Por dentro da Kiss: o cenário da tragédia dez anos depois

Por dentro da Kiss: o cenário da tragédia dez anos depois

Entrar no que sobrou da boate é reviver o horror. E o que se vê no interior do prédio, mesmo uma década após aquela madrugada, ajuda a entender a dimensão dos acontecimentos

Paulo Roberto Tavares

Uma década depois, prédio está praticamente vazio, mas algumas peças ainda continuam a contar como ocorreu aquela tragédia

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Retornar a Santa Maria e entrar no prédio onde funcionava a Boate Kiss dez anos depois da tragédia é reviver aqueles momentos de terror pelos quais passaram muitos jovens. Atualmente, o prédio está praticamente vazio. Móveis e outros objetos foram retirados há muito tempo. Algumas peças, contudo, ainda continuam a contar como ocorreu aquela tragédia na madrugada de 27 de janeiro de 2013. O imóvel foi passado para a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), que pretende construir um memorial para as vítimas no lugar. O processo está em andamento, de acordo com a associação.

Veja a planta da boate Kiss e imagens do interior do prédio

Ao entrar no prédio, é possível se deparar com a segunda porta, na qual alguns logotipos da Kiss estão fixados, alguns dele chamuscados. Dentro do que era a boate, a escuridão é grande, como se estivesse entrando no momento em que as luzes apagaram e o fogo começou. Logo após esta porta, existe uma peça grande, onde as pessoas circulavam. À direita de quem entra, a estrutura onde funcionava a chapelaria ainda resiste ao tempo, assim como um estrutura que servia de bar, um pouco mais adiante. Seguindo em frente, apesar da total escuridão, inúmeras teias de aranha se proliferam pelo prédio. Mais adiante está o que era o pub, também com sua estrutura ainda firme apesar do avançar dos anos.

Ao dobrar à esquerda, se entra na parte onde tinha uma pista de dança e o palco onde na madrugada da tragédia se apresentada a banda Gurizada Fandangueira. O palco parece congelado no tempo, com as marcas do incêndio no piso e, principalmente, no teto ainda visíveis. Ali é possível entender o que as pessoas sentiram naquela madrugada, em meio a uma escuridão total. Mesmo dez anos depois, parece que o ar ainda falta e o calor lhe oprime. A equipe do Correio do Povo teve que usar a luz das lanternas dos celulares e o flash da máquina fotográfica para enxergar um pouco. Neste lugar, se você fechar os olhos é quase possível escutar os gritos das pessoas que tentavam fugir desesperadamente. A parte do piso na frente do palco ruiu. É perigoso andar pelo resto da pista, que é de madeira, pois ela pode desabar com o peso. 

 

Do lado esquerdo do palco, uma espécie de camarote, com piso de cimento, ainda está de pé, inclusive com a grade que separava da pista. Mais ao fundo, é possível subir ao mezanino, onde algumas mesas ainda ficaram. Em uma delas, antes de os móveis e outros objetos terem sido retirados, uma bota e uma garrafa de uísque ficaram em cima do móvel, mostrando o que foi o pânico que tomou conta dos frequentadores da boate naquela madrugada.

Retornando para a porta de entrada/saída, e se dirigindo à esquerda, estão dois banheiros. Hoje as portas dos reservados não existem mais, e apenas um vaso sanitário está no local, quebrado. No banheiro masculino, o mictório ainda tem as mesma figuras de George Bush, Adolf Hitler, Bin Laden, entre outros, coladas na parte onde bate a urina. Na porta de entrada, uma ironia. Toda ela esta com o logo de uma bebida energética: chamas se espalhando. O banheiro feminino está menos conservado, mas o espelho da pia também tem o mesmo logo do energético, chamas crescendo. 

Nestes dois locais, ocorreu uma grande parte das mortes na madrugada do incêndio. Quando as luzes se apagaram e tudo ficou em total escuridão, apenas um luz, não muito forte, era visível dentro do prédio. Ela ficava perto da porta dos banheiros e a maioria das pessoas, já em desespero tentando encontrar uma saída, foi para aquele local, pensando ser a saída. Elas ficaram encurralas. Várias foram entrando e não tiveram como retornar. Os corpos foram se amontoando uns por cima dos outros. O gás liberado pela espuma usada para o isolamento acústico era o cianeto, que congela os movimentos na hora da morte. Vários corpos estavam com os rostos demonstrando horror e as mãos crispadas. Conforme o relado de um bombeiro que participou do resgate, uma jovem, que tentou escalar até uma pequena abertura em um dos banheiros, ficou agarrada aos cabelos de uma outra garota que havia morrido antes. Foi preciso, segundo o bombeiro, cortar os cabelos da que estava embaixo para poder retirar a outra. 

Do lado direito de quem vem do pub, estavam as caixas, que recebiam os pagamentos. Além disso, ainda estão visíveis as grades pelas quais os frequentadores tinham que passar. Essas grades, durante a tragédia, acabaram deixando as pessoas que tentavam sair presas. Tudo está lá, dez anos depois. 

Como era a boate Kiss por dentro

O palco ainda permanece, mas parte do piso da pista ruiu | Foto: Alina Souza

Local onde ficava um dos bares ainda preserva algumas mesas | Foto: Alina Souza

Na parte interna da casa havia muitos obstáculos que impediram a rápida evacuação do espaço, como grades divisórias | Foto: Alina Souza

Em uma das mesas, o nome de uma das reservas feita naquela noite na casa noturna | Foto: Alina Souza

Revestimento do forro feito com uma espuma imprópria foi um dos propulsores do fogo | Foto: Alina Souza

Os banheiros foram os locais de onde mais foram resgatados corpos. As vítimas confundiram a luminosidade dos espaços em meio à densa cortina de fumaça que tomou o interior do prédio | Foto: Alina Souza

Em um dos banheiros, o espelho trazia desenhos de chamas. A triste coincidência era uma ação promocional de um energético | Foto: Alina Souza

Fachada do prédio se tornou um memorial da tragédia. Na última semana, uma estrela de papel trazia o desenho de uma família sob a inscrição: “boas memórias” | Foto: Alina Souza


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