajudei a colocar os mortos, localizei minha prima”, recordou Altamir. 

Foto: Alina Souza

Após 18 horas de serviço, Altamir foi para casa. Ele afirma que num primeiro momento não reagiu. Chegou na sua residência e foi tirando a farda logo que entrou, pois tinha pele humana queimada grudada no tecido. Em seguida, entrou debaixo do chuveiro e ficou um certo tempo, algo que fez com que sua esposa se preocupasse. Ela abriu a porta da peça e perguntou o que havia ocorrido, se ele estava bem. “Neste momento me dei conta do que ocorreu e chorei muito”, conta. “O que aconteceu na Kiss eu espero não ver nunca mais”, comenta o soldado.

A atuação na Kiss rendeu ao PM, lotado no 1º Regimento de Polícia Montada (RPMon), problemas de saúde e emocionais. Altamir conta que começou a ter pesadelos, a não querer mais atuar no turno da noite, tendo pedido para trocar de horário. Como participou da retirada de pessoas de dentro da boate, ele também tem problemas no pulmão, pois chegou a respirar o gás tóxico (cianeto), que emanou quando a espuma usada para fazer o isolamento acústico queimou. “Fui o primeiro caso reconhecido de acidente de trabalho”, conta. “Continuo trabalhando, não me afastei do serviço e também não requeri algum ressarcimento”. 

Momentos de pavor

O técnico em prótese dentária Delvani Brondani Rosso, de 30 anos, foi salvo por seu irmão, Jovani, de morrer dentro da boate Kiss. Morador do município de Manoel Viana, era a segunda vez que ele ia a Kiss, sendo acompanhado por amigos. Ele recorda que a boate estava superlotada, com pessoas por todos os cantos, mal dando para caminhar. Por isso, Delvani, que teve 45% do corpo queimado no incêndio, foi com mais dois amigos para o local onde ficava o pub, pois não tinha outro lugar para ficar. “Chegamos lá por volta de 1h15min e até às 2h tudo parecia normal. De repente, um rapaz que estava na copa começou a gritar ‘fogo’, mas devido à quantidade de pessoas, parecia que ele estava distante”. 

Quando o rapaz, que Delvani não conhece, gritou que havia um incêndio, ele e os amigos foram caminhando lentamente, até que durante o trajeto, a multidão aumentou os empurrando, fazendo com que Delvani e os dois amigos entrelaçassem os braços para não se perderem. No entanto, a pressão da multidão fez com que eles se soltassem. “Quando cheguei na área onde ficava a copa, a luz apagou. Creio que foi bom não ter visto as pessoas caindo”, comenta. “Era um breu só. Não dava para ver nada, até que a fumaça começou a baixar e foi um pavor, com as pessoas gritando, o som de copos quebrando”, reconstitui o pânico instalado na casa noturna. 

Um pouco mais adiante, sentiu as pernas fraquejarem após respirar a fumaça e ficou de joelhos. Delvani disse que pensou que deveria ficar em pé e respirar, se quisesse se salvar. No entanto, conta ele, estava muito quente, a sensação é que seu rosto estava queimando. “Senti que não teria como me salvar, mentalmente fui me despedindo de minha família e conversando com Deus”, disse. “Pouco depois, desmaiei. Os meus amigos morreram. Cássio, morreu no banheiro. Ele foi em direção a uma luz que havia no local, pensando ser a saída e ficou encurralado, e o Henrique não sei onde foi encontrado.” 

O seu irmão, que viu o incêndio e conseguiu sair a tempo da boate, não encontrou Delvani. Jovani, que hoje reside em Florianópolis, Santa Catarina, começou a ajudar no resgate dos corpos. “Ele me localizou e me pegou no colo, me levando para fora da boate”, recorda. “Sinto um enorme orgulho de meu irmão, que ao meu ver é um herói, pois ainda salvou outras pessoas”, afirma. 

Delvani acredita que uma placa da espuma que servia de isolamento acústico tenha caído em cima dele, pois as costas foram as mais atingidas, com a camisa tendo grudado na pele. “O meu pulmão também ficou muito prejudicado, é como se eu fosse fumante há 20 anos”, revela. “Tenho que fazer exercícios físicos para manter o pulmão ativo”. 
A sobrevivente da tragédia, a zootecnista Victória Bartner, de 31 anos, também ficou traumatizada. Ela conta que foi à casa noturna aproveitar uma festa da faculdade e ficou com amigas bem na frente do palco. Pouco antes de o incêndio começar, ela e uma amiga foram ao banheiro e quando saíram, notaram que uma multidão se dirigia para a porta de entrada de uma maneira descontrolada. A porta estava fechada e as pessoas tentavam abrí-la, mas não conseguiam. “Em seguida veio a fumaça e as luzes se apagaram. O pessoal começou a gritar”, recorda Victória, que há quatro anos mora em outra cidade. “Pouco depois, me senti mal e caí de joelhos. O cheiro foi ficando cada vez mais forte. Havia muita gente passando por cima de mim, todo mundo empurrava todo mundo. Me lembro de puxarem o meu cabelo e alguém me carregar para o estacionamento que fica bem na frente do prédio onde funcionava a boate”, conta. 

Foto: Alina Souza

Victória disse que quando se recuperou, olhou para si e levou um susto. Estava com a roupa toda rasgada e o corpo coberto de fuligem. As pessoas que saiam do prédio davam alguns passos e caíam. Quando viam a queda, recorda Victoria, alguns gritavam que a pessoa havia morrido. “Lembro de ter vomitado uma gosma preta. Quando chegamos a um hospital, o médico me disse que o vômito tinha sido a minha salvação”, conta. 

Victória afirma que o incêndio a transformou em uma outra pessoa. Atualmente, ela sente uma agonia muito grande quando está em um local fechado. Além dos problemas físicos, a zootecnista conta que depois do incêndio, sempre acorda de madrugada, no mesmo horário em que o fogo teria começado, por volta de 2h30min. “Hoje, considero que estou bem, apesar de tudo”. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895